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Pressupostos Filosóficos

No documento O aspecto polifônico d os Lusíadas (páginas 34-36)

1.1 PRESSUPOSTOS

1.1.1 Pressupostos Filosóficos

A proposta primordial de Bakhtin, na perspectiva filosófica da linguagem, é situar-se na confluência dos dois mundos, interior e exterior, do indivíduo, a fim de compreender e explicar o fenômeno de formação e transformação do pensamento em expressão verbal. Para tanto, ele principia examinando, de modo crítico, as teorias idealista e psicologista individualista, as quais preconizam a natureza essencialmente psíquica do pensamento e a primazia da psicologia sobre a ideologia na explicação da consciência individual. A estas teorias Bakhtin (2006) opõe a tese da natureza socioideológica do pensamento, ou atividade mental, considerada como a tomada de consciência pelo indivíduo. Consciência essa que adquire forma e existência nos signos criados no meio social organizado e interiorizados pelo indivíduo por meio do processo de cognição e compreensão.

Assim sendo, Bakhtin (2006) considera o signo como elemento condicionante do pensamento. O que significa dizer que o indivíduo necessita dominar um repertório de signos interiores para habilitar-se ao exercício do ato de pensar. Tais signos, gerados nas interações sociais, internalizam-se no indivíduo através da compreensão, tornando-se base de experiência psicoideológica para a decodificação de novos signos e exteriorização do pensamento. Afirma Bakhtin (2006) que os signos são o alimento da consciência individual e a lógica dessa consciência é a lógica da comunicação ideológica, ou interação semiótica de um grupo social. Abstraindo-se o conteúdo ideológico e semiótico (a palavra, a imagem, o gesto significante, etc.), reduz-se a consciência a quase nada. O pensamento na ausência dos signos semióticos é simples ato fisiológico, desprovido de sentidos.

Por outro lado, afirma, também, Bakhtin (2006) que o pensamento, ao se formar, aspira à expressão. Termo que ele define como sendo tudo aquilo que, tendo se formado e determinado de alguma maneira na consciência individual, exterioriza-se objetivamente para outrem com a ajuda de algum código de signos exteriores. Neste ponto, instaura-se a pressuposição da comunicação social como ambiente de interatividade do pensamento entre os signos interiores e exteriores. A comunicação, por sua vez, pressupõe a existência de interlocutores e de sistemas semióticos. Na conjugação desses eventos, tem-se, em síntese, o

ser refletido nos signos ideológicos, cuja predominância recai sobre o signo verbal, a palavra. Ou seja, o indivíduo, no contexto social, é aquilo que se revela a si próprio por meio de um discurso interior, e a outrem, pela exteriorização desse discurso, que se materializa nos signos puramente ideológicos. Para Bakhtin (2006, p. 65), a palavra é a base da vida interior. Afirma ele: “Originariamente, a palavra deve ter nascido e se desenvolvido no curso do processo de socialização dos indivíduos, para ser, em seguida, integrada ao organismo individual e tornar- se fala interior”.

Admitindo-se, pois, a existência de um discurso interior, essencial à vida, a revelar-se e a refletir-se no ambiente social, conclui-se pela natureza dialógica do pensamento (dialogismo) e pela supremacia da palavra como signo ideológico da expressão desse pensamento, sendo estes os pressupostos filosóficos fundadores da tese polifônica.

Em sentido amplo, entende Bakhtin (2003) que o indivíduo é incapaz de existir fora do grande diálogo da vida. Pois, é nesse diálogo que ele busca, infinitamente, a realização de seu ideal, que é a completude do ser. Todavia, dada a natureza multifacetária do espírito humano, essa busca torna o diálogo interminável, e, por conseguinte, o ser eternamente incompleto, num mundo em devir. É nessa trajetória dialógica em busca do porvir que o ser humano evolui, impulsionado a refletir e a exprimir o mundo em que vive e também o seu mundo interior (sua consciência). Para ele, a natureza dialógica da consciência é a natureza dialógica da própria vida humana e a única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do homem é o diálogo inconcluso.29

Os pressupostos filosóficos da polifonia extraídos do pensamento de Bakhtin, acerca da comunicação humana, encontram respaldo, a priori, no princípio aristotélico do homem como um animal político e societário por natureza. Para Aristóteles (1988), a razão de o homem ser um animal sociável em mais alto grau do que os outros animais que vivem reunidos é que somente ele possui o dom da palavra. Aos outros animais a natureza outorgou a voz, que os faz entender-se entre si, que pode exprimir a sensação de dor e de prazer. A palavra, entretanto, tem a finalidade de fazer entender o que é útil ou prejudicial, e, consequentemente, o que é justo ou injusto. Aristóteles afirma, ainda, que a comunicação é o elemento de formação da sociedade primeva, à qual ele chamou a família do Estado. Por esse princípio da associatividade, o indivíduo busca a realização de seu ideal natural, ou seja, a finalidade para a qual cada ser foi criado, que é a de completar-se a si mesmo. Este é o ideal a

que todo indivíduo aspira, segundo Aristóteles, e o que de melhor pode haver para ele. Desse princípio filosófico, depreende-se, em síntese, que o ser humano tem na sociedade a sua condição existencial e que essa sociedade se organiza através da comunicação, cujo elemento essencial é a palavra.

Outro fundamento filosófico importante a ser considerado no embasamento do dialogismo como pressuposto filosófico da teoria polifônica é o diálogo socrático conforme encontramos em “O espelho de Alcibíades” acerca do “saber de si e o dever-saber”. Nesse diálogo relatado por Platão (Apud. CURY, 2006), Sócrates ensina que os olhos possuem algo similar a um espelho que são as pupilas. Estas, como um espelho, refletem o rosto de quem as olha. Assim, os olhos se veem a si mesmos quando olham em outros olhos e podem, dessa maneira, conhecer-se a si mesmos nos olhos de outro. Da mesma forma, a alma para conhecer-se a si mesma deve olhar outra alma. Uma alma servirá de espelho para a outra. Uma alma sendo espelho da outra, ambas atingirão o conhecimento de si. Esse conhecimento será ao mesmo tempo reconhecimento reflexivo através da alma do outro. O pensamento socrático encontra-se representado, em síntese, na expressão de Bakhtin (2003, p. 22): “Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem nas pupilas dos nossos olhos”. Para Bakhtin, toda expressão individual corresponde à exteriorização de uma visão de mundo constituída de múltiplas visões contraídas nos diálogos da vida. Assim como, ser, para ele, significa conviver.30

Nessa perspectiva dialógica da vida, Bakhtin encontra em Dostoiévski a expressão artística adequada ao seu projeto filosófico, em busca de uma metalinguística baseada na visão estética da vida do discurso, que é, em suma, a comunicação humana pela expressão verbal.

No documento O aspecto polifônico d os Lusíadas (páginas 34-36)

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