• Nenhum resultado encontrado

16 A VARA MÁGICA DE OGUM

Um pouco antes de Janaína acordar, naquela manhã, uma nova discussão havia ocorrido na família Amendoeira. Dessa vez, Maria de Fátima estava ausente. Tinha ido cedo a igreja.

Enquanto tomava o café, José Carlos fez sérias recomendações para que Jorge não saísse mais com Janaína.

—Mas, pai!—protestou o rapaz.—Isso não tem sentido! —Quem sabe o que faz sentido aqui sou eu.

Cecília procurava não se envolver. Com o coração dividido, também temia que o filho se apaixonasse. Mais por causa dos problemas que ele enfrentaria do que por preconceito racial.

Mafalda, no entanto, concordava com o pai do garoto. Parecia empenhada em afastar os jovens.

—Desde que essa menina chegou que não fazes mais nada a não ser ficares com ela pra baixo e pra cima. Eu e a tua mãe temos muito serviço para ti.

A velha mandou Jorge à casa de uma freguesa, na periferia da cidade. Era para dar um recado à toa. Assunto que poderia ser tratado por telefone.

Desse modo, quando Janaína desceu, o rapaz já saía. Ainda tiveram tempo de se olhar. Ela na escada, ele na porta da rua. Uma piscada, um gesto de mão, um cochicho, e o encontro estava marcado, às escondidas.

A pressa tomou conta dos movimentos de Janaína. Vendo tanta afobação, Mafalda desconfiou de alguma trama. De propósito, tentou atrasá-la.

—Vais passear, minha filha?

—Vou andar por aí—respondeu a garota, fingindo não ter nada em mente.

—Por que tu não vais ao Castelo de São Jorge? É pertinho. Dá para ir a pé. Tem uma linda vista de Lisboa. Sabias que... —a tia começou a contar uma longa história.

Por mais interessante que fosse, Janaína não tinha condições de ouvir. Na primeira oportunidade, deu um jeito de se livrar.

—Puxa, que incrível! Então, tá... Tchau!

—Lá vai a princesa africana. Por que será que está tão nervosa?—falou Manuel Louco, quando viu Janaína passar pelo beco.

“Praça do Comércio", só nisso ela pensava. "Qual o caminho mais rápido?... Não sei que ônibus tomar... Subir ou descer Alfama?”

Tanto fazia. O bairro tinha saída por cima e por baixo.

Ela desceu. Foi andando, quase correndo, como se alguém a perseguisse. Era a sensação presente em cada esquina, em cada semáforo.

Jorge esperava por ela na escada do monumento: D. José I sobre o cavalo, no alto; anjos e fadas ladrando a base. Todo o conjunto cercado por grades.

—Já olhei tudo, não achei marca nenhuma—informou ele

—A estátua fica muito no alto. Não dá para ver dessa distância.—argumentou Janaína. Ela não teve dúvidas. Pôs um pé no gradil e virando-se para rapaz, disse:

Num instante, estava trepada no pedestal. O vento Ievantando a saia dela. Jorge, aflito, hesitante, não sabia se vigiava ao redor ou espiava as pernas da garota.

Um apito soou, o policial se aproximava. Tarde demais. Janaína vinha de volta. Agarrou a mão do "primo" e os dois dispararam na carreira. Os pedestres abrindo passagem para eles, pelas ruas da Baixa.

Só pararam no largo do Rossio, exaustos. Quase sem fôlego, ela falou: —Eu vi, na pata do cavalo... ufa!... bem pequeno, o número sete. —E o que significa?—perguntou Q garoto.

—Não sei!

—Bolas!—ele se aborreceu.—Então, nós quase fomos presos por nada!? —Calma!—ponderou Janaína.—Eu preciso pensar.

Eles andavam em silêncio A garota procurando recordar as lendas dos orixás. Sem pressa, atravessaram a praça dos Restauradores e pegaram a avenida Liberdade. Pistas largas com canteiros ajardinados. Bares à sombra das árvores, nas calçadas.

—Vamos tomar um refrigerante—sugeriu Jorge. Ele percebia o esforço de Janaína. Ficou com pena. —Deixa pra lá...

Um casal de turistas se beijava na mesa ao lado.

—Olha aqueles dois, como se gostam!—continuou o rapaz. —É isso!

A garota deu um pulo na cadeira. Por pouco, não derrubou o copo cheio. Hvia se lembrado de uma história de amor entre Ogum, deus dos ferreiros, e lansã, deusa dos ventos e das tempestades. Começou a contar:

—... lansã ajudava no trabalho dele, manejando o fole para ativar o fogo da forja. Para demonstrar sua gratidão, Ogum deu um presente para ela: uma vara de ferro, igual a uma que ele possuía, com o dom de dividir os homens em sete partes e as mulheres em nove. Um dia, lansã se apaixonou por Xangô e fugiu. Desesperado, Ogum saiu atrás dela. Os dois lutaram muito, empunhando suas varas mágicas. Até que, no mesmo instante, a vara de um tocou o corpo do outro. Ogum ficou dividido em sete partes e lansã em nove.

—Queres dizer que é o símbolo de Ogum que está na pata do cavalo?—o garoto quis confirmar se havia entendido.

—Só pode ser. Ele é a nossa próxima pista.

—Essa pista e nada, para mim, são a mesma coisa.

—Não são, não!—o pensamento de Janaína já ia longe. —O lugar consagrado a Ogum é na entrada dos palácios dos reis. Agora é com você. Onde era o palácio do rei na metade do século XVIII?

—O Palácio das Necessidades. Fica perto do cemitério onde o nosso vô foi enterrado— respondeu o rapaz, de imediato.

—Então vamos!—propôs a garota.

Mas ele estava preocupado com o que tinha por fazer.

—É melhor deixarmos para depois. A hora do almoço logo chega e eu não fui dar o recado da tia Mafalda. De tarde, marcamos outro encontro e vamos até lá.

Janaína concordou. Jorge foi embora. Ela, então, percebeu que não havia contado para ele o que tinha visto pela janela do quarto: o engenheiro de obras e o gordo misterioso conversando.

Ainda no bar, a garota decidiu procurar Ogum, sozinha. Perguntando aqui e ali, aprendeu o caminho.

—Pega o elétrico, naquela parada—informou uma senhora, na rua.

Voltou a sensação de estar sendo seguida. Dentro do bonde, Janaína suspeitava de todos os passageiros: homens, mulheres, velhos e crianças.

"Loucura da minha cabeça", refletiu, querendo afastar o medo.

Achou melhor prestar atenção no trajeto, para não passar do ponto de descer. Ao mesmo tempo, fantasiava na mente a morada real da monarquia portuguesa.

O Palácio das Necessidades era amplo, bonito. Uma construção com dois andares, de paredes cor de terra e janelas brancas. Mas não tinha nada de imponente, como a garota havia imaginado. Lindos, eram os jardins que o rodeavam.

O verde das plantas afugentou o temor de minutos atrás, Janaína respirou o ar fresco que circulava no largo. Sentou-se na amurada da fontes em frente ao prédio, ouvindo o barulho da água a jorrar. Executivos entravam e saíam apressados do palácio. Uma pequena escada conduzia a porta principal.

A garota se aproximou. O olhar vasculhando cada detalhe da arquitetura. Estava no chão, entalhado no degrau de pedra, no canto direito junto ao pilar, o número nove. Ela se abaixou, sentindo a presença de alguém agachando-se ao seu lado.

—Eu sei o que tu andas a procurar—disse um homem, alto, magro, de bigode, com um ar ameaçador.

Janaína quis correr. A mão dele segurou o braço dela, com força.

—Tu amas a tua mãezinha, não é?—continuou o esranho.—Não gostaria que nada de ruim acontecesse com ela, estou certo?... Então, vais ter de descobrir esse ouro, mas é para mim!

—Socorro!—ela gritou, apavorada.

Com receio de um escândalo em público, o homem soltou a garota. Janaína escapou. —Podes fugir! Voltaremos a nos encontrar.—disse ele, rindo.