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4. ESSA HISTÓRIA DE SER HOMEM

4.2. ESTUDOS SOBRE HOMENS E MASCULINIDADES

4.2.1. Precedentes, diálogos e tensões com os movimentos feministas

Desde o início desta década há um processo de intensificação na produção sociológica em torno da noção da masculinidade, evidenciando um importante indicador da relevância que o tema vem adquirindo enquanto campo de estudos científicos. Uma leitura apressada poderia vincular este crescimento aos movimentos, coletivos e individuais, de homens que passaram a repensar suas concepções, práticas e privilégios e buscaram discutir o sexismo e a dominação patriarcal. Isso talvez seja uma “meia verdade”, pois é preciso considerar que boa

parte dos trabalhos acadêmicos que tratam sobre a masculinidade é produzida por mulheres (MEDRADO; LYRA, 2008).

A formação e o desenvolvimento do interesse político e acadêmico sobre as masculinidades resultaram do esforço de diversos segmentos da sociedade civil organizada, como, por exemplo, os movimentos em defesa dos direitos sexuais – na época identificados como movimentos gay e lésbico – ao tensionar a rigidez e os preconceitos que atravessavam as identidades sexuais (MEDRADO; LYRA, 2012), assim como o movimento negro, cuja atuação contribuiu para a transformação dos modelos vigentes de masculinidade (NASCIMENTO, 2018). No entanto, se é possível traçar o principal responsável pelo fomento do debate e reivindicação por uma ressignificação da masculinidade, então é preciso falar sobre o feminismo (CONNELL, 2016).

Os movimentos feministas são incontornáveis para se abordar a masculinidade. Aqui, cabe apresentar o apanhado histórico dessa conturbada relação através da obra de bell hooks (2019). Em que pese a autora proponha seu debate a partir da experiência estadunidense, há diversos paralelos possíveis com a realidade brasileira atual, justificando sua exposição nesta seção. De acordo com a autora, o início do movimento feminista contemporâneo contou com a presença de um grupo “anti-homem”, constituído por mulheres heterossexuais que viveram um relacionamento íntimo com um homem, marcado pelo machismo, violência e infidelidade, incluindo aqui homens que pautavam outros movimentos de justiça social . 40

Como homens estavam presentes somente como um pano de fundo do discurso político das mulheres, opositores do feminismo perceberam que questões atinentes a homens e meninos constituíam um terreno fértil a ser explorado. Contudo, o foco dessa abordagem não estava em atender as demandas específicas de um segmento populacional, mas para deslegitimar o movimento feminista como um todo (CONNELL, 2016).

Segundo hooks (2019), a mídia de massa conservadora teve um papel importante na propagação da ideia de que “mulheres odeiam homens”. Mesmo quando existiam efetivamente grupos, indivíduos ou sentimentos anti-homem, a superexposição midiática – quando não aliada à distorção jornalística – funcionava como um mecanismo deslegitimador

40 Há um paralelo interessante com a figura contemporânea, no Brasil, do “esquerdomacho”. Segundo Bastos (2018, p. 89), a categoria é mobilizado por “movimentos feministas para se referir a homens progressistas politicamente, que tem discursos de igualdade entre gêneros, se autodenominam feministas ou pró-feministas, no entanto, são abusivos em suas relações e reproduzem discursos excludentes ou agressivos em relação a mulheres”.

para o movimento como um todo. Nesse sentido, foi acrescido a ideia de que toda feminista era lésbica, reforçando o sentimento anti-feminista a partir dos homens, agora atualizado pelo viés homofóbico.

O avanço nas discussões no interior dos movimentos feministas considerou, de forma não hegemônica, que o problema não residia nos homens em si, mas sim no patriarcado, no sexismo e na dominação masculina, possibilitando um deslocamento de uma perspectiva focada no indivíduo para formas de dominação que atravessam toda a sociedade. Essa virada construía uma questão tão complexa quanto fundamental. Entrava em cena tanto o papel da mulher na manutenção e reprodução do sexismo, quanto os seus efeitos deletérios para os homens, como a própria imposição de uma masculinidade sexista (hooks, 2019).

A polarização é acirrada a partir do momento que temos, de um lado, homens antifeministas detentores de uma voz pública com bastante amplitude e rápida capacidade organizativa, e de outro, tensões internas ao movimento feminista em razão da discordância por parte de algumas mulheres em aceitar a adesão de homens antisexistas, por manterem a convicção de que todo homem era opressor ou de que todos odiavam as mulheres. Nesse tópico, hooks (2019) retoma a polêmica sobre o papel da mulher na manutenção do sexismo ao problematizar o processo de essencialização que destina invariavelmente a posição de vítima às mulheres e a de inimigo para os homens.

Os primeiros movimentos organizados de “libertação do homem”, conforme hooks (2019), foram concebidos em detrimento da representatividade negativa que era atrelada à masculinidade. Dessa forma, em que pese tenham pautado a discussão sobre os papéis sexuais rígidos estabelecidos pelo sexismo, não havia nenhuma preocupação quanto aos seus efeitos prejudiciais nas mulheres, ou seja, um movimento desvinculado do compromisso de tensionar a dominação masculina. Assim, ainda que os grupos anti-homem fossem minoritários dentro do movimento feminista, foram utilizados discursivamente de forma oportunista para desviar o foco de suas responsabilidades frente ao sexismo e à dominação masculina.

Para hooks (2019), não houve uma abordagem eficiente que tratasse das formas que homens possam ser antisexistas, tampouco uma discussão que desse conta de formular uma masculinidade alternativa à sexista. Não raras vezes o que é apresentado como alternativa é a visão de homens mais “femininos”, que ao contrário de proporcionar uma ruptura acaba por reproduzir estereótipos de gênero e reiterar o sexismo. Por outro lado, a autora argumenta que uma visão alternativa de masculinidade fomentaria nos indivíduos a sua autoestima, enquanto

base da sua identidade, uma vez que considera que “culturas de dominação atacam a autoestima, substituindo-a por uma noção de que obtemos nosso senso de ser a partir do domínio do outro” (hooks, 2019, p. 106-7). Isso se relaciona, segundo a autora, com a resistência em discutir e abrir mão de seus privilégios, tendo em vista que sem eles não restaria uma identidade significativa. Diante disso, aponta que iniciativas de novos movimentos de homens têm voltado sua atenção para ensinar homens e meninos a lidar com seus próprios sentimentos.