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24 PRECISAMOS DE AJUDA

—Encontraste alguma coisa nesses livros que pode servir para a exposição, Janaína?— perguntou Cecília.

—O quê? Ah, não!—respondeu a garota, hesitante.

No fundo, ela sabia que o material era digno de ser exposto. Mais do que isso, merecia ser estudado por um perito. Despertaria a curiosidade de qualquer historiador, que poderia até se tornar famoso, trazendo a público a vida de Mateus Vicente.

O ex-marinheiro que se apaixonara por uma africana e conhecera a religiosidade negra. Esforçado, havia estudado para ser arquiteto. Conquistara a admiração e a confiança do Marquês de Pombal. Trabalhara em importantes edifícios históricos de Portugal e na

reconstrução de Lisboa, depois do terremoto de 1755. Tinha sido recompensado por isso, mas não ligava para riquezas.

Desiludido da fama, com medo das represálias de Maria I, arrependido por não ter assumido sua paixão, acabara se retirando do país. Fora morar com os negros de Daomé. Deixara uma fortuna para o filho, que nunca a havia encontrado.

Uma fortuna que, agora, só Janaína sabia onde estava.

—Nada aqui interessa, são livros antigos de medicina—ela mentiu para Cecília. Precisava de tempo para pensar.

Mas o tempo foi passando e a garota não encontrava jeito de aproveitar a descoberta. A vontade de contar tudo para a madrasta crescia dentro dela.

Enquanto isso, tomava corpo o evento programado por Maria de Fátima e Cecília. Diariamente, Fernando enviava mapas e projetos emoldurados. As cunhadas improvisaram vitrinas, onde ficariam os instrumentos do arquiteto: penas de nanquim, vidros de tinta ressecados, réguas de cálculos, objetos pessoais.

A equipe do jornal ajudava, desmontando os móveis da sala, pendurando quadros na parede. Fernando também aparecia, para orientar a montagem. A ordem cronológica das obras era muito importante.

Entre elas, ilustrações de vários artistas, em estilos e com interpretações diferentes, apresentavam cenas de Lisboa do século XVIII. Pequenos textos explicativos foram compostos para informar melhor os visitantes.

O jornalista vinha nos períodos da manhã ou da tarde, quando José Carlos não estava em casa. Cecília havia recomendado esse procedimento. Não porque tivesse algo a esconder, e sim por respeito ao temperamento do marido.

Janaína, que andava com medo de sair nas ruas, acompanhava os trabalhos. Mas não sabia por qual razão, Mafalda se irritava com isso.

—Sai um pouco, menina! Vai passear!—insistia a velha.

A garota nem dava resposta. Preferia ficar por perto de Fernando, conversando com ele. Mais de uma semana havia transcorrido. As matérias do Correio de Portugal veiculavam o currículo do arquiteto, comentavam os preparativos da exposição, anunciavam a data de abertura. Haveria discurso de autoridades. Convites especiais foram enviados para os dirigentes do Banco lmobiliário, do Patrimônio Histórico e de outras instituições financeiras e governamentais.

Repórteres de vários jornais, de revistas e até das emissoras de televisão apareceram para entrevistar Maria de Fátima e Cecília. Sem nenhum constrangimento, elas pediam verbas para não perderem o sobrado. Prometiam em troca abrirem a casa para visitações, uma vez por semana.

Por fim, chegou o grande dia. Um livro de assinaturas havia sido colocado no vestíbulo de entrada. Carpinteiros, pintores, eletricistas trabalhavam rápido. Tudo tinha de estar pronto para logo mais à noite, no horário oficial de inauguração.

Mas, já de véspera, Cecília não se conformava com a ausência do filho. Tanto fez, tanto fez, que João Carlos permitiu que ele viesse.

—Convida também os teus pais—sugeriu o marido.

E naquela manhã, Jorge voltou, acompanhado dos avós maternos: Isabel e Joaquim. Com tanta gente, os espaços disponíveis da residência ficaram abarrotados. Até o quarto de Vicente, que tinha sido de Mateus Vicente, havia se transformado em sala de exposição.

A família teve de se acomodar conforme deu. Dividir-se entre os demais aposentos. O pior foi na hora do almoço. Os operários do jornal estavam lá para comer. Poucos sentados, muitos em pé, prato na mão, procurando um canto na cozinha. Mafalda, nervosa, servindo a todos no meio da confusão.

As discussões corriam à solta. Uns acreditando nos resultados do evento. Outros, meio pessimistas, achando que tudo ia dar em nada. Houve até quem quisesse apostar. Mas os que tiraram proveito de tamanho falatório foram Jorge e Janaína. Puderam ficar a sós, para matar a saudade, para falar em segredo.

A garota levou o "primo" ao porão. Revelou todas as descobertas. Mostrou os sete livros. O rapaz ficou tão estarrecido quanto ela havia ficado.

—Mas tu tens a certeza de que o ouro está no Lago Grande? —ele perguntou por perguntar, já acreditando nas deduções de Janaína.

—É a ultima pista. Para que não reste dúvidas, só faltaria checar se nas comportas, associadas a Obá, tem a marca de Oxum. Estou certa de que sim. Mas não tive coragem de ir lá, por causa do bigodudo mal-encarado—respondeu ela.

—E se soubéssemos como despistá-lo?—interrogou Jorge a si mesmo.

—Também não adiantaria. Como conseguiríamos quebrar a parede para pegar o ouro? Precisaríamos de talhadeiras, martelos. E muita forca no braço—considerou a garota.

—E tem ainda a segurança do Palácio—lembrou-se o rapaz.—Na primeira martelada, estaríamos pegos.

—Além do quê—acrescentou Janaína—, esse trabalho deveria ser feito por especialistas. Caso contrário, os azulejos serão danificados.

—O que seria péssimo!—emendou Jorge.

—Necessitamos de ajuda!—assumiu ela.—E se fôssemos à policia?

—E deixar que essa fortuna caia nas mãos de desconhecidos? Não, eu não confio—disse ele.—Temos de contar com outra pessoa. Alguém em quem possamos acreditar!

—Quem? O teu pai, por exemplo?

—Ele é um dos que mais duvida dessa lenda. —Para a minha mãe, então?—sugeriu a garota. —E o que ela poderia fazer?

A situação tinha chegado a um impasse. Por um momento, os dois não viam alternativa. O silêncio cresceu em volta deles. Era como se fosse uma câmara invisível que, diminuindo de tamanho, pressionava um contra o outro.

O único som que Janaína ouvia era o da respiração descompassada dos dois.

Eles se olhavam apaixonados. O desejo de se tocarem aproximando-os devagarzinho. As mãos expressando com carinhos delicados o que os lábios não conseguiam dizer. Beijaram-se.

É impossível calcular o tempo que durou o namoro. Dali a pouco, eles foram interrompidos. Após um grande estrondo, a porta se abriu com violência.

Jorge se voltou para a estante. Janaína fingiu estar lendo um livro. Mafalda acabava de entrar, de supetão. Parecia ter sido empurrada, com força, para dentro.

—Quase cai nessas escadas!—exclamou a velha, pálida de susto. Os cabelos soltando-se do coque.

Ajeitando um pouco a roupa, ela completou: