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SÍNTESE TEÓRICO-METODOLÓGICA

No documento O aspecto polifônico d os Lusíadas (páginas 70-95)

Nesta primeira parte do trabalho, procuramos apresentar um panorama do universo teórico de Bakhtin, deduzindo-se as concepções fundamentais da teoria do método polifônico. Tanto em seus princípios filosóficos da linguagem, quanto nos princípios artístico-literários. Com este objetivo, tivemos de recorrer aos seus diversos escritos traduzidos para o português, embora dedicando maior atenção ao estudo sobre a poética de Dostoiésvki, que é o referencial teórico primordial do nosso trabalho.

Inicialmente, é importante ressaltar a essencialidade dos fenômenos metalinguísticos que procuramos conceituar, a partir do complexo da obra do teórico: dialogismo e plurilinguismo. Esses dois fenômenos constituem os princípios básicos da polifonia. Entendemos que o dialogismo e o plurilinguismo associam-se na constituição do discurso polifônico. A não ocorrência desses fenômenos associados inviabiliza a polifonia, ainda que presente o dialogismo por sua imanência à linguagem e ao próprio pensamento. Em outras palavras, o discurso polifônico é fruto do dialogismo em mais elevado grau e o dialogismo, embora seja uma categoria estético-filosófica presente em menor ou maior proporção em todo discurso, intensifica-se pelo plurilinguismo. Destarte, o dialogismo em mais elevado grau é plurilinguístico e plurivocal, ou polifônico.

Os termos dialogismo, plurilinguismo e polifonia são, quase sempre, concebidos como sinônimos. Depreende-se, entretanto, dos conceitos formulados a partir das concepções filosóficas e estético-literárias de Bakhtin, que tais categorias não se confundem, em sentido estrito. Embora, em sentido amplo, possam ser empregadas e compreendidas como sinônimos. De qualquer modo, é importante destacar as nuanças que os distinguem, em essência, para a correta compreensão da atividade artístico-literária que resulta na produção de um texto polifônico. Tais distinções, embora sutis, são ressaltadas pelo próprio Bakhtin, às vezes explicitamente, noutras deixadas a se entrever nas explicações de ordem conceitual.

Por fim, foram verificadas as possibilidades concretas de se aplicar o método polifônico ao estudo da poesia, a partir da distinção estabelecida por Bakhtin entre os estilos literários poesia e prosa, corroborada pelo estudo de Tezza, Entre a Prosa e a Poesia: Bakhtin e os Formalistas Russsos, no qual o autor analisa alguns poemas líricos, de um ponto do dialogismo. Conclui-se pela pertinência do emprego da metodologia proposta para a leitura analítica d’Os Lusíadas focada no aspecto polifônico, em especial, pela multiplicidade de

enunciações e pelo vigor das personagens que confrontam o discurso do herói e contradizem as posições ideológicas centralizadas no plano épico. Leitura que será procedida na segunda parte do trabalho.

Não se comprovou, no entanto, a possibilidade de o discurso poético interagir com outras linguagens e outras vozes ao ponto de se tornar polifônico. Mesmo considerando poemas mais modernos como os de Manuel Bandeira e de Drummond analisados por Tezza, em razão da natureza essencialmente monológica da poesia, enquanto linguagem que aspira à originalidade da palavra e à sublimação do significado do mundo que representa. Prevalece, portanto, a tese de Bakhtin, segundo a qual a poesia, em sentido estrito, ao interagir com outros discursos, ou os torna objeto do discurso do poeta ou se torna prosa.

Conclui-se que, embora seja possível a presença de dialogismo em algum grau na poesia, independente do gênero, ela não alcançará o polifonismo, sem que se torne prosa, especialmente romance, uma vez que a polifonia, de acordo com Bakhtin, pressupõe relações dialógicas em todos os elementos da estrutura narrativa.

Dai-me hüa fúria grande e sonorosa, E não de agreste avena ou frauta ruda, Mas de tuba canora e belicosa, Que o peito acende e a cor ao gesto muda;

[...]

(OS Lusíadas, Canto I, 5, v. 1-4 )

2. OS LUSÍADAS E A POLIFONIA: distanciamento e aproximação

Nos versos em epígrafe, os quais fazem parte da invocação às musas no início do poema, tem-se o prenúncio da grandiloquência de estilo em que Camões deseja expressar a sua arte. Verifica-se também a conotação do empenho do corpo na expressão verbal como se fosse ele, de fato, cantar e não escrever. O que sugere o englobamento da literatura pela performance teorizada por Zumthor em sua tese Performance, percepção e leitura.62

A relação entre o cantar (oralidade) e o escrever (escrita), cuja dicotomia é abstraída tanto por Zumthor quanto por Bakhtin63, coloca Camões na vanguarda dos poetas que transpõem a barreira da literatura medieval (predominantemente oral) para a renascentista, carreando elementos da tradição para a modernidade. Tal transposição se reflete em diversas dimensões: na linguagem, da língua arcaica para o português culto (moderno); nos ideais de representação voltados para a reflexão sobre posicionamento do indivíduo no mundo; na originalidade do estilo artístico e na forma de narrativa. Caracteriza-se pela substituição das velhas métricas do Cancioneiro popular de Rezende pela medida nova advinda da Itália por intermédio de Sá de Miranda64. Nas palavras de Verdelho (1984, p. 736):

62 “A leitura literária não para de trapacear a leitura. Ao ato de ler integra-se um desejo de restabelecer a unidade da performance, essa unidade perdida para nós, de restituir a plenitude – por um exercício pessoal, a postura, o ritmo respiratório, pela imaginação. Esse esforço espontâneo, em vista da reconstituição da unidade, é inseparável da procura do prazer. Inscrita na atividade da leitura não menos que na audição poética, essa procura se identifica aqui com o pesar de uma separação que não está na natureza das coisas mas provém de um artifício. A performance é o ato de presença no mundo e em si mesmo” ZUMTHOR, p. 78 - 79).

63 Para Zumthor (2000, p. 81-82), a diferença entre um texto poético escrito e um texto transmitido oralmente reside somente na intensidade da presença. Na transmissão oral, a presença corporal do ouvinte e do intérprete é presença plena, carregada de poderes sensoriais, simultaneamente em vigília. Na leitura subsiste uma presença invisível, que é manifestação de um outro. Tão forte ao ponto de nos fazer comprometer o conjunto de nossas energias corporais na adesão a essa voz que nos é dirigida por meio da escritura. Bakhtin (2002b, p. 59), por sua vez, afirma: “[...] durante a leitura ou a audição de uma obra poética, eu não permaneço no exterior de mim, como o enunciado de outrem, que é preciso apenas ouvir e cujo enunciado prático ou cognitivo é preciso apenas compreender; mas numa certa medida, eu faço dele meu próprio enunciado acerca de outrem, domino o ritmo, a entonação, a tensão articulatória, a gesticulação interior (criadora do movimento) da narração, a atividade figurativa da metáfora, etc.”

64 “[...] cremos ter sido necessária a estada de Miranda na Itália, de 1521 a 1524 ou 26, para que triunfasse plenamente entre nós a tendência italianizante, que é clara alvorada com Bernardim Ribeiro, que leu Boccacio e

[...] É neste cruzamento que se situa Camões, no cruzamento do cultivo tradicional da memória e do texto vocalizado, como técnica do transporte e da armazenagem da palavra, silenciada e individualizada pela imprensa. Camões viveu este confronto entre a poesia feita de voz e a poesia feita de palavras.

A referência de Verdelho à memória e à voz como “técnica de transporte e armazenagem da palavra” nos remete, naturalmente, à presença da oralidade na obra escrita de Camões, pelo cultivo da tradição. Neste particular, observa-se que o poeta não despreza a tradição65, pautando a sua poética pelo princípio do estudo (conhecimento teórico) e também da experiência como fontes de sabedoria: “Nem me falta na vida honesto estudo/Com longa esperiência misturado/Nem engenho, que aqui vereis presente/Cousas que juntas se acham raramente (X, 154, v. 4-8)”. No tocante à língua, a obra lírica de Camões está penetrada pelo espírito da linguagem medieval e pelo plurilinguismo herdado a partir das invasões bárbaras à Península Ibérica, refletidos na língua galaico-portuguesa e na língua castelhana dominantes nas trovas populares e nas novelas de cavalaria. Camões canta em sua lírica da mais simples “Leonor”66 que “descalça vai à fonte” à mais nobre “Natersia” (D. Catarina de Ataíde)67 dos saraus palacianos. Verseja em redondilhas (medidas velhas), em sonetos, odes, canções e églogas (medidas novas).

Os Lusíadas, entretanto, embora guardem o espírito da tradição no conteúdo, de ideal heroico cavaleiresco, na língua assume uma purificação fundamentada nos cânones latinos: “E na língua, na qual quando imagina/Com pouca corrupção crê que é Latina (I, 33, v.7-8)”. Afastam-se, com isto, da influência castelhana que dominou mais fortemente a literatura precedente, representada especialmente pela obra de Gil Vicente. Na expressividade das oitavas, em versos alexandrinos heroicos e sáficos, n’Os Lusíadas, ouve-se a marcialidade do trotar dos cavalos nas batalhas históricas de Ourique, Salado e Aljubarrota, as mais notáveis

poetar, eram os grandes mestres da poesia portuguesa Bernardim Ribeiro, a quem se refere numa das cartas, e Sá de Miranda” (CIDADE, 1984, p. 121).

65 Conforme Saraiva (1996, p. 36); “[...] Podemos concluir desta breve análise que a linguagem d’Os Lusíadas é um combinação original da língua culta latinizante com a língua tradicional, oral”.

66 “Descalça vai pera fonte/Lianor, pela verdura/Vai fermosa e não segura”. Esse mote faz parte de uma das redondilhas pelas quais Camões recupera em sua lírica o tema e os traços estéticos das cantigas de amigo da época provençal. – Retirado do livro Soneto de Camões, de Torralvo e Minchilho (Org.), (2001, p.164).

67 Natercia é anagrama de Caterina, dama da corte, cantada na lírica de Camões. Cidade (1984, p. 48) afirma: “[...] É como, se sabe o anagrama sob que se tem sentido oculta D. Catarina de Ataíde, a dama com a qual mais a tradição do que a história tem tecido a intriga amorosa que determinou desterros do poeta”. Um dos sonetos em que aparece a referência à dama “Na metade do Céu subido ardia”: [...] quando Liso pastor, num campo verde/Natércia, crua Ninfa/com mil suspiros tristes que derrama:/Por que te vás de quem por ti se perde/para quem pouco te ama/(suspirava)/[E] o Eco lhe responde: Pouco te ama”. Tercetos recolhidos de Sonetos, Camões (1990).

dentre tantas outras. Também o lirismo no alarido das mães e esposas a se despedirem de seus marinheiros (heróis) no ritual do embarque na esquadra de Vasco da Gama, na praia do Restelo. Veem-se e sentem-se as imagens do choro de Maria, de Inês, e de Adamastor e Vênus e de Baco. Pelas marcas de oralidade, ouve-se também o burburinho dos marinheiros nas fainas dos conveses sob os gritos do mestre: “Amaina68, (disse o mestre a grandes brados),/Amaina (disse), amaina a grande vela!” (VI, 71, v. 3-4). O idílio no sussurrar das ninfas enamoradas na Ilha dos Amores. A galhofa dos marinheiros a zombarem do companheiro Veloso despencando morro abaixo enxotado pelos inóspitos nativos africanos:

Disse então a Veloso um companheiro (Começando todos a sorrir):

“Oula, Veloso amigo, aquele outeiro É melhor descer que de subir.” “Si, é (responde o ousado aventureiro); Mas, quando eu pera cá vi tantos vir Daqueles Cães, depressa um pouco vim, Por me lembrar que estáveis cá sem mim.” (Canto V, 35)

Esta passagem envolvendo o marinheiro Veloso é de grande significação para o estudo do aspecto polifônico d’Os Lusíadas. A presença do riso no texto épico é uma prova incontestável da contaminação do gênero. Ou seja, é um indício da mixagem dos gêneros superiores e inferiores.69 Ressalte-se que toda a análise de Bakhtin sobre a evolução do romance polifônico aponta para o riso como o elemento fundamental de sua gênese, sob a influência da cosmovisão carnavalesca e parodística, cuja função é o destronamento do discurso literário oficial (dominante)70.

Por esta razão, além de outras apresentadas, tais como a presença dos vários narradores e as intervenções diretas do poeta, podemos ler Os Lusíadas na contemporaneidade e extrair deles, com o mesmo interesse despertado em Bakhtin pelas obras de Dostoiévski, os

68 Colher ou arriar velas (terminologia marinheira).

69 “Na época do Renascimento – época da carnavalização profunda e quase total de toda a literatura e da visão de mundo – a menipeia se introduz em todos os grandes gêneros da época [...]” (BAKHTIN, 2002a, p.136).

70 - “É justamente o riso que destrói a distância épica e, em geral, qualquer hierarquia de afastamento axiológico. Um objeto não pode ser cômico numa imagem distante; é imprescindível aproximá-lo, para que se torne cômico; todo cômico é próximo [...]. O riso destrói o temor e a veneração para com o objeto e com o mundo, coloca-o em contato familiar e, com isto prepara-o para uma investigação absolutamente livre. (BAKHTIN, 2002a, p. 413- 414).

traços estilísticos que os tornam uma obra singular que fortalece a arte da linguagem literária, tendo o discurso como o objeto central do estudo procedido.

A singularidade de Camões está na elaboração de uma narrativa composicionalmente épica, mas que ao mesmo tempo engloba vários discursos líricos desviantes. Tais discursos ressaltam a multiplicidade de planos do poema (característica da prosa romanesca) sem, contudo, prejudicar o encadeamento lógico-formal da epopeia, resultando no acabamento monológico convencional do gênero. Neste aspecto, Os Lusíadas são uma obra monológica, mas que deixam transparecer traços de dialogismo e de plurilinguismo essenciais ao fenômeno polifônico. Outro aspecto relevante da poética camoniana é o procedimento relativo à composição das personagens. As personagens-narradoras secundárias de Camões são, na maioria, criações discursivas ou retóricas, as quais assumem, no discurso, características humanas ou mitológicas, tais como o Velho do Restelo, Adamastor, Veloso e Leonardo. Além da adoção daquelas personagens consagradas pela mitologia greco-romana, tais como Júpiter, Marte, Baco, Netuno e Vênus.

A caracterização das personagens parece importar para Camões apenas no sentido alegórico da contenda entre o mito e o humano, entre a inocência e o esclarecimento. Nenhuma personagem atuante no poema tem uma história individual. Identificam-se por duas categorias genéricas, homens e divindades. Todas as intrigas são engendradas por meio de discursos que refletem a posição instável do homem diante do progresso avassalador que antes de qualquer coisa destrói os mitos e as crenças.71 O peso valorativo recai justamente sobre a expressão da consciência dessas personagens a respeito do que se passa em seus universos circundantes. Como suas existências são afetadas pelo progresso científico, político, social, cultural e religioso e como reagem, posicionando-se axiologicamente por meio de seus

71 Conforme a concepção de Adorno (2006, p. 17 e 21, itálicos do autor) sobre o conceito de esclarecimento: “No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. [...] O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a realidade daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las. É assim que seu em-si torna para-ele”.

- Paz (2003, p. 66) afirma que o homem moderno serve-se da técnica como seu antepassado das fórmulas mágicas. Acontece que, ao contrário das fórmulas mágicas, a técnica não lhe abre porta alguma, mas fecha-lhes toda possibilidade de contato com a natureza e com os seus semelhantes: a natureza converteu-se em um complexo sistema de relações causais no qual as qualidades desaparecem e se transformam em puras quantidades; e seus semelhantes deixaram de ser pessoas e são utensílios, instrumentos. Esta é uma constatação do crítico que enxergamos também n’Os Lusíadas como antevisão do poeta. Razão de sua dor crônica, que não era só dele, mas de todo poeta maneirista, cujas obras são marcadas pela contradição profunda do gosto de ser triste. Condição anunciada da humanidade alienada no futuro das sociedades de consumo.

discursos. Surgem, assim, n’Os Lusíadas, em terceiro plano, os juízos de valor, as críticas, as invectivas, as polêmicas ideológicas veladas e as confissões, cuja forma de apresentação (multiplanar) e a natureza semântica dos enunciados reduzem o distanciamento épico e aproximam a narrativa dos acontecimentos contemporâneos à sua enunciação. Colocam-nos, assim, paradoxalmente, diante de um dos pressupostos do romance. Na concepção de Bakhtin (2002b, p. 75): “O romance se formou precisamente no processo de destruição da distância épica, no processo da familiarização cômica da representação artística no nível de uma realidade atual, inacabada e fluida”.

Não obstante os desvios líricos e os indícios de dialogismo e de plurilinguismo, a proeminência dos elementos estruturais da narrativa épica, mormente o discurso poético preponderantemente objetificado, e a essência do conteúdo também predominantemente épico afasta quaisquer possibilidades de considerar Os Lusíadas uma obra polifônica e este não é o propósito do trabalho. Os pressupostos artístico-literários da polifonia descartam a hipótese de uma obra poética, ainda que seja uma narrativa, alcançar o grau de dialogismo que possa caracterizá-la como polifônica, em razão da tendência do discurso poético ao monologismo e também do contexto histórico da obra, desfavorável ao processo polifônico.

Bakhtin (2002a, p. 31) considera impossível desprezar-se a historicidade no estudo das formas literárias. Por conseguinte, para ele, a polifonia somente seria possível a partir do realismo representado, neste estilo, por Dostoiévski que é o criador da polifonia.

De acordo com a concepção do determinismo das condições históricas, Dostoiévski encontrou a contradição e a multiplicidade de planos na realidade de sua época e foi capaz de percebê-los no universo social objetivo. Ambiente no qual, ainda segundo Bakhtin (2002a, p. 27), os planos não são etapas, mas estâncias, e as relações contraditórias entre eles não são um caminho ascendente ou descendente do indivíduo, mas um estado sincrônico da sociedade. A multiplicidade de planos e o caráter contraditório da realidade social eram dados como fatos objetivos da época. Conclui-se, pois, que a capacidade do autor em captar a diversidade de processos interativos concomitantes, em elaboração naquelas condições históricas peculiares ao seu tempo, tornou possível o surgimento do romance polifônico como ressonância de múltiplos diálogos.

Para submeterem-se, portanto, Os Lusíadas ao exame polifônico se deve partir do pressuposto de que se vislumbram em sua forma arquitetônica elementos que podem ser

considerados traços polifônicos. E neste sentido, apenas, buscar no texto a identificação desses elementos e suas possíveis ligações com as estéticas que deram origem ao romance polifônico. Para tanto, torna-se imprescindível uma abordagem, ainda que superficial, sobre gênero e forma de composição narrativa: qual a relação entre a epopeia e o romance e quais as linhas genealógicas a qual pertencem? Onde se cruzam os fatores históricos que condicionam um e outro? É necessário considerar também a relação entre os autores e seus respectivos contextos sociais e individuais, assim como a distância no tempo e no espaço geográfico de seus contextos de recepção imediata. Bakhtin (2002a, p. 159) destaca a importância de conhecimento dessa natureza no estudo das relações de influência de gêneros sobre uma determinada obra, afirmando: “Quanto mais pleno e concreto for o nosso conhecimento das relações de gênero em um artista, tanto mais a fundo poderemos penetrar nas particularidades de sua forma do gênero e compreender mais corretamente a relação de reciprocidade entre a tradição e a novidade nessa forma”.

Na perspectiva histórica em que se desenvolveram as formas narrativas que convergiram no romance, podemos encaixar com justa medida a arte de Camões empregada n’Os Lusíadas para considerar esta obra como geradora de forma, pela sua originalidade.

Camões foi um homem de fronteira, que viveu e escreveu no limiar das mais profundas transformações da humanidade e soube auscultar e interpretar os rumores do porvir. Bakhtin (2002a) nos fala da Renascença como o limiar do pensamento voltado para o homem como centro do mundo. Nesse contexto, Camões transpôs para a sua obra o caos estabelecido na transição do medievalismo para a modernidade72. Momento no qual se operou grande turbulência, pela contradição entre a sujeição do homem ao império da brutalidade, da servidão, da fome, da peste, da superstição e do fanatismo religioso e o desenvolvimento do pensamento humano como prenúncio de libertação. Desenvolvimento esse representado, em suma, pela revolução no conhecimento do cosmo promovida por Copérnico, com a publicação de De revolutionibius orbes celestium, em 1543, que altera a ordem planetária; pela cisão da

72 Modernidade que começa a se preparar com o movimento humanista-renascentista, a partir do final do século

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