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2.2 TRAVESTILIDADES E TRANSEXUALIDADES NA PERSPECTIVA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

2.2.2 Transexualidades

No campo das ciências sociais, a pesquisa de Benedetti (2005) é a pioneira na busca por identificar as distinções entre as identidades travestis e as identidades transexuais. O autor aponta que o emergir desse debate no âmbito dos movimentos sociais e, consequentemente, no campo das ciências sociais, referem-se a dois pontos fundantes: a primeira resolução do CFM; e a realização da primeira cirurgia legal, realizada no ano de 1998, que foi amplamente divulgada pela mídia e cercada de muito sensacionalismo.15

Relata Benedetti (2005) que, nesse período, ele foi questionado por muitas travestis sobre as verdadeiras diferenças entre elas e as transexuais; pois havia um amplo questionamento sobre o porquê de a resolução do CFM autorizar somente o acesso das transexuais ao processo transexualizador. Segundo o autor,

13 A bombadeira é uma personagem central na vida das travestis. Ela detém o conhecimento do corpo, as

técnicas para aplicar o silicone líquido e os cuidados necessários para evitar efeitos colaterais. A bombadeira e a cafetina, figuras que, por vezes, se confundem na mesma pessoa, ocupam uma ascendência na estrutura das relações internas às travestis. Ela é a mãe, a que cuida, protege, castiga. A família construída, deslocada de referências biológicas, tem as suas regras (PELÚCIO, 2009, p. 22).

14 Conforme evidencia a autora, a cafetina é a personagem central no agenciamento e cuidado, com o

estabelecimento de regras, no território onde travestis profissionais do sexo transitam – e que, por vezes, pode ser a mesma pessoa que a bombadeira (PELÚCIO, 2009, p. 22).

15 A primeira cirurgia “legal” foi realizada no Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas,

[...] é possível traçar algumas diferenças importantes entre as transexuais e as travestis. As transexuais dominam uma linguagem médico-psicológica refinada, apoiam-se em escritos científicos dessas disciplinas [...], creem-se doentes e deduzem que o tratamento e a cirurgia podem ser o instrumento de correção ou ajustamento de seu corpo à sua personalidade. Essas concepções estão relacionadas à origem de classe. As informantes que se auto-identificam como transexuais possuem, via de regra, maior escolaridade; têm, portanto, acesso as bibliografias técnicas sobre o assunto com mais facilidade e situam- se mais próximas socialmente das explicações institucionais e científicas sobre a questão [...]. Não aceitam a sua genitália e negam ter nascido homens, enquanto que as travestis fazem uso ativo dos seus órgãos genitais. As transexuais definem-se pela negação das travestis, isto é, as primeiras não querem aquilo do qual as segundas usufruem. (BENEDETTI, 2005, p. 113- 114).

Ora, a sua definição está vinculada à perspectiva de classe social, mas também é perceptível que, nesse período, as distinções conceituais apropriadas pelos movimentos sociais foram marcadas pela influência do discurso médico; concebidas sob a óptica da homogeneidade – e que devem, portanto, ser compreendidas como um processo histórico, dado o ethos de cada período. Nesse contexto, o discurso médico foi historicamente apropriado e legitimado pelo discurso popular, tal como aponta Fernández (2004), o que contribuiu como a vinculação de um determinado capital social para as transexuais; ao romperem com a marginalidade e a vivência das ruas das travestis (PELÚCIO, 2009).

Márcia Arán, Daniela Amaral e Tatiana Lionço (2009) identificam a correlação entre o processo cirúrgico e as identidades transexuais como problemática, tanto do ponto de vista teórico como do científico. Afirmam as autoras que as construções das identidades transexuais não se reduzem apenas a um processo cirúrgico, e, portanto, aqui, estamos diante da impossibilidade de conceituar a transexualidade “de forma universal, unívoca e a partir de uma classificação estritamente médico-psiquiátrica”, conforme indica Almeida (2012, p. 517).

Esses aspectos foram apontados na primeira pesquisa, exclusiva, com transexuais, no campo das ciências; de Berenice Bento (2006): A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Em seu trabalho, a autora busca a definição da categoria transexualidade, de forma ampla, com a perspectiva de desconstrução do ideário médico.

[...] transexualidade é uma experiência identitária, caracterizada pelo conflito com as normas de gênero. Essa definição confronta-se à aceita pela medicina e pelas ciências psi que a qualificam como uma “doença mental” e a relaciona ao campo da sexualidade e não ao gênero (BENTO, 2008, p.18-19).

Bento (2006, 2008) evidencia empiricamente, portanto, que a construção identitária da transexualidade não ocorre de forma universal: há transexuais que de fato se vinculam à ideia da necessidade da cirurgia, mas há outras e outros que convivem bem

com as suas genitálias, requerendo apenas transformações corpóreas, ou parte delas, e a mudança de nome civil. Quanto ao desejo e afetividade, podem ser heterossexuais, homossexuais, bissexuais, pansexuais ou assexuados, com pessoas cisgêneras ou transgêneras, que devem ser compreendidas a partir da identidade de gênero.

Essas multiplicidades foram empiricamente constatadas por Bento (2006, 2008) quanto às mulheres transexuais, pois algumas das pesquisadas, que haviam realizado o processo cirúrgico, relataram uma “satisfação plena” e, por vezes, legitimaram o discurso médico sobre a completude da identidade. Outras, porém, não condicionaram o processo cirúrgico à real e efetiva vivência e constituição de sua identidade, e esses fatores também podem ser evidenciados na pesquisa de Grazielle Tagliamento (2012).

No que se refere aos homens transexuais, também se evidenciam essas pluralidades, tal como apresenta Almeida (2012), com variadas possibilidades de masculinidades e de categorias identitárias. Essas vão desde as performatividades do masculino a processos de transformações corpóreas por meio de hormonização de testosterona e intervenções cirúrgicas.

Esses se diferenciam da identidade lésbica, já que possuem como marca a contestação à assignação ao sexo do nascimento (mesmo que de forma variável), sem, contudo, se afirmarem “homens de forma constante”, pois se constituem menos em função do diagnóstico psiquiátrico e mais na suposição de uma completa adesão aos signos corporais e aos comportamentos sociais que constituem as masculinidades, apesar de certa predominância do “modelo convencional” (ALMEIDA, 2012).

No entanto, há de se pontuar, novamente, a invisibilidade dos homens transexuais no campo da ciência, conforme referenciado na introdução deste trabalho. Essa invisibilidade é evidenciada também nos movimentos sociais e no acesso à saúde, conforme será abordado adiante.

Portanto, a constituição das identidades transexuais também é sócio-histórica, plural e a-universal, e não vinculada aos processos cirúrgicos, mas à contestação à assignação ao sexo do nascimento, o que se contrapõe ao discurso médico. Essas identidades devem ser compreendidas em um viés não patológico, conforme indicam os estudos no campo das ciências sociais. Quanto ao desejo-afetividade, podem ser heterossexuais, homossexuais, bissexuais, pansexuais ou assexuados, com pessoas cisgêneras ou transgêneras, que devem ser compreendidas a partir da identidade de gênero.

3 MOVIMENTOS SOCIAIS E A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PARA A POPULAÇÃO TRANS NO BRASIL

As conquistas e direitos sociais não são construtos dados, mas frutos de muita luta política e articulação dos movimentos sociais, que resistem e avançam nas conjunturas históricas e sociais. Nesse sentido, o movimento trans tem-se caracterizado como um importante meio de resistência e de desconstrução das opressões impostas pelos valores da cis-heteronormatividade, que tem avançado na conjuntura neoliberal conservadora.

As precariedades vivenciadas pela população trans têm sido legitimadas historicamente pelo Estado, dada a ausência de políticas públicas, que impacta as condições de vida da população trans, marcadas pelas travestifobia e transfobia, que, por seu turno, incidem nas condições e existências de suas vidas. Assim, o primeiro tópico abordará o processo de precariedades que tem definido a existência das identidades trans, expressas por meio da travestifobia e transfobia; que incidem nas condições de vida dessa população, tais como acessos e garantia de direitos e de existência – e que implicam diretamente nos aspectos da saúde.

O segundo tópico abordará o processo histórico de luta e resistência das identidades trans por meio dos movimentos sociais. Essa trajetória tem sido marcada por uma ampla resistência a favor da desconstrução do padrão cis-heteronormativo, com a defesa da livre expressão da orientação sexual e identidade de gênero, bem como a luta pela construção de direitos e de cidadania, por meio de políticas públicas e legislações; e a luta pela despatologização.

O terceiro tópico apresentará a trajetória histórica de construção das políticas públicas no Brasil para a população trans, perpassada pelo processo transexualizador e a construção da Política Nacional de Saúde Integral LGBT. Por fim, o quarto tópico apresentará os desafios à saúde integral da população de travestis e transexuais.

3.1 PRECARIEDADES: TRAVESTIFOBIA E TRANSFOBIA, A NEGAÇÃO DO