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MAPA 1: Norte/Noroeste de Minas Gerais/Sul da Bahia – biorregião Mosaico Sertão Veredas-Peruaçu

1.6 Pressupostos teóricos de interpretação e a análise das fontes de pesquisa documental

Ao finalizar a estrutura corporal da pesquisa, ainda falta um elemento fundamental: a análise. Como proceder diante de tanta variedade de documentos? Optamos por usar Análise do Discurso - AD enquanto instrumento metodológico, e dentro da AD, uma técnica específica, o “trajeto temático” (GUILHAUMOU; MALDIDIER, 1997). Antes de demonstrar, porém, os mecanismos de análise, é fundamental precisar algumas compreensões, entre elas: Análise do Discurso, discurso, enunciados, corpus e trajeto temático. Nesse sentido, a primeira parte deste item discute estes conceitos e a segunda parte mostra como os usamos para a classificação e tratamento das nossas fontes.

No que consiste propriamente a Análise do Discurso? Antes de responder esta questão, cabe uma diferenciação entre o campo disciplinar e o arcabouço teórico

metodológico da AD. Primeiramente, como campo disciplinar, a AD tem origem junto a pensadores da linguística, psicanalistas e historiadores. Trata-se de um campo teórico que tem como objeto de reflexão o discurso. A partir deste objeto, surge uma gama conceitual e metodológica de pressupostos para se fazer à análise das materialidades discursivas – AD como instrumento metodológico.

Ao considerar o discurso como objeto de análise, a proposta é pensar as regras de sua existência e os sistemas que operam dentro das práticas discursivas. É também analisá-lo como prática articuladora de saberes e de jogos de estratégias. E mais, ele tem funções e status, logo, trata-se de pensá-lo como meio e objeto de relações de poder. Além disso, antes de ser um edifício coerente, o discurso é lugar de conflitos e de rebatimentos. Nesse trabalho, certas posições mudam: no lugar de uma história que busca uma origem para efetivar uma continuidade, há processos descontínuos, com séries e rupturas; no lugar do sujeito do discurso, têm-se sujeitos produzidos discursivamente; no espaço onde se buscava os sentidos imanentes, por detrás ou nos “não-ditos”, trata-se de pensar a formação do objeto discursivo.

O trabalho de análise situa o discurso em seu próprio nível e busca desvelar as regras de formação de uma prática discursiva. Por outras palavras, trata-se de descrever as condições de existência e, ao mesmo tempo, o modo como se repartem. Para analisar os acontecimentos discursivos, é insuficiente constatar um regime de modificações e logo correlacioná-las “ao modelo teológico e estético da criação”. É preciso antes definir em que consistem tais modificações, ou melhor, compreender o regime das transformações. É preciso ter claro que as práticas discursivas não têm o mesmo regime de historicidade, não se relacionam no mesmo grau com os mesmos objetos. É preciso, pois, pensá-las em sua singularidade. Ao pensar o regime das transformações, descreve-se como os elementos reaparecem depois de certo tempo sem uso, à forma, como e em que condições aparecem. E também que neste jogo de transformações, certos objetos, certos conceitos ou estratégias podem permanecer ou mudar de função. (FOUCAULT, 2012).

Porém, devemos considerar que um trabalho de análise é sempre parcial. Primeiro porque dentro de uma formação discursiva, o conjunto de relações estabelecidas está muito além da nossa capacidade de trabalho. Depois, a intenção não é uma análise “total” e exaustiva dos enunciados com os quais envolvemos no trabalho. Nesse sentido, trata-se de descrever, como demonstra Michel Foucault, o porquê deste enunciado e não outro, os pontos de encontro e desencontro, mesmo que isto se mostre de forma frágil. Com isto, a

preocupação não é encontrar um ponto de origem no qual todos os enunciados se repartem, tentando desvelar todos os percursos, todas as relações, mas quais são as condições para que este “dito” tenha ganhado uma materialidade, uma função e um status dentro um contexto histórico e social.

Enfim, a análise tem um objeto concreto, o discurso. O discurso é um complexo de temas, conceitos, estratégias, posições de sujeito, modalidades enunciativas e de objetos. Há uma complexidade inerente ao discurso: em relação à história, em relação à língua, em relação aos sistemas de interdições e ao jogo de sua apropriação. Ele é formado por um conjunto de elementos que dão as possibilidades de correlação com outros discursos e, também, daqueles que impõem limites em sua ação. Sabendo de tudo isto, fica a dúvida: afinal, como é possível apreender o discurso dentro do jogo de complexidade que lhe é inerente?

Há ao menos, duas respostas possíveis. A primeira: é preciso tomar o discurso como “dado”, mas que esconde por detrás de si vozes murmurantes, “os não-ditos” ou os ditos sem querer. É um edifício de longa duração construído dentro da continuidade histórica. No exercício de análise trata-se de perguntar ao próprio discurso o que ele esconde, esquecendo-se do que está “dito”. De reconstruir o que se fez, pensou e produziu em uma dada época. No entanto, este modelo de pensamento retira a complexidade inerente ao discurso.

A segunda: o discurso é determinado e determinante, determina escolhas de uma rede teórica, é descontínuo em sua própria continuidade. Em lugar de suposta coerência interna, há rupturas e apagamentos. Determinado pelo jogo de relações que formam o seu objeto, pelas modalidades de enunciação e por meio das práticas discursivas. Ora, no exercício de análise, a indagação tange o porquê desta materialidade discursiva e não outra em seu lugar. Trata-se de indagar as condições de existência dos “campos associados”, a “função” e “status” do discurso. Enfim, o discurso é a materialidade dada, mas esta é compreendida no tecido de relações que lhe determina.

O discurso é construído por um número limitado de enunciados sobre os quais podemos traçar suas condições de existência. O trabalho de análise situa na contextualização do acontecimento, de pensar o sujeito como histórico, mas, ao mesmo tempo, a sua descontinuidade. Trata-se de demonstrar o conjunto “de condições que regem, em um momento dado e uma sociedade determinada, o surgimento dos enunciados, (...) laços estabelecidos, a maneira pela qual agrupamos em conjunto estatutários (...), a

maneira pela qual são investidos nas práticas ou nas condutas” (FOUCAULT, 2000a, p. 95, [grifos nosso]).

O enunciado não é em si uma unidade, mas “função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz [estas] com apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço” (FOUCAULT, 20012, p. 105). O enunciado é um conjunto de coisas ditas, estas têm um referente (do qual e a partir de onde se enuncia), uma posição de sujeito (os sujeitos mudam de lugar conforme a inscrição dentro da prática discursiva), um campo associado (enunciados em correlações) e uma materialidade (o regime concreto de existência).

i. O referente: a base é o próprio objeto a partir do qual se fala, ou melhor, a partir do qual se estabelece um princípio de correlação. Este correlato, porém, não é um sujeito ou uma frase em específico, mas um campo complexo sobre os quais se traçam certos domínios. Entre estes destacam os domínios de: a) “objetos materiais”; b) “objetos fictícios”; c) “localizações espaciais e geográficas”; d) objetos que existem “na mesma escala de tempo em que se formula o enunciado;” e, por último, e) “objetos que pertence a um presente” (FOUCAULT, 2012, p. 110-111).

ii. A posição de sujeito: dentro da função enunciativa, os sujeitos assumem posições distintas conforme os enunciados. As posições são móveis, ganham dinâmica de acordo com as práticas discursivas (quando referirmos à formação discursiva e a função enunciativa, a discussão sobre a posição de sujeito é detalhada).

iii. O campo associado: um enunciado tem em suas margens outros enunciados. De outra forma, eles não existem isolados, mas sempre dentro de um campo de correlações. Constituído a partir de: (a) “outras formulações” dentro do mesmo campo onde o enunciado se inscreve; (b) um “conjunto de formulações a que o enunciado se refere”; (c) um “conjunto das formulações cujo status é compartilhado pelo enunciado em questão” (FOUCAULT, 2012, p. 119-120).

iv. A materialidade: “o enunciado precisa ter substância, um suporte, um lugar e uma data” (FOUCAULT, 2012, p. 119-120). É graças a este regime de materialidade que um enunciado pode ser repetido por um ou dois sujeitos distintos ao mesmo tempo, sem, contudo, perder os elementos que lhe configuram.

Um conjunto de enunciados forma um corpus. Corpus refere-se ao conjunto de enunciados de um discurso selecionado por um analista para realizar se trabalho. Nesse sentido, a seleção do corpus é primeira fase do trabalho, mas sem sombra de dúvida a mais

importante. É sobre o conjunto material, este banco de dados construído que lança o olhar do analista. Conforme Jeane Medeiros Silva (2009) “o corpus, em si, como respaldo empírico e objeto, sustém uma representação, sempre relativa, do fenômeno estudado” (SILVA, 2009, p. 112).

Em outras palavras, “o corpus reporta-se a uma reunião, sobretudo, de fatos (...) não apenas de dados. Deste conjunto, o analista recortará Fragmentos (sequências discursivas) por meio dos quais reconstituirá as singularidades discursivas do seu objeto” (SILVA, 2009, p. 112 [grifos da autora]). Evidentemente, dada à natureza específica do corpus, este é construído observando os pressupostos teóricos, haja vista que é preciso decidir o que é “meu” corpus de pesquisa - esta escolha, em outros termos, é uma escolha teórica. Enfim, o corpus é um conjunto de enunciados selecionados com um objetivo e com um pressuposto teórico, ele é base de toda análise discursiva. E conforme estes pressupostos, a construção deste corpus segue caminhos distintos.

Quando no item anterior apresentamos as quatro modalidades de fontes (empíricas por meio das entrevistas, as fontes oficiais, as técnicas e acadêmicas e/ou formuladores e ideólogos), não descrevemos o corpus desta pesquisa, apenas os documentos a partir do qual selecionaríamos este conjunto de enunciados para proceder as análises. A construção do corpus é por si, uma primeira análise. Isto se deve ao fato das várias escolhas que se faz... Porque este enunciado e não outro? Esta decisão pressupõe um critério de escolha.

Entre os pressupostos de escolha de enunciados que compõem um corpus, se encontra o “trajeto temático”, perspectiva que exploramos nesta pesquisa. Trajeto temático refere-se aos múltiplos sentidos que um termo (palavras, conceitos, expressões, etc.) ou conjunto de termos (teóricas e categorias, por exemplo) assume em um discurso dado. Por exemplo, a palavra conservação poderia ser analisada a partir do trajeto temático, isto é, análise daria no sentido de especificar o sentido que a conservação assume em diferentes discursos (políticos e ou acadêmicos), considerando o tempo, a orientação teórica e filosófica dos autores ou das correntes de pensamento (isto sem sombra de dúvida seria um trabalho interminável).

Trajeto temático lida diretamente com a questão da historicidade dos enunciados e dos seus enunciadores. Se observarmos o sentido da palavra conservação, exemplo citado acima, com camponeses remanejados de seus territórios por uma UC de proteção integral, certamente, dariam a esta uma feição negativa. Enquanto o mesmo procedimento com um gestor, a palavra conservação assume o sentido positivo. Conforme muda o sujeito e a sua

posição histórica, muda o sentido da atividade discursiva. E seguir a mesma palavra nos vários discursos de um tema permite captar esta singularidade. Por isso, adotamos aqui este pressuposto metodológico.

Para finalizar esta apresentação conceitual, cabe precisar os conceitos:

-Análise do Discurso: conjunto de teorias, campo disciplinar e instrumental metodológico que tem como objeto de trabalho o discurso. Analisar significa compreender a produção de sentidos atribuída pelos sujeitos sociais a suas atividades discursivas.

-Discurso: refere-se a uma materialidade discursiva composta por conceitos, temas, sujeitos e objetos do discurso. Sempre se fala de uma coisa (objeto referente), de um lugar (posição de sujeito), um discurso sempre se refere a outros (campo associado) e tem uma materialidade (o suporte, o texto).

-Enunciado: recorte de um discurso. Um conjunto de coisas ditas que revela a posição ideológica, histórico social do sujeito. Um enunciado refere-se à historicidade e ao sentido do discurso.

-Corpus: é formado por um conjunto de enunciados selecionados por uma analista; é um banco de dados a partir do qual se faz as análises. É um conjunto de fragmentos discursivos retirados da totalidade com um pressuposto teórico e com uma intenção. -Trajeto temático: os múltiplos sentidos que são assumidos por um termo/ palavra ou conjunto deles no mesmo discurso. São importantes para se compreender como diferentes grupos tratam e compreendem um mesmo tema. Seguir o trajeto temático significa seguir os múltiplos sentidos da atividade discursiva.

A partir do conjunto de fontes destacadas, das entrevistas e dos instrumentos teóricos e metodológicos da AD, seguiu-se a etapa da configuração do corpus de pesquisa. Este corpus foi configurado a partir de três trajetos temáticos. Seguir estes trajetos significou uma leitura reflexiva e técnica, pois o objetivo era formar a base para a análise discursiva. Conforme verificamos no quadro 4, os trajetos temáticos são:

QUADRO 4: Trajetos temáticos

Trajeto temático Objetivo

Conservação, UCs, Norte de Minas Gerais e Degradação.

Observar como os temas conservação, criação de UCs e degradação ambiental produzem uma rede discursiva sobre a região Norte de Minas Gerais.

Unidades de Conservação, MSVP, região e desenvolvimento.

Aprender a produção de sentidos nestes temas e como eles unificam discursivamente na conservação, criação de UCs, do MSVP e o desenvolvimento.

Conservação, Mosaico, eixos de desenvolvimento (Extrativismo, turismo ecocultural e gestão integrada), regularização fundiária, biodiversidade e comunidades tradicionais ou camponesas.

Compreender os sentidos atribuídos às comunidades camponesas, à biodiversidade e o quadro de conflitos envolvendo regularização fundiária e conservação da natureza.

A partir destes trajetos, criamos três pastas para organizar os documentos. O processo seguinte foi à leitura e fichamento. Para cada documento em análise criamos uma ficha resumo sobre os principais temas em destaque, os conceitos mais recorrentes. Além desta ficha resumo, na leitura já procedíamos a um recorte dos enunciados mais significativos. Com isto, ao final da leitura de cada documento, tínhamos em mão um corpus primário de cada documento.

No que se refere às entrevistas, o primeiro procedimento foi fazer audição e transcrição dos depoimentos. Em seguida, conforme os critérios de análise definidos, selecionamos os principais enunciados que comporiam o corpus. Dado a diversidade de assuntos em uma mesma entrevista, geralmente, há material de análise nos três eixos de trabalho.

Os eixos temáticos se desdobram em capítulos. Assim, o eixo 1 deu origem ao capitulo 2, no qual analisamos a história da criação das UCs que compõem o MSVP. Para sua construção foi essencial às fontes oficiais e as fontes acadêmicas e/ou formuladores ideológicas. Nele refletimos a conservação da natureza como mecanismo de modulação do espaço, e como a evolução de tal mecanismo de modulação produziu um novo recorte regional.

No mesmo processo, o eixo temático 2 e também o 3 foi fundamental para construção do capítulo 3 e 4, no qual observamos a formação de um recorte regional baseado nas políticas de conservação e, depois, como o MSVP desdobra-se numa modalidade de planejamento biorregional. A base deste capítulo foi às três modalidades de fontes juntamente com as entrevistas.

O eixo 3 desdobrou-se no capítulo 5 da tese. No qual tentamos captar o olhar das comunidades sobre a conservação e sobre o MSVP, além de demonstrar os principais desafios para efetivação da gestão integrada e participativa e o planejamento biorregional.

2- DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO AO MOSAICO: políticas ambientais