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O aspecto polifônico d os Lusíadas

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

FERNANDO ALVES PEREIRA

O ASPECTO POLIFÔNICO D'OS LUSÍADAS

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FERNANDO ALVES PEREIRA

O ASPECTO POLIFÔNICO D'OS LUSÍADAS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Estudos da Linguagem, área de concentração em Literatura Comparada.

Orientador: Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo

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Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Pereira, Fernando Alves.

O aspecto polifônico d’Os Lusíadas / Fernando Alves Pereira. – 2010. 165f.

Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, Natal, 2010.

Orientador: Prof.Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo.

1. Camões, Luís de, 1524?-1580 – Lusíadas. 2. Análise do discurso literário. 3. Polifonia. 4. Poesia portuguesa. 5. Prosa (Literatura). I. Araújo, Humberto Hermenegildo de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

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FERNANDO ALVES PEREIRA

O ASPECTO POLIFÔNICO D'OS LUSÍADAS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Estudos da Linguagem, área de concentração em Literatura Comparada.

Aprovado: em dezembro de 2010.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo (Orientador)

UFRN – Natal

___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira

UFRN – Natal

___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Derivaldo dos Santos

UFRN – Natal

___________________________________________________________________________ Prof. Dr. José Luiz Ferreira

UERN/UFERSA – Natal

__________________________________________________________________________ Prof. Dr. Gilberto Mendonça Teles

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, a Deus, por permitir a graça de chegar ao momento presente, e aos meus pais, pelo sacrifício e o desprendimento com que lutaram, a princípio, pela sobrevivência de todos os filhos na aridez do solo sertanejo, depois para propiciar-nos os estudos básicos, decisivos na construção de nossos futuros.

Em segundo lugar, agradeço às pessoas que participaram diretamente na realização deste trabalho, de grande significação para mim e, espero, signifique um mínimo que seja para a pesquisa literária, especialmente incentivando a continuidade da leitura da obra camoniana, especialmente:

à Aparecida, minha companheira querida de todos os momentos, pela paciência e a compreensão nas horas de maior dificuldade;

à Fernanda, Antonio e Ana Vitória, meus queridos filhos, pela participação mais que direta na elaboração deste trabalho e na vida;

ao professor Humberto Hermenegildo de Araújo, meu orientador, pela solicitude com que sempre me atendeu, desde o Mestrado, como professor e membro da Banca Avaliadora naquela ocasião, prestando-me sempre as orientações seguras e atenciosas. Agradeço, acima de tudo, pela paciência e serenidade com que conduziu a minha orientação, além do profissionalismo publicamente reconhecido. A relação amigável, não obstante a distância em que tivemos de permanecer por contingências de minha vida familiar, muito me ajudou a superar aqueles momentos mais difíceis em que pensamos, às vezes, em desistir da tarefa. Por tudo, o meu muito obrigado;

à professora Zenóbia Collares Moreira Cunha, minha orientadora do Mestrado e incentivadora ao doutorado;

à professoras Conceição Flores, orientadora da Monografia, Francinete, Ilane e Ana de Santana, da graduação em Letras, pelos primeiros incentivos nos caminhos da pesquisa literária;

aos professores Derivaldo dos Santos e Andrey Pereira de Oliveira, membros da Banca Avaliadora da Qualificação, pela atenção dedicada à leitura de meu trabalho e pelas observações e sugestões, que muito me ajudaram na definição de alguns rumos para a finalização do estudo, e pela honra de suas presenças na Banca Examinadora;

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aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, representados na pessoa de Elizabete, Secretária, pela colaboração permanente, de maneira profissional e cordial.

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Assim como a bonina, que cortada Antes do tempo foi, cândida e bela, Sendo das mãos lacivas maltratada Da minina que a trouxe na capela, O cheiro traz perdido e a cor murchada: Tal está, morta, a pálida donzela, Secas do rosto as rosas e perdida A branca e viva cor, co a doce vida.

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RESUMO

Estudo sobre o aspecto polifônico d’Os Lusíadas. Poema épico escrito em Língua Portuguesa por Luís de Camões, cujo tema central é a aventura da viagem de Vasco da Gama no descobrimento de novas rotas marítimas para as Índias, narrando, secundariamente, as batalhas históricas travadas no percurso da formação e consolidação do Império Português. O objeto do estudo são os diversos discursos que compõem a narração do poema, examinando a possível relação de influência estética entre a poesia épica camoniana e a prosa romanesca que se desenvolve na modernidade, a partir de D. Quixote, consagrando-se nos romances polifônicos de Dostoiévski. O estudo enfoca a singularidade de Camões na elaboração de uma narrativa estruturalmente épica, mas que ao mesmo tempo engloba vários discursos desviantes (excursos). Discursos esses que revelam a multiplanaridade e a plurivocalização (características da prosa romanesca) sem, contudo, prejudicar o encadeamento lógico-formal da epopeia, resultando no acabamento monológico canônico do gênero épico. Este aspecto caracteriza Os Lusíadas como uma obra monológica, conforme o cânone de então, mas que deixa transparecer traços de dialogismo e de plurilinguismo essenciais ao fenômeno polifônico. Outro aspecto relevante da poética camoniana, ressaltado no presente estudo, é o procedimento relativo à expressividade das personagens. As personagens-narradoras do poema são, na maioria, criações discursivas ou retóricas, as quais assumem, no discurso, características humanas ou mitológicas. Artifício que permite ao poeta apresentar uma visão multifacetária dos fatos narrados. A análise dos discursos apoia-se inteiramente na teoria polifônica de Mikhail Bakhtin, citando, acessoriamente, pontos de vista de outros teóricos, à medida que se julgam compatíveis com a teoria adotada.

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ABSTRACT

A study about the polyphonic aspect of The Lusiads. An epic poem in Portuguese Language written by Luís de Camões, that narrates the adventure of the journey of Vasco da Gama in the discoverer of new shipping lanes for the Índias. Secondarily, tells the historics battles engaged during the process of foundation and consolidation of the Portuguese Empire. The object of the study are the diverse speeches that compose the poem’s narration, aiming at to the possible aesthetic relation of the epic poetry of Camões with the novelistic prose developed in the modernity, starting with D. Quijote and consacrating it at polyphonic novels written by Dostoiévski. The sdudy focuses the singularity of Camões lies in the elaboration of a narrative structurally epic, but at the same time contains several deviating speeches. Such speeches emphasize the multiple planes and multiple voices (characteristics of novelistic prose) without, however, prejudice the interlinking logical-formal epos, resulting in the monological finish conventional of the epic gender. This feature characterizes The Lusiads as monological literary work, but also shows dialogism and plurilinguism, essentials to the polyphonic phenomenon. Another prominent aspect of the poetry of Camões is the relative procedure to the expressiveness of the characters. They are, in the majority, rhetorical creations, which assume, in the speech, human or myhtological characteristics. Stratagem that permits to the poet to emit a multiple faces of vision of the facts told. The analysis of the speeches supports-itself entirely in the polyphonic theory of Mikhail Bakhtin, shall be cited, accessory, viewpoints of others theoretical, as long if it is judged compatible with the theory adopted.

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RESUMEN

Estudio sobre el aspecto polifónico Del Lusíadas. Poema épico escrito en portugués por Luis de Camoes, cuyo tema central es la aventura del viaje de Vasco da Gama, que buscan el descubrimiento de nuevas rutas marítimas a la India. En segundo lugar, describe las batallas históricas en el curso de formación y consolidación del Imperio Portugués. El objeto del estudio son los discursos que conforman el poema narrativo, con miras a la posible relación la las influencias estilísticas entre la poesía épica camonina y la novela en prosa que se desarrolla en la modernidad de D. Quijote a las novelas polifónicas de Dostoievski. La singularidad de Camões se encuentra en la preparación de una épica narrativa estructural, pero al mismo tiempo incluye desviados varios discursos (apartes). Tales declaraciones revelan la multiplanaridade y plurivocalização (características de la novela en prosa), pero sin prejuicio de la estructura de la epopeya, dando lugar a la terminación convencional del género épico. En este sentido, El Lusíadas es una obra monológica, sino que muestran huellas de diálogo y multilingüismo, esenciáis para la polifonía. Otro aspecto importante de la poética Camonina cubierto por este estudio es el procedimiento para la expresividad de los personajes. Los personajes-narradores del poema son creaciones sobre todo retóricas o discursivas, que asumen, en el discurso, las características humanas o mitológicas. Dispositivo que permite al poeta para presentar una visión multifacética de los hechos. El análisis del discurso se basa enteramente en la teoría polifónica de Mijaíl Batín, mencionando, por cierto, las opiniones de otros teóricos que consideren compatibles con la teoría adoptada.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...10

PRIMEIRA PARTE – POLIFONIA 1 A TESE DE BAKHTIN: Pressupostos e Conceitos ...28

1.1 PRESSUPOSTOS ...31

1.1.1 Pressupostos Filosóficos ...32

1.1.2 Pressupostos Artístico-Literários ...35

1.1.2.1 Crítica de Bakhtin à estética material ...38

1.2 CONCEITOS ...45

1.2.1 Polifonia ...48

1.2.2 Dialogismo ...52

1.2.3 Plurilinguismo ...57

1.3 A POESIA NO ENFOQUE POLIFÔNICO ...59

1.4 SÍNTESE TEÓRICO-METODOLÓGICA ...70

SEGUNDA PARTE – O ASPECTO POLIFÔNICO D’OS LUSÍADAS 2 OS LUSÍADAS E A POLIFONIA: distanciamento e aproximação ...73

2.1 ANÁLISE DO ASPECTO POLIFÔNICO D’OS LUSÍADAS ... 96

2.1.1 Discurso do Autor ...102

2.1.2 Discurso do Narrador ...119

2.1.3 Discurso do Protagonista ...122

2.1.4 Discursos das Personagens ...133

2.1.4.1 Baco (Canto I) ...133

2.1.4.2 Velho do Restelo (Canto IV) ...139

2.1.4.3 O Gigante Adamastor (Canto V) ...144

2.1.4.4 O Marinheiro Leonardo (Canto IX) ...151

2.2 SÍNTESE TEÓRICO-INTERPRETATIVA ...153

CONCLUSÃO...156

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INTRODUÇÃO

Cessem do sábio Grego e do Troiano As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandro e de Trajano A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Neptuno e Marte obedeceram. Cesse tudo que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta [...]

No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho Não no dá a pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e na rudeza

Dhüa austera, apagada e vil tristeza. (Camões, Os Lusíadas, Canto I, 3 e Canto X, 145) 1

A presente tese foi idealizada a partir de estudos anteriores. Inicialmente no curso de graduação em Letras, resultando no Trabalho (monográfico) de Conclusão de Curso (TCC), intitulado Auscultando os suspiros de Camões nas entranhas da épica lusitana. Naquela ocasião já nos fascinava a intuição de um plano terciário2 do poema. Uma espécie de contracanto, no qual o poeta desabafa as suas mágoas, queixando-se, de modo crítico e, às vezes, irônico do “desconcerto” do mundo e da pátria submetida ao império dos vícios corruptíveis, “da cobiça e da rudeza, de uma austera apagada e vil tristeza”, conforme implícito na contradição exemplificada nas estrofes em epígrafe. Esse trabalho foi ampliado pela pesquisa de mestrado, cuja dissertação, Uma leitura dos excursos n’Os Lusíadas, analisa esse plano terciário implícito do poema, o qual centraliza os discursos dissonantes da epopeia proferidos diretamente pelo poeta e por diversas personagens-narradoras.

1 As citações d’Os Lusíadas são extraídas da edição didática organizada por Emanuel Paulo Ramos, publicada

pela Editora Porto em 2009, com aspas e itálicos do organizador. Podemos, eventualmente, citar o texto original da primeira edição do poema para esclarecimento analítico.

2 O plano terciário implícito é uma inferência com base nos discursos dissonantes (excursos). Consideram-se

normalmente dois planos narrativos n’Os Lusíadas. A viagem de Vasco da Gama às Índias e a História de Portugal desde a sua fundação até a época da viagem. Esses planos podem ser deduzidos do próprio texto: a) Na proposição do poeta (Canto I, 1, v. 1-4 e 2, v. 1-4) - “As armas e os barões assinalados/Que da

Ocidental da praia Lusitana/Por mares nunca de antes navegados/Passaram ainda além da Taprobana [...]/E também as memórias gloriosas/Daqueles Reis que foram dilatando/A Fé, o Império, e as terras viciosas/De África e Ásia andaram devastando [...]”; e

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Entendemos que nos excursos3 se concentra a grande parte dos discursos constituintes do desvio do poema dos modelos épicos tradicionais (greco-latinos) nos quais se inspira. A partir desses indícios, formularemos as hipóteses para o estudo de seu aspecto polifônico. Estudar Os Lusíadas no século XXI suscita alguma curiosidade quanto à novidade deste estudo, diante de tudo o que já se investigou na obra camoniana durante os mais de quatro séculos de sua publicação e de extensa e intensa exegese. Em que pese a consciência do leitor especializado sobre o caráter inesgotável dos sentidos de uma obra literária, uma questão que, na prática, insinua-se em geral, é a de um possível exaurimento de temas a serem explorados no poema. A afirmação decorre da constatação do fato nas relações concretas que mantivemos com categorias diversas de leitores. Fora e dentro do âmbito acadêmico, nos níveis de graduação e de pós-graduação, no percurso dos trabalhos que vêm sendo realizados.

Não obstante a obviedade, adotamos neste intróito um procedimento dialógico que Bakhtin (2002a, p. 197) denomina “antecipação da réplica”4, por nutrirmos a modesta esperança de que o trabalho possa vir a ser lido tanto por especialistas, quanto por iniciantes na profissão das letras e, quiçá, por leitores diletantes.

Os ensinamentos colhidos nas leituras realizadas nos permitem afirmar a legitimidade de possíveis indagações suscitadas, nos termos ora colocados. Questão, suposta, que nos serve de alerta e exige a formulação segura das hipóteses a serem levantadas nesta nova etapa da pesquisa. Antecipa-se a réplica para responder, de antemão, à pergunta possível imaginada. Ao mesmo tempo, justificamos para nós, também, a importância dessa resposta como incentivo à busca de novos sentidos, a serem extraídos da sabedoria dos grandes espíritos do passado por intermédio do diálogo imprescindível com a tradição literária.5

3 “Excurso s.m (Do lat. excursus, corrida, excursão). Desvio do tema ou assunto principal; digressão;

divagação”. Verbete extraído da GRANDE ENCICLOPÉDIA Larousse Cultural. São Paulo: Círculo do Livro, 1998, v. 12, p.2362.

4 Consiste em expressar num enunciado uma resposta a uma réplica que se imagina provável. O dialogismo se

configura na reflexão das palavras (presumidas) do outro pela reação antecipada no enunciado primeiro (concreto). Bakhtin (2003, p. 333) também denomina “compreensão responsiva”. Em razão de a palavra querer sempre ser ouvida, entendida e respondida e mais uma vez responder à resposta.

5 A tradição entendida como fundamento para o surgimento do novo. De acordo com Moisés (2001, p. 21), a

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Bielinski (apud BAKHTIN, 2003) já dizia que cada época sempre descobre algo novo nas grandes obras do passado. Para Bakhtin (2003, p. 363-364), o próprio autor e os seus contemporâneos veem, conscientizam e avaliam em primeiro lugar o que está mais próximo do seu cotidiano. “O autor é um prisioneiro de sua época, de sua atualidade. Os tempos posteriores o libertam dessa prisão, e os estudos literários têm a incumbência de ajudá-lo nessa libertação”. Já Ítalo Calvino, ao discutir a importância de se ler os clássicos, afirma que deveria existir um tempo na vida adulta dedicado à revisitação das leituras mais importantes da juventude, pois, ainda que os livros permaneçam os mesmos (mas eles também mudam, à luz de uma perspectiva histórica diferente), nós certamente mudamos, e o encontro é um acontecimento novo. Nesse caso, assevera o autor, o verbo ler ou reler não tem muita importância, pois toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira. Por fim, o autor elenca diversas acepções para se definir uma obra clássica, das quais destacamos duas:

- um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer (CALVINO, 2007, p. 11); e

- um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente a repele para longe (CALVINO, 2007, p. 12).

Revisitando-se uma modesta parcela da fortuna crítica da obra de Camões, verificou-se uma gama de temas estudados que sugere imaginar-verificou-se uma escasverificou-sez de assuntos relevantes a merecerem, ainda, um trabalho de pesquisa. N’Os Lusíadas, estudaram-se, amplamente, além de suas dimensões linguísticas, temas como amor, moral, ética, política, filosofia, religião, mitologia, música, geografia, astronomia, navegação, medicina, justiça, antropologia, religião etc. Por outro lado, não há dificuldades em se justificar a permanente necessidade de estudar Os Lusíadas, pois, a poética camoniana está inserida no cânone ocidental como geradora de forma artístico-literária, representativa do espírito de sua época e embrião de estéticas ulteriores.

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histórico como elemento determinante do juízo estético, elegendo as obras que devem permanecer, segundo o sentido que elas representam para uma época, uma sociedade, um gênero literário. Esse processo é preconizado por Hans Robert Jauss, professor da Universidade de Constança, na Alemanha, com o fito de resgatar a importância da história literária através do estudo da trajetória das obras, de acordo com suas recepções pelo público leitor ao longo do tempo. Opõe-se, assim, ao idealismo literário que preconizava valores eternos e imutáveis intrínsecos à própria obra. Para Jauss (1994), a criação literária só continuará produzindo os seus efeitos à medida que sua recepção se estenda pelas gerações futuras ou venham a ser por elas retomada. Por intermédio dos leitores que novamente se apropriem da obra passada ou dos autores que desejem imitá-la, sobrepujá-la ou refutá-la6.

É mister salientar, com as devidas ressalvas, que muito do que se escreveu sobre Os Lusíadas resulta de especulações, às vezes, tendenciosas (depreciativas ou apaixonadamente enaltecedoras). Tanto sobre a pessoa de Camões quanto sobre a aventura dos portugueses no empreendimento das grandes navegações. Deixou-se, contudo, um pouco de lado o aprofundamento no conjunto dos discursos de seus diversos narradores. Em conferência, por ocasião das comemorações do IV Centenário da publicação d’O Lusíadas, Silva (1972, p. 3-4) fez a seguinte observação:

Duas categorias de leitura d’Os Lusíadas, porém, me parecem poder ser discriminadas como paradigmáticas leituras viciosas, empobrecedoras e mutilantes da epopeia camoniana. A primeira dessas categorias identifica-se com a leitura instrumentalista, digamos assim, que procura tão-somente a proposição doutrinária, a fórmula exaltadora do sentimento nacional, a palavra glorificadora de um passado histórico, ignorando ou desprezando, todavia, que Os Lusíadas são um poema, uma criação estética que, mercê do seu valor intrínseco, se universalizou e intemporalizou. [...] A segunda das mencionadas categorias constitui o oposto da anterior, identificando-se com leituras que, por motivos e preconceitos de ordem ideológica, procuram esvaziar o poema do seu ethos nacional e político, que Camões consubstanciou na estrutura poética da sua obra e sem o qual Os Lusíadas não seriam pura e simplesmente Os Lusíadas.

O que transparece no discurso de Vítor Manuel de Aguiar e Silva é que Os Lusíadas

passaram a ser um poderoso instrumento político, que tanto pode servir aos ideais legítimos de patriotismo quanto àqueles puramente ideológicos.

Camões tornou-se vulto histórico e Os Lusíadas símbolo nacional dos portugueses. Após viver na pobreza e morrer na miséria, tendo sido enterrado como indigente (em campa

6 “A literatura como acontecimento cumpre-se no horizonte de expectativa dos leitores, críticos e autores, seus

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rasa), o poeta foi alçado à categoria de grande vulto nacional. Seus restos mortais (supostamente) transladados para um local de honra, Mosteiro dos Jerônimos, repousam hoje ao lado da lápide de Vasco da Gama, herói português dos descobrimentos e protagonista da epopeia. O dia da morte de Camões, 10 de junho, passou a ser comemorado como o dia de Camões, o dia de Portugal e o dia das Comunidades Portuguesas.7 O estudo do texto d’Os Lusíadas faz parte, até hoje, do programa oficial de ensino da Língua Portuguesa em Portugal. Estátuas, bustos e memoriais de Camões estão espalhados por toda parte naquele país, inclusive no Museu da Marinha, entre os monumentos dos grandes navegadores8. Estes são

exemplos de reconhecimento da importância do poeta e de sua obra para o resgate da autoestima e a preservação da memória nacional. Há que se questionar, contudo, o fato de que tal reconhecimento tenha ocorrido tardiamente9. Conota-se, em parte, uma apropriação oficial pelo poder político, de cunho casuístico, da fama do poeta alcançada pelos méritos de sua obra. Ainda relativamente às comemorações do IV Centenário de publicação do poema, Sena (1972, p. 3) destacou em sua conferência:

[...] Os Lusíadas vieram a tornar-se uma obra bastante suspeita, por exactamente as mesmas razões que deram a essa obra fama internacional. A própria crítica portuguesa retrai-se perante ela, ou é-lhe abertamente hostil, uma vez que o livro se tornou de tal modo um símbolo da glória imperial portuguesa, e de tal maneira uma arma nacionalista para excitar o orgulho português de um passado que, e com razão, muitos consideram que ainda pesa demasiado na vida portuguesa. E, a estrangeiros, tão suspeitosos de intenções e tendências colonialistas na cultura portuguesa, poderá parecer que celebrar Os Lusíadas é de certa maneira uma capa para tais negros desígnios. É muito difícil separar Camões e a sua epopeia, do que os homens dela fizeram por séculos, usando-a para os seus pessoais propósitos.

7 Desde a implantação da República, em 5 de outubro de 1910, quando foram revistos os feriados nacionais de

cunho religiosos, visando à laicização da sociedade em detrimento à influência da Igreja, foram dadas ao municípios a possibilidade de escolher um dia do ano que representasse suas festas tradicionais e municipais. Lisboa escolheu o dia 10 de junho, em honra a Camões. A reivindicação dessa data já teria sido motivo de manifestações republicanas ainda durante a Monarquia, em 1880, por ocasião das comemorações do tricentenário da morte do poeta. Com a implantação do Estado Novo, em 1933, chefiado por António de Oliveira Salazar, a data passa a ser festejada em âmbito nacional. Assim, o regime ditatorial amplia algumas práticas republicanas, mas não exatamente com a mesma proposta, positivista e laicizista. Mas sim com o propósito de se apropriar de símbolos e heróis da República como ideário nacionalista de cunho propagandístico do regime político estabelecido. De acordo com Costa (2004).

8 Vistos in loco, em visitarealizada a Portugal pelo pesquisador entre outubro e novembro de 2007.

9 Quando Camões faleceu, em 10 de junho de 1580, Os Lusíadas já estavam publicados havia oito anos, desde

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Não obstante a controvertida apropriação oficial do poema, temos de admitir que isso aconteça justamente pela força que emana das profundezas do texto, inesgotável de sentidos encobertos em virtude das condições político-religiosas que imperavam no tempo de sua elaboração. Fato que deve ser celebrado a qualquer pretexto, embora a celebração que reclamam os estudiosos citados, entre outros, seja a leitura isenta e contínua.

Quanto ao reconhecimento do poeta, “antes tarde do que nunca”. Camões merece essa honra, não só pelo poema épico, mas também pela valiosa obra lírica que nos legou.

N’Os Lusíadas, um dos fenômenos literários que desperta a nossa atenção imediata é a profusão de vozes com marcas de oralidade (discursos diretos). Fator que nos motiva a realizar esse novo estudo a partir de uma ótica dialógica, segundo os parâmetros do método polifônico formulado por Bakhtin. Não somente pela presença de discursos diretos, pois esse aspecto por si só não caracteriza dialogismo nem polifonia, mas, principalmente, pelas contradições que eles apresentam em relação ao discurso narrativo central.

A relevância de tal estudo reside na oportunidade do exame teórico-literário dos diversos discursos que compõem a narração do poema, visando a uma possível relação de influência estilística, pelo aspecto polifônico, entre a poesia épica camoniana e a prosa romanesca que se desenvolveu na modernidade, a partir de D. Quixote10.

Muito se tem discutido a respeito da natureza híbrida do poema, entre os gêneros épico e lírico, mas de um ponto de vista restrito a uma concepção conservadora da natureza dos gêneros poéticos. Trata-se da objetividade épica versus a subjetividade lírica, a partir da divisão triádica dos gêneros literários. Por essa via, não se discute a possibilidade de relativização da autonomia da voz do poeta em favor da liberdade das vozes das personagens. Desse ponto de vista, sejam os discursos épicos ou líricos, esses pertencem ao poeta, independente de quem está falando, se narrador ou personagens. Assim, reduz-se o poema a uma única visão e a uma única voz absorvente das demais. Esta é uma posição bastante

10 - Ao analisar a evolução do romance europeu, Bakhtin (2002b, p. 201) afirma: “[...] O romance deve ser o

microcosmo do plurilinguismo. Assim formulada, essa exigência é, com efeito, imanente à ideia do gênero romanesco, que determinou a evolução criativa da variante mais importante do grande romance da Idade Moderna, a começar por Dom Quixote”.

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consolidada na fortuna crítica, especialmente naquela baseada na concepção estruturalista. No entanto, não é uma posição generalizada. Encontramos estudos consistentes que apontam para uma pluralidade de vozes relativamente autônomas, dentre os quais destacamos os de Jorge de Sena, de Maria Vitalina Leal de Matos, de Telmo Verdelho e de Salvatore D’Onófrio.

Pensamos que a diversidade de focos narrativos utilizada pelo poeta permite uma expressão ideológica que não é só a expressão de sua visão, mas a representação de uma visão coletiva. Do homem, no tempo do poeta, distante do mundo épico e já atormentado, portanto, pela autoconsciência de sua frágil condição humana, mercê da instabilidade de seu universo circundante. Assim sendo, ainda que o poeta seja, em última instância, o centralizador da visão dos fatos narrados e das vozes, o que ele apresenta é uma visão multifacetária do objeto narrado (fatos passados) no confronto com a realidade do presente da narração. Visão essa que se concretiza na diversidade dos discursos das personagens. Nesta linha de pensamento, Sena (1973, p. 12) chama a atenção para o processo criativo da composição d’Os Lusíadas:

Daí que, em Os Lusíadas, a tessitura estilística se processa simultaneamente de duas maneiras, no que a termos de uma mesma família semântica respeita: ou eles se concentram em grupos compactos, ou recorrem esparsamente como notas soltas de um trompa de caça ouvida no fundo do bosque. É como se Camões quisesse sublinhar, e construir a obra mesma no contraste entre o que se revela de súbito, e o que persiste como uma surdina recorrente – tal qual como em dialética, as transformações de sentido se operam pela concentração cumulativa que as transfigura, ou como um baixo profundo em que aquelas transformações se apóiam.

A análise de Sena sobre o artifício composicional d’Os Lusíadas equipara o procedimento poético ao procedimento musical. Embora não citando a teoria polifônica, Sena demonstra uma estreita relação entre o seu modo de conceber a pluralidade de vozes no texto camoniano e o modo de composição do discurso polifônico descrito por Bakhtin11. Sena refere-se aos diferentes tons de discurso como instrumentos musicais ou vozes (trompa, baixo, surdina) que se caracterizam pela tonalidade grave. Não participam do desenho da linha melódica central, mas marcam todo percurso da peça musical. Ora retumbante, abafando os outros sons, como a trompa, “tuba canora e belicosa”, na frase do poeta. Ora em surdina, como marcação velada, subjacente ao solo épico. Essas vozes em tonalidades contrastantes

11 “A essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, permanecem independentes e,

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percebidas por Sena constituem o cerne do plano discursivo terciário implícito pelos excursos. Ora em blocos, ao término dos cantos encerrados pelo poeta, ora esparsos no percurso da narração. Nessa perspectiva de investigação, somos desafiados a continuar buscando caminhos ainda não trilhados, considerando o inacabamento12 do texto. Fenômeno peculiar às grandes obras artísticas e ao espírito humano que essas representam.

Não obstante o elevado número de estudos concernentes ao texto d’Os Lusíadas, verifica-se que permanece, ainda, pouco explorado o plano expressivo (enunciação)13 do

poema. Muito se estudou o conteúdo e à forma, extraindo-se do texto os significados possíveis e imagináveis nos limites do narrado (enunciado)14 e nas relações deste com a biografia do poeta. Entretanto, a partir de novos conceitos hauridos nos estudos das modernas teorias literárias, inauguradas pelos formalistas russos e evoluídas, pelos membros do Círculo de Bakhtin, dentre outros estudiosos do assunto, abre-se um novo horizonte para uma exegese d’Os Lusíadas numa perspectiva dialógica do discurso literário.

Para examinarmos o aspecto polifônico d’Os Lusíadas temos, necessariamente, de considerar, em essência, o discurso literário como uma reflexão do discurso concreto da vida. Esse enfoque constitui um pressuposto filosófico do dialogismo, depreendido do pensamento de Bakhtin. Considerando essa relação entre o discurso literário e o discurso concreto, Orlandi (2007, p.16) se posiciona do ponto de vista de uma metalinguística:

O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana. Assim, a primeira coisa a se observar é que a Análise de Discurso não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato, mas com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeito seja enquanto membro de uma determinada forma de sociedade.

12 O termo “inacabamento” aqui é empregado no sentido amplo da definição de obra aberta, de acordo com Eco

(2008, p. 40). Segundo ele, uma obra de arte, forma acabada e fechada em organismo perfeitamente calibrado, é também aberta. Passível de interpretações diferentes, sem que isso redunde em alteração de sua irreproduzível singularidade.

13 D’Onofrio (1981, p. 128), ao referir-se explicitamente à polifonia no poema camoniano, assim se expressa:

“Concluindo esta breve análise do plano da enunciação, podemos afirmar que a plurifocalização d’Os Lusíadas

salienta seu aspecto ‘polifônico’. O poema de Camões apresenta várias ‘vozes’ que às vezes se entrelaçam, outras vezes se contradizem, cada qual expressando uma faceta do espírito do poeta. Estamos perante um “eu dividido”, que ora idealiza a viagem de Vasco da Gama, ora a julga à luz da história; ora denuncia os graves defeitos da gente de sua terra; ora relata a intervenção dos deuses pagãos nos acontecimentos dos portugueses, ora os considera divindades falsas e mentirosas”.

14 “Se o plano da enunciação d’Os Lusíadas, como acabamos de ver, diz respeito ao “discurso” do poema, ao

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A concepção de Orlandi sobre a análise do discurso focada nas relações concretas do mundo vai ao encontro do discurso dialógico como base do pensamento e da própria existência humana postulados por Bakhtin. Este é objeto do fascínio do teórico russo, tendo ele descoberto nas obras de Rabelais e de Dostoiévski os modelos exemplares de representação desses discursos da vida na literatura. São eles os arquétipos de suas teorias literárias (carnavalização e polifonia).

Para Bakhtin, nenhum outro autor representou tão bem o carnaval no texto literário quanto Rabelais, o qual conseguiu expressar na literatura o ruído das praças públicas (a cosmovisão do carnaval). A obra de Rabelais se alimenta das fontes vivas do carnaval e se transforma em tradição literária, a qual alimentará os gêneros carnavalizados modernos, impossibilitados de acessarem a essas fontes vivas por não mais existirem. Bakhtin (2002a, p. 124) considera que o carnaval é a festa do tempo que tudo destrói e tudo renova: “Contudo salientamos mais uma vez: aqui não se trata de uma ideia abstrata, mas de uma cosmovisão viva, expressa nas formas concreto-sensoriais vivenciáveis e representáveis de ação ritual”. Para ele, o carnaval é para ser vivido e não assistido. A privatização do carnaval destrói a sua natureza de fonte viva, tornando-se espetáculo teatral. Assim, o que se tem, segundo Bakhtin, a partir de Rabelais são fontes literárias da cosmovisão carnavalesca como tradição.15

Quanto ao discurso polifônico, Bakhtin (2002a) observa que a verdade sobre o mundo, pela ótica de Dostoiévski, é inseparável da verdade do indivíduo. Portanto, os princípios supremos da cosmovisão são idênticos aos princípios das vivências pessoais concretas, obtendo-se com isto a fusão artística da vida do indivíduo com a visão de mundo. Da mais íntima vivência com a ideia. Isto Dostoiévski conseguiu representar através do estilo artístico-literário que Bakhtin chamou de romance polifônico, consistindo na apresentação simultânea de diversos diálogos.

A proposição de análise dos discursos que constituem o provável aspecto polifônico d’Os Lusíadas pressupõe a existência de traços estilísticos significativos na epopeia camoniana que a impelem na direção da prosa romanesca. A proposta de se aproximar a narrativa épica da narrativa romanesca, intuindo-se uma presença de traços comuns de gêneros, pode causar, em princípio, um estranhamento. Tal sentimento é compreensível, considerando-se a formação e a evolução histórica desses gêneros. Enquanto a epopeia surge

15 “A partir da segunda metade do século XVII, o carnaval deixa quase totalmente de ser fonte imediata de

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como gênero poético narrativo dos acontecimentos mais sublimes da humanidade, o romance surge como narrativa dos acontecimentos triviais, das baixas camadas da sociedade.

Esse antagonismo entre as concepções originárias da épica e da prosa romanesca constitui o problema crucial a ser solucionado na tarefa de se verificar a existência de elementos da polifonia no discurso poético d’Os Lusíadas. Para tanto, evocamos os próprios argumentos metodológicos que embasam a tese do romance polifônico para suplantar a barreira que se ergue entre a poesia épica e a prosa romanesca, trazendo a relevo o aspecto polifônico que marca o poema camoniano, em sua evolução histórica, gene integrante da estética do romance polifônico.

Para Bakhtin (2002a), as condições históricas são consideradas fundamentais na criação do romance polifônico, tendo em vista que este só seria possível em um estágio em que a evolução do pensamento humano suscitasse uma narrativa capaz de representar, através do discurso literário, uma imagem da ideia do homem. Para ele, Dostoiévski teve a visão epifânica desse momento e deu asas à sua genialidade artística através da representação da imagem no processo de experimentação ideológica na narrativa. Mas essa narrativa de cunho ideológico vem se construindo ao longo dos tempos. Através de uma evolução contínua, mas também de momentos de rupturas16. Desde a Antiguidade Clássica já se identificam elementos de polifonia nos diálogos socráticos e na sátira menipeia, passando pela paródia na Idade Média, e acentuando-se no Renascimento, em obras como as de Rabelais, de Montaigne, de Cervantes, de Shakespeare e de Balzac. O coroamento ocorre na Idade Moderna, consagrando-se nas obras de Dostoiévski, mas não exclusivamente. O realismo17 foi um movimento estético-literário marcado pela prosa romanesca intensamente dialógica. Podemos citar alguns exemplos de autores contemporâneos de Dostoiévski, fora da Rússia, cujas obras podem ser consideradas polifônicas tais como Machado de Assis e Eça de Queiroz, para ficarmos no âmbito apenas da Língua Portuguesa. A partir de então esse

16 Afirma Paz (2003, p. 134) que tradição não é continuidade e sim ruptura. O que nos permite chamar a tradição

moderna de tradição da ruptura. “O que distingue a modernidade é a crítica: o novo se opõe ao antigo e essa oposição é a continuidade da tradição”.

17 Para Lukács (1962?) o realismo não é um estilo particular de uma época, mas o fundamento de toda a

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processo é crescente18, especialmente entre prosadores mais modernistas, podendo-se destacar James Joyce e, no caso brasileiro, Guimarães Rosa.

Pelo estudo de Bakhtin (2002b) sobre a genealogia do romance na formulação de seu método polifônico, depreende-se que esse gênero narrativo em formação19 adquiriu seus elementos essenciais de outros gêneros, em estado de latência, desde a Antiguidade Clássica, eclodindo proporcionalmente ao favorecimento das condições históricas evolutivas. Ao citar, textualmente, Cervantes, Shakespeare e Balzac como autores cujas obras contêm elementos da polifonia (sem fazer distinção) entre prosa e poesia, ele respalda a presunção de existência de elementos dessa natureza também na obra de Camões, que é contemporâneo dos autores citados. Isto se torna mais enfático no momento em que, ao tratar do tema espaço-temporal na obra de Rabelais, na teoria do romance, Bakhtin (2002b, p. 283) afirma: “Esta proporcionalidade direta é a base de uma confiança excepcional no espaço e no tempo terrestre, é o patos das distâncias e das vastidões, que são tão características de Rabelais e de outros grandes representantes da época do Renascimento (Shakespeare, Camões, Cervantes)”. Vê-se que Bakhtin não ignorava20 a obra de Camões, ao reconhecê-lo como um grande escritor da renascença.

No presente estudo, os narradores d’Os Lusíadas são o alvo principal da abordagem metodológica, pela similitude do procedimento de organização dos discursos pelo poeta com aquele peculiar ao gênero romanesco. Multiplanaridade e diversidade de perspectivas são algumas das propriedades inerentes ao estilo prosaico, especialmente ao gênero romanesco, que podemos observar no poema de Camões. Revelando um estilo inovador, o poeta abre espaço às diferentes personagens para falarem no poema. Esse artifício, também utilizado nas épicas clássicas para quebrar a monotonia da narração linear em terceira pessoa21, na épica

18 “Depois de Dostoiévski, a polifonia cresce soberanamente em toda literatura universal” (BAKHTIN, 2003, p.

318).

19 Para Bakhtin (2002b, p. 417) o romance será sempre um gênero em formação. Esta é a sua natureza. O devir.

Uma vez que atinja a completude, ele tende a degenerar-se e tornar-se forma acabada (morta) como a epopeia. E como o ser humano, para o qual a completude significa a morte. “O campo de representação do mundo modifica-se modifica-segundo os gêneros e as épocas de demodifica-senvolvimento da literatura. [...]. O romance está ligado aos elementos do presente inacabado”.

20Os Lusíadas foram conhecidos na Rússia a partir de 1788 pela tradução de Alexander Dimitrieff, de acordo

com Cidade (1985).

21 Nas epopeias de Homero e de Virgílio se encontram vários discursos diretos de personagens. Nelas também os

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camoniana serve para expressar interpretações, juízos de valor, críticas e reflexões. Elementos esses incompatíveis com o caráter acabado, de verdades incontestáveis das épicas tradicionais. O procedimento artístico-literário de Camões na epopeia revela uma pluralidade do sujeito da enunciação. Procedimento esse que possibilita considerar em sua análise o recurso estilístico da polifonia identificado por Bakhtin na exegese das obras de Dostoiévski, pela semelhança do processo de composição dos discursos, na proporção permitida pelas condicionantes históricas dos respectivos autores. Comentando essa pluralidade de discursos n’Os Lusíadas, observa Matos (1981, p. 740): “[...] na teia poética de Camões perpassam as vozes dos homens, a conversa, os ditos, os gritos, a gritaria, o alarido, o bulício de seu tempo”.

Esta análise de Maria Vitalina Leal de Matos soma-se às percepções de Jorge de Sena, no que tange à presença ativa de vozes alheias no poema, corroborando a proposta da pesquisa, cuja novidade primordial é a leitura na contemporaneidade de um texto do século XVI, por considerá-lo marco de ruptura de paradigmas estético-literários. Esta leitura, apesar de limitada em comparação com o amplo espectro da obra e da respectiva fortuna crítica, em virtude da proposta de aplicação de um método científico-literário inédito na exegese de obras poéticas, constitui um experimento que poderá vir a corroborar as convicções sobre as possibilidades ilimitadas de uma obra, como memória e como representação da realidade, transmitir historicamente caracteres de estilos anteriores aos estilos emergentes.

Motiva-nos, por outro lado, o desafio de aproximar Os Lusíadas do romance, levando em conta os diversos pontos de desvio existentes na narrativa camoniana em face da épica tradicional. Esta aproximação torna-se ainda mais instigante ao ser procedida através da teoria literária de Bakhtin, silente em relação à obra de Camões, embora o teórico discurse sobre os gêneros épico e romanesco e sobre a literatura em geral da Idade Antiga à Idade Moderna, afirmando a obsolescência da epopeia e a consagração do romance, especialmente o polifônico.

A tese que ora levantamos está fundamentada nas seguintes premissas:

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a) a teoria polifônica, embora confirmada a partir de sua aplicação metodológica ao romance, não deve ser interpretada como uma teoria exclusiva da prosa romanesca. A partir do princípio defendido pelo próprio Bakhtin, em seus diversos estudos, de que toda palavra integrante de um discurso no processo comunicativo é essencialmente dialógica e plurilíngue, a polifonia poderá prestar-se como método analítico de qualquer texto literário.

b) as personagens-narradoras d'Os Lusíadas apresentam pontos de vista divergentes. Até mesmo o autor, em suas intromissões na narrativa, mostra-se contraditório, possibilitando a interpretação de sua fala como um discurso de dupla voz, ou bivocal. Segundo a concepção de Bakhtin (2002a, p.192):

O discurso direto do autor não é possível em qualquer época, nem toda época possui estilo já que este pressupõe a existência de pontos de vista autorizados e apreciações ideológicas autorizadas e duradouras. Em semelhantes épocas resta ou o caminho da estilização ou apelo para formas extraliterárias de narrativa, dotadas de certa maneira de ver e representar o mundo. Onde não há uma forma adequada à expressão imediata das ideias do autor tem-se de recorrer à refração dessas ideias no discurso de um outro. Às vezes as próprias tarefas artísticas são tais que geralmente só podem ser realizadas por meio do discurso bivocal (como veremos é justamente o que ocorria em Dostoiévski).

c) as vozes das diversas personagens podem ser interpretadas, no âmbito de toda a obra, como um discurso polifônico, segundo o conceito de polifonia concebido por Bakhtin que, em síntese, significa multiplicidade de vozes.

Em face do exposto, define-se como principal objetivo do presente estudo examinar

Os Lusíadas, com o fito de identificar em seu corpus artístico-literário aqueles elementos que não morreram com a degradação do gênero em que foi composto, mas ao contrário, se transmutam e se transmitem aos gêneros ulteriores, através da concorrência entre dominantes literárias de determinadas épocas. Elementos esses que se constituem em instrumento no processo dialético de desagregação do velho para o surgimento do novo. Assim, ousamos inferir que Os Lusíadas, como um canto de cisne22, anunciam o fim do ciclo épico inspirado

22- CISNE s. m [...] Fig. Canto do Cisne, última composição de um poeta, de um músico, etc., de um gênio

prestes a extinguir-se. Verbete extraído da GRANDE ENCICLOPÉDIA Larousse Cultural. São Paulo: Círculo do Livro, 1998, v. 8, p. 1443.

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na tradição greco-romana, por extinção das condições históricas23. Ao mesmo tempo em que prenuncia uma nova forma de narrar voltada para a reflexão da existência humana. Tais elementos, índices de modernidade, estão impregnados no plano dos excursos, os quais emitem juízo de valor e duras críticas à aventura das navegações que Camões se propôs cantar, como se pode observar no discurso do Velho do Restelo:

Mas um velho, de aspeito venerando, Que ficava nas praias, entre a gente, Postos em nós os olhos, meneando Três vezes a cabeça, descontente, A voz pesada um pouco alevantando, Que nós no mar ouvimos claramente,

Cum saber só de experiências feito, Tais palavras tirou do experto peito: “Ó glória de mandar, ó vã cobiça Desta vaidade a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça

Cüa aura popular, que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles esprimentas!” (Canto IV, 94 e 95)

As invectivas dessa personagem, representante da voz popular, constituem uma das mais importantes digressões da narrativa épica n’Os Lusíadas, servindo como demonstração da pluralidade de discursos e consequentemente de pontos de vista sobre a matéria narrada e sobre a vida em seu contexto social atual. Tal digressão, dentre diversas outras, permite se vislumbrar a adequabilidade da mesma teoria aplicada ao romance na análise de seu aspecto dialógico, como sugere D'Onofrio (1981, p. 129):

[...] a plurifocalização d'Os Lusíadas salienta o seu aspecto "polifônico". [...] o poema camoniano apresenta vários traços de semelhança com a produção poética de Fernando Pessoa, que, através do processo da criação heterônima, desdobra o próprio eu em várias personalidades humanas e poéticas. Os Lusíadas, portanto, poderiam ser submetidos ao mesmo tipo de análise que M. Bakhtin utilizou para exegese da obra de Dostoiévski.

23 Lukács (1962?, p. 114), ao discorrer sobre o idealismo abstrato no romance moderno, afirma: “Se é verdade

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A pertinência da sugestão de D’Onófrio se torna evidente nas estrofes acima destacadas, cujo discurso da personagem é marcado estilisticamente pela expressão de oralidade. Camões não compõe um discurso poético em sentido estrito, abstrato. Ele apresenta a personagem para discursar diretamente com todos os elementos reais da comunicação cotidiana. Esses elementos dão o sentido pleno aos enunciados, tais como os gestos (meneando três vezes a cabeça), o estado emocional (descontente), a entonação (a voz rouca um pouco alevantada) e as interjeições e exclamações que permeiam a fala do ancião. Tudo isto caracteriza a representação da imagem concreta de um discurso que, para Bakhtin (2002a), ultrapassa o plano da língua enquanto sistema de signos e se realiza numa dimensão de linguagem viva que só pode ser analisada no processo de interação dialógica.

Outro fator a ser considerado é a relação entre voz e escrita. O que se ouve nos versos de Camões é a voz, como objeto da imaginação. A esse respeito, é importante notar que Bakhtin (2002a) define polifonia como multiplicidade de vozes, não fazendo distinção entre o discurso oral e escrito. Esta assertiva aproxima a tese polifônica da performance teorizada por Paul Zumthor, a qual busca, entre outras coisas, resgatar o conceito de voz como instrumento preponderante no discurso literário (poético), ainda que na forma escrita, pois a produção do discurso poético pressupõe a emissão de som vocal que leva o leitor a simular uma vocalização no ato de leitura, como se expressa Zumthor (2000, p. 21-22 – itálicos e aspas do autor):

Com efeito, nas formas poéticas transmitidas pela voz (ainda que elas tenham sido previamente compostas por escrito), a autonomia relativa do texto, em relação à obra, diminui muito: podemos supor que, no extremo, o efeito textual desapareceria e que todo o lugar da obra se investiria dos elementos performanciais, não textuais, como a pessoa e o jogo do intérprete, o auditório, as circunstâncias, o ambiente cultural e, em profundidade, as relações intersubjetivas, as relações entre a representação e o vivido. De todos os componentes da obra, uma poética da escrita pode, em alguns casos, ser mais ou menos econômica; uma poética da voz não pode jamais. É então intencionalmente que, a partir de alguns anos, eu falo de poesia vocal em termos tais que poderíamos aplicá-los à escrita literária ou inversamente. Estou particularmente convencido de que a ideia de performance deveria ser amplamente estendida; ela deveria englobar o conjunto de fatos que compreende, hoje em dia, a palavra recepção, mas relaciono-a ao momento decisivo em que todos os elementos cristalizam em uma e para uma percepção sensorial – um engajamento do corpo. O termo e a ideia de performance tendem (em todo caso, no uso anglo-saxão) a cobrir toda uma espécie de teatralidades: aí está um sinal. Toda “literatura” não é fundamentalmente teatro?

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psíquico na apreensão da mensagem transmitida pelo discurso artístico. O que, para Bakhtin, significa o momento de contemplação do objeto estético. Momento esse em que o objeto é penetrado pelo sentido da criação artística. Em ambas as teorias, assim como na estética da recepção, tem-se em comum a figura do ouvinte ou leitor, sendo este, de fato, o sujeito que atribui validade ao texto recebido, pretensamente literário, tornando-se assim, um co-autor, ou autor contemplador, na terminologia de Bakhtin. Esse fator, haurido na tradição oral, é resgatado através das teorias críticas contemporâneas, como valor que não pode ser desprezado no estudo da literatura, em contraposição às ideias estruturalistas de índole formalista que dissociam do discurso literário o discurso da vida (dito prático).

A concepção de Zumthor (2000, 74) sobre a leitura como encontro e confronto pessoal, cuja compreensão por ela operada é “fundamentalmente dialógica”, reforça a certeza da congruência do estudo proposto. Estudo esse que se fundamenta essencialmente na teoria do método polifônico desenvolvido por Bakhtin a partir das obras de Dostoiévski, cuja tese, intitulada Problemas da Poética de Dostoiévski, foi publicada pela primeira vez na Rússia em 1929 e reeditada com revisão e atualização do autor em 1963, somente vindo a ser divulgada no Ocidente ao final dessa década.

A tese bakhtiniana firma-se como teoria literária ocidental, instituindo as bases de uma nova forma estilística do gênero romanesco criada por Dostoiévski, a qual foi denominada romance polifônico. A principal característica deste tipo de romance é a predominância do discurso dialógico em sua composição. Fenômeno que reúne diversas vozes independentes e autônomas, ultrapassando os limites da linguagem verbal sistematizada, para acolher todos os demais atos empregados no processo da comunicação humana, tais como gestos, entonações, pausas, repetições de enunciados, antecipação de réplicas, dentre outros recursos identificados na obra de Dostoiévski. Esses recursos fazem parte do processo dialógico da comunicação verbal.

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São vozes diferentes, cantando diversamente o mesmo tema. Isto constitui precisamente a “polifonia”, que desvenda o multifacetado da existência e a complexidade dos sofrimentos humanos.

(BAKHTIN, 2002a, p. 44)

1 A TESE DE BAKHTIN: Pressupostos e Conceitos

O linguista e filósofo russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) se notabilizou no Ocidente, especialmente, pela formulação das teorias da polifonia e da carnavalização na literatura.

Embora as teorias citadas possuam naturezas afins, pois ambas enfocam, em essência, a pluralidade do pensamento e da linguagem humana representada na arte literária, a carnavalização possui particularidades intrínsecas às manifestações culturais, fator que a situa fora do escopo do nosso trabalho. Razão pela qual, analisaremos especificamente a teoria polifônica como metodologia sistematizada por Bakhtin a partir do exame das obras literárias de Dostoiévski. Deve-se ressaltar, entretanto, a importância que Bakhtin (2002a) atribui à carnavalização como elemento de influência marcante na arte desse escritor. Afirma ele que a influência direta da literatura do Renascimento sobre Dostoiévski foi considerável, sobretudo as obras de Shakespeare e de Cervantes. Não apenas uma influência de temas isolados, ideias ou imagens, mas da própria cosmovisão carnavalesca.

A análise da tese polifônica à qual ora nos propomos tem por fim verificar, pelos pressupostos e conceitos, a sua aplicabilidade ao exame do texto d’Os Lusíadas, procurando desvelar o seu aspecto polifônico. Convém salientar que não se trata de uma comparação entre as obras de Dostoiévski e a de Camões, embora sejam imprescindíveis algumas ilações entre elas e citações para que se possa demonstrar, por analogia, o possível aspecto polifônico da obra camoniana, considerando os romances de Dostoiévski arquétipos do estilo polifônico.

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religiosos. Essa consciência, que se produz e se revela na comunicação humana, torna o discurso condição sine qua non ao autoconhecimento e ao reconhecimento do outro, como visão espelhada do eu, transmitida pelo diálogo. Portanto, a compreensão da importância do outro para mim (tu-eu) se faz essencial à compreensão de que o outro implica condição existencial do eu. “Eu” necessito da tua visão, assim como “tu” necessitas da minha, que, como espelhos nos mostram as partes de nós que jamais poderemos ver unilateralmente, e que, portanto, inexiste fora da visão do outro. Ao analisar o excedente da visão estética da personagem, em Estética da criação verbal, descreve Bakhtin (2003, p. 21):

Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. Porque em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: as partes do corpo inacessíveis ao seu próprio olhar – a cabeça, o rosto, e sua expressão -, o mundo atrás dele, toda uma série de objetos e relações que, em função dessa ou daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos.

De acordo com este raciocínio, “eu” necessito, ainda, que o outro diga para mim o como sou em sua visão, então terei a oportunidade de dizer ao outro e a mim mesmo o que penso sobre o que ele pensa (réplica) sobre mim. Este processo interativo é dialógico (recíproco) e dialético, lugar de existência e de crescimento24 do ser humano, o qual Bakhtin denomina o grande diálogo (a comunicação humana) no grande tempo (toda a existência). Para Bakhtin (2002a, p. 59), não há existência humana fora do processo de comunicação dialógica: “A vida autêntica do indivíduo só é accessível a um enfoque dialógico, diante do qual ele responde por si mesmo e se revela livremente”. Esta assertiva caracteriza a essência do pensamento filosófico de Bakhtin, segundo o qual, a linguagem assume uma dimensão transcendente à língua como objeto científico da linguística ou da gramática, por carregar-se de outros elementos significantes extralinguísticos, integrantes do discurso prático da vida.

Assim sendo, a representação literária que mais se aproxima do momento da elaboração do pensamento e de sua expressão é aquela em que predominam os elementos do grande diálogo da vida, à qual o linguista denominou polifonia. Para ele, o esquema básico do

24 “Esta longa atenção que emprego em me considerar adestrou-me a julgar também razoavelmente os outros...

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diálogo em Dostoiévski é a contraposição do homem ao homem enquanto contraposição do eu ao outro, em que ser significa comunicar-se pelo diálogo.25

Neste sentido, o discurso assume importância vital, por ser um fenômeno que funciona como um link para a canalização dos enunciados em diversas direções e sentidos simultâneos e interligados. Isto se dá através de enunciados concretos, autônomos e equivalentes, participantes dos variados gêneros de discurso26. São expressões quase imediatas da atividade mental, como imagem da imaginação em seu processo de formação, representadas com o mínimo de desvio formalístico. Bakhtin concentra especial atenção na forma de representação dessa imagem e encontra em Dostoiévski o estilo ideal. Para ele, o escritor tinha a excepcional sensibilidade de perceber esses processos em elaboração, fazendo-os representados da forma mais autêntica possível, às vezes, desconexos, caóticos e sempre inconclusos, como acontecem nos processos mentais espontâneos. Isto é desenvolvido no texto através de um recurso estilístico originalíssimo, na interpretação de Bakhtin (2002a). Estilo esse que possibilita a cada personagem apresentar-se por si só, expondo seus pensamentos através de diálogos concretos, ou, às vezes, imaginários (solilóquios), os quais refletem tanto a visão que cada personagem constrói do mundo, quanto aquela que constrói de si mesma, a partir do que lhe é informado através do discurso impregnado de diversas vozes em conflito. Em síntese, as personagens de Dostoiévski não são meros intérpretes da visão do autor, a serviço de uma representação objetificada, elas representam a si próprias e se revelam em processo de construção no próprio diálogo, no texto. Tal procedimento é definido por Bakhtin (2002a) como uma representação da autoconsciência das personagens, as quais estão desvinculadas, relativamente, do campo de visão do autor27. Ou seja, tornam-se independentes e autônomas no processo de construção evolutiva do enredo, por meio do diálogo com outras consciências igualmente independentes e autônomas.

25 “Enquanto o homem está vivo, vive pelo fato de não se ter rematado nem dito a sua última palavra [...].

Quando termina o diálogo, tudo termina. Daí o diálogo, em essência, não poder nem dever terminar.” (BAKHTIN, 2002a, p. 58 e 257).

26 Para Bakhtin (2003, p. 81), a vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo

gênero de discurso, de acordo com a situação concreta da comunicação. Tais gêneros existem das mais variadas formas na comunicação oral cotidiana, dependendo das pessoas envolvidas e das peculiaridades do campo da atividade humana em que são empregados.

27 “[...] A liberdade do herói é um momento da ideia do autor. A palavra do herói é criada pelo autor, mas criada

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1.1 PRESSUPOSTOS

Bakhtin, ao formular a tese polifônica, tendo como objeto a arte literária, reivindica para esta os princípios da arte em geral, associados a princípios socioideológicos que regem o pensamento e se refletem na vida como um todo, por intermédio da comunicação dialógica. Tezza (2003) assinala que, para Bakhtin, é impossível definir a natureza da arte literária sem definir previamente os problemas da arte em geral e o seu lugar na unidade da cultura humana.

Embora não tenha elaborado um tratado filosófico da linguagem, em ensaios esparsos Bakhtin analisa o tema em profundidade, formulando teses sobre a relação do mundo interior do indivíduo com o mundo exterior, tendo o discurso como elo principal dessa relação. No conjunto de sua obra encontram-se diversos postulados que se relacionam na estruturação de uma base filosófica para o seu pensamento a respeito da linguagem verbal, que resulta no esboço de uma metalinguística social e ideológica.

Examinando o pensamento filosófico-linguístico sobre as proposições de uma filosofia marxista da linguagem, Bakhtin (2006, p. 127)28 assim se posicionou:

A verdadeira substância da língua não é construída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.

Na concepção de Bakhtin, a interação verbal é o diálogo em sentido amplo, ou dialogismo, compreendido como uma categoria filosófica da linguagem, porque presente em todo e qualquer tipo de comunicação verbal. Para ele, a filosofia marxista da linguagem deveria estabelecer como base de sua doutrina a enunciação como realidade da linguagem e como estrutura socioideológica. Bakhtin (2006) considera que a língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta não no sistema linguístico abstrato das formas das línguas nem no psiquismo individual dos falantes, mas na interação verbal dialógica.

Para se estabelecerem, portanto, os pressupostos da polifonia, torna-se necessário considerar o pensamento de Bakhtin no mais amplo contexto de sua obra, vislumbrando-se

28 Consideramos Bakhtin como autor. Em razão da controvérsia sobre a autoria de Volochínov. Evitamos discutir

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duas perspectivas fundamentais: uma filosófica, relacionada à natureza do pensamento e da linguagem verbal, e outra artístico-literária, relacionada à estética, como ciência que estuda a representação artística do pensamento na literatura.

1.1.1 Pressupostos Filosóficos

A proposta primordial de Bakhtin, na perspectiva filosófica da linguagem, é situar-se na confluência dos dois mundos, interior e exterior, do indivíduo, a fim de compreender e explicar o fenômeno de formação e transformação do pensamento em expressão verbal. Para tanto, ele principia examinando, de modo crítico, as teorias idealista e psicologista individualista, as quais preconizam a natureza essencialmente psíquica do pensamento e a primazia da psicologia sobre a ideologia na explicação da consciência individual. A estas teorias Bakhtin (2006) opõe a tese da natureza socioideológica do pensamento, ou atividade mental, considerada como a tomada de consciência pelo indivíduo. Consciência essa que adquire forma e existência nos signos criados no meio social organizado e interiorizados pelo indivíduo por meio do processo de cognição e compreensão.

Assim sendo, Bakhtin (2006) considera o signo como elemento condicionante do pensamento. O que significa dizer que o indivíduo necessita dominar um repertório de signos interiores para habilitar-se ao exercício do ato de pensar. Tais signos, gerados nas interações sociais, internalizam-se no indivíduo através da compreensão, tornando-se base de experiência psicoideológica para a decodificação de novos signos e exteriorização do pensamento. Afirma Bakhtin (2006) que os signos são o alimento da consciência individual e a lógica dessa consciência é a lógica da comunicação ideológica, ou interação semiótica de um grupo social. Abstraindo-se o conteúdo ideológico e semiótico (a palavra, a imagem, o gesto significante, etc.), reduz-se a consciência a quase nada. O pensamento na ausência dos signos semióticos é simples ato fisiológico, desprovido de sentidos.

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ser refletido nos signos ideológicos, cuja predominância recai sobre o signo verbal, a palavra. Ou seja, o indivíduo, no contexto social, é aquilo que se revela a si próprio por meio de um discurso interior, e a outrem, pela exteriorização desse discurso, que se materializa nos signos puramente ideológicos. Para Bakhtin (2006, p. 65), a palavra é a base da vida interior. Afirma ele: “Originariamente, a palavra deve ter nascido e se desenvolvido no curso do processo de socialização dos indivíduos, para ser, em seguida, integrada ao organismo individual e tornar-se fala interior”.

Admitindo-se, pois, a existência de um discurso interior, essencial à vida, a revelar-se e a refletir-se no ambiente social, conclui-se pela natureza dialógica do pensamento (dialogismo) e pela supremacia da palavra como signo ideológico da expressão desse pensamento, sendo estes os pressupostos filosóficos fundadores da tese polifônica.

Em sentido amplo, entende Bakhtin (2003) que o indivíduo é incapaz de existir fora do grande diálogo da vida. Pois, é nesse diálogo que ele busca, infinitamente, a realização de seu ideal, que é a completude do ser. Todavia, dada a natureza multifacetária do espírito humano, essa busca torna o diálogo interminável, e, por conseguinte, o ser eternamente incompleto, num mundo em devir. É nessa trajetória dialógica em busca do porvir que o ser humano evolui, impulsionado a refletir e a exprimir o mundo em que vive e também o seu mundo interior (sua consciência). Para ele, a natureza dialógica da consciência é a natureza dialógica da própria vida humana e a única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do homem é o diálogo inconcluso.29

Os pressupostos filosóficos da polifonia extraídos do pensamento de Bakhtin, acerca da comunicação humana, encontram respaldo, a priori, no princípio aristotélico do homem como um animal político e societário por natureza. Para Aristóteles (1988), a razão de o homem ser um animal sociável em mais alto grau do que os outros animais que vivem reunidos é que somente ele possui o dom da palavra. Aos outros animais a natureza outorgou a voz, que os faz entender-se entre si, que pode exprimir a sensação de dor e de prazer. A palavra, entretanto, tem a finalidade de fazer entender o que é útil ou prejudicial, e, consequentemente, o que é justo ou injusto. Aristóteles afirma, ainda, que a comunicação é o elemento de formação da sociedade primeva, à qual ele chamou a família do Estado. Por esse princípio da associatividade, o indivíduo busca a realização de seu ideal natural, ou seja, a finalidade para a qual cada ser foi criado, que é a de completar-se a si mesmo. Este é o ideal a

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que todo indivíduo aspira, segundo Aristóteles, e o que de melhor pode haver para ele. Desse princípio filosófico, depreende-se, em síntese, que o ser humano tem na sociedade a sua condição existencial e que essa sociedade se organiza através da comunicação, cujo elemento essencial é a palavra.

Outro fundamento filosófico importante a ser considerado no embasamento do dialogismo como pressuposto filosófico da teoria polifônica é o diálogo socrático conforme encontramos em “O espelho de Alcibíades” acerca do “saber de si e o dever-saber”. Nesse diálogo relatado por Platão (Apud. CURY, 2006), Sócrates ensina que os olhos possuem algo similar a um espelho que são as pupilas. Estas, como um espelho, refletem o rosto de quem as olha. Assim, os olhos se veem a si mesmos quando olham em outros olhos e podem, dessa maneira, conhecer-se a si mesmos nos olhos de outro. Da mesma forma, a alma para conhecer-se a si mesma deve olhar outra alma. Uma alma servirá de espelho para a outra. Uma alma sendo espelho da outra, ambas atingirão o conhecimento de si. Esse conhecimento será ao mesmo tempo reconhecimento reflexivo através da alma do outro. O pensamento socrático encontra-se representado, em síntese, na expressão de Bakhtin (2003, p. 22): “Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem nas pupilas dos nossos olhos”. Para Bakhtin, toda expressão individual corresponde à exteriorização de uma visão de mundo constituída de múltiplas visões contraídas nos diálogos da vida. Assim como, ser, para ele, significa conviver.30

Nessa perspectiva dialógica da vida, Bakhtin encontra em Dostoiévski a expressão artística adequada ao seu projeto filosófico, em busca de uma metalinguística baseada na visão estética da vida do discurso, que é, em suma, a comunicação humana pela expressão verbal.

1.1.2 Pressupostos Artístico-Literários

A exemplo dos pressupostos filosóficos, é também no quadro geral dos trabalhos escritos por Bakhtin que se encontram delineados os pressupostos artístico-literários de sua tese polifônica. Tese esta que tem como premissa a interdependência entre a vida e a arte,

30 - “Ser significa ser para o outro e, através dele para si. O homem não tem um território interior soberano, está

todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos olhos ou com os olhos do outro” (BAKHTIN, 2003, p. 341.

Referências

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