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3 CRÍTICA AO ENSINO TRADICIONAL DE LÍNGUAS: O

6.1 PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS PARA UMA ANÁLISE

Bakhtin (2003 [1979]) considera que toda ciência humana, que tem como objeto o ser expressivo e falante (BAKHTIN 2003 [1979], p. 395), ocupa-se de textos, porque apenas por meio do texto, enquanto texto-enunciado, é que o homem pode ser estudado no seu agir específico de ser humano.

As ciências humanas são as ciências do homem em sua especificidade, e não de uma coisa muda ou um fenômeno natural. O homem em sua especificidade humana sempre exprime a si mesmo (fala), isto é, cria texto (ainda que potencial). Onde o homem é estudado fora do texto e independente deste, já não se trata de ciências humanas (anatomia e fisiologia do homem, etc.) (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 312).

E aqui, o termo “texto” está na sua amplitude, “[...] como qualquer conjunto coerente de signos” (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 307), o que permite abarcar outras semioses além da língua e outras ciências além da Linguística dentro das Ciências Humanas por terem como ponto de partida das suas pesquisas o texto. Mas não é um ocupar- se qualquer do texto, apenas nas suas relações lógicas internas do sistema linguístico; é ocupar-se do texto na relação com o humano, isto é, o texto-enunciado, realidade imediata, relacionado aos seus interlocutores, sua situação de interação, seu lugar no tempo e no espaço. De onde se pode concluir que o homem estudado fora do texto é

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Segundo Acosta-Pereira e Rodrigues (2015, p. 61, grifos dos autores), a ADD é uma das vias, na área de Linguística e Linguística Aplicada, “de acessos aos sentidos da prática discursiva [...] que vem se consolidando como resposta dos interlocutores contemporâneos aos escritos de Bakhtin, Volochínov e Medviédev”.

objeto das ciências naturais, o texto estudado “fora do homem” é objeto da Linguística Formal. Para a proposta de um estudo sociológico da linguagem, interessa o texto-enunciado na sua relação com o humano e com outros textos-enunciados, nas suas relações dialógicas (AMORIM, 2004; 2016; BRAIT, 2007; PAULA; STAFUZZA, 2010).

É claro que não se está desconsiderando o sistema linguístico, sem o qual não se pode realizar o enunciado. O que se faz de diferente é considerar os dois polos do texto:

[...] por trás de cada texto está o sistema da linguagem. A esse sistema corresponde no texto tudo o que é repetido e reproduzido e tudo o que pode ser repetido e reproduzido, tudo o que pode ser dado fora de tal texto (o dado). Concomitantemente, porém, cada texto (como enunciado) é algo individual, único e singular, e nisso reside todo o seu sentido (sua intenção em prol da qual ele foi criado). É aquilo que nele tem relação com a verdade, com a bondade, com a beleza, com a história (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 309-310).

Há outra importante consideração a ser feita que diz respeito ao fato de Bakhtin (2003 [1979], p. 316, grifos do autor) não propor uma ciência explicativa, mas compreensiva – porque a explicação é monológica, mas a compreensão é necessariamente dialógica (FARACO, 2007). “Na explicação existe apenas uma consciência, um sujeito; na compreensão, duas consciências, dois sujeitos”. Isto porque as ciências explicativas (naturais, exatas, linguísticas) lidam com objetos, com coisas mortas que não respondem. As ciências humanas lidam com sujeitos, investigam pessoas vivas (ou as suas memórias), e para lidar com sujeitos é necessário abrir-se para o outro. “Aqui o cognoscente não faz a pergunta a si mesmo nem a um terceiro em presença da coisa morta, mas ao próprio cognoscível. [...] Aí o critério não é a exatidão do conhecimento mas a profundidade da penetração” (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 394).

Quanto à especificidade do objeto de um estudo sociológico da linguagem, Medviédev (2012 [1928], p. 50) explica que é o fato de trabalharmos com o “material ideológico organizado” que se difere dos corpos físicos, dos instrumentos de produção e dos produtos de consumo. Os corpos físicos são estudados por suas leis mecânicas e

naturais mais gerais; os instrumentos de produção por seu caráter utilitário; e os objetos de consumo na sua relação econômica. O objeto ideológico deve ser estudado e compreendido na sua relação com seu meio social, como vimos na seção 2.1 deste trabalho, como fragmento material da realidade que refrata e reflete seu horizonte ideológico. Em suma,

O alimento é ingerido no organismo individual como tal; a roupa o aquece. Quando várias pessoas consomem produtos, elas, na medida em que se trata do processo de consumo, permanecem entidades desconexas. Por outro lado, a participação na percepção do produto ideológico pressupõe relações sociais específicas. Aqui, o próprio processo é internamente social. Uma coletividade possuidora de percepção ideológica cria formas específicas de comunicação social (Medviédev, 2012 [1928]).

Assim, as pesquisas da ADD não explicam o que está escrito ou revelam o que está escondido, mas buscam a compreensão dos sentidos presentes nos textos, sempre fruto de um sujeito expressivo e de suas interações sociais, por meio dos discursos, considerados na sua totalidade (no seu acabamento interlocutivo), ou seja, ancorados na confluência constitutiva entre sua dimensão verbal e extraverbal. Nesse sentido, não há a exclusão da Linguística e de seus estudos. Segundo Acosta-Pereira (2012, p. 69), retomando a discussão de Brait (2014a), “a metodologia proposta por Bakhtin para o estudo da linguagem, embora se apresente como uma abordagem diferenciada, não exclui a Linguística, pelo contrário, Bakhtin (2013 [1963]) entende que devem completar-se, mas não fundir-se”. Como caminho metodológico para tal proposta, encontramos em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin [Volochínov] (2006 [1929]), diretrizes explícitas e deveras importantes para a construção de um dispositivo analítico.

A primeira delas diz respeito às regras metodológicas para uma “ciência das ideologias” que entenda a “mútua influência do signo e do ser” (BAKHTIN [VOLOCHÍNOV], 2006 [1929], p. 45, grifos do autor):

1. Não separar a ideologia da realidade material

“consciência” ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível).

2. Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social (entendendo-se que o signo faz parte de um sistema de comunicação social organizada e que não tem existência fora deste sistema, a não ser como objeto físico).

3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material (infra-estrutura).

Considerando que todo signo “resulta de um consenso entre indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação. Razão pela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece” (BAKHTIN [VOLOCHÍNOV], 2006 [1929], p. 45, grifos do autor), essas regras servem para garantir que ao estudar os discursos produzidos na comunicação social se busque a compreensão do imbricamento da ideologia e do signo “nas diversas e multiformes situações de interlocução” (ACOSTA-PEREIRA; RODRIGUES, 2015, p. 77).

A segunda diretriz diz respeito à ordem metodológica proposta por Bakhtin [Volochínov] (2006 [1929], p.129), para o estudo da língua na comunição verbal:

1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza.

2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinada interação verbal.

3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual.

A proposta de uma ordem metodológica que parte da dimensão social para a dimensão verbal decorre do fato de que “a língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem do psiquismo individual dos falantes” (BAKHTIN [VOLOCHÍNOV], 2006 [1929], p. 128,

grifos do autor), e desta forma a língua será estudada na ordem em que se desenvolve em situações reais de comunicação.

Concluímos a apresentação dos pressupostos metodológicos reafirmando o que já havíamos levantado no início desta seção, mas agora nas palavras de Acosta-Pereira e Rodrigues (2015, p. 80, grifos dos autores):

[...] cabe ressaltar que no dispositivo metodológico bakhtiniano não há categorias de análise a priori aplicáveis de forma sistemática a textos, discursos, gêneros, com a finalidade de construir uma análise acerca do uso situado da língua. Em Bakhtin, há, na verdade, uma arquitetônica das diferentes formas de conceber o enfrentamento dialógico da linguagem, que se constituem de movimentos teórico-metodológicos multifacetados. De fato, cabe ao pesquisador desbravar esse caminho, construindo, por conseguinte, uma postura dialógica diante de seu objeto discursivo.

Diante do exposto, cabe a nós seguir para apresentação do universo de pesquisa e o objeto de estudo a partir do qual os dados para análise foram gerados.