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Os estudos apresentados no capítulo anterior sugerem alguns aspectos sobre o jornalismo, os jornalistas e suas relações com o meio intelectual que podem ser tomados como ponto de partida para uma discussão mais aprofundada sobre a forma de abordar metodologicamente esses temas. Em comum, as diferentes análises criticam o discurso essencialista sobre o jornalismo. Elas buscam situar a atividade como uma construção social, histórica e discursiva, marcada por uma diversidade de práticas e formatos, o que pode ser observado ao longo do tempo e também no interior do próprio espaço jornalístico.

A crítica a uma suposta natureza do jornalismo é reiterada pela maneira como alguns estudos situam essa prática num interdiscurso. Embora nenhuma dessas teorias negue a autonomia sócio-discursiva desse domínio, o seu reconhecimento social passa por relações de identificação, complementaridade, e oposição a outros espaços (político, intelectual, etc.). Em uma dimensão micro-social, a heterogeneidade e a interdiscursividade que marcam o jornalismo se refletem em diferentes formas de ser jornalista, de praticar essa atividade de construir uma carreira profissional, cujo caso emblemático é o dos jornalistas-intelectuais analisados nesta tese.

Se tomarmos tais assertivas como um ponto de partida, podemos dizer que qualquer estudo que ambicione analisar o espaço jornalístico deve ter em mente um complexo jogo de relações entre as identidades e práticas dos atores envolvidos nessa atividade, a definição social do jornalismo e a forma como ela se situa no contexto mais amplo da ordem social, das relações com outros espaços e com as mudanças sócio-históricas. Aceitar essas diferentes dimensões é consenso na maior parte das teorias que pretende investigar os fenômenos sociais64. O problema está em operacionalizar esses pressupostos em um modelo de análise que, embora não dê conta de toda realidade social, seja o menos reducionista possível (Demo, 1995; 2000).

Em um primeiro olhar, esse problema metodológico remete a discussões já antigas nas ciências sociais em torno das relações entre indivíduo e sociedade (Elias, 1991) e também das dinâmicas que devem ser consideradas na compreensão dos processos de

64 Sobre o assunto, ver as discussões sociológicas empreendidas por: MILLS, C. W. A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1965; ORTEGA, Felix e HUMANES, Maria Luisa. Algo más que periodistas –

sociología de una professión. Barcelona (Espanha): Editora Ariel, 2000; e BOURDIEU, P. La Noblesse d’État.

continuidade e transformação dos comportamentos individuais e da ordem social (Heritage, 1991). Aplicado ao nosso objeto, tais questões nos levam a refletir sobre o ponto de partida para os estudos sobre a identidade dos jornalistas-intelectuais. Se aos olhos do observador existe um problema de construção identitária, ele reside justamente na forma como certos valores e práticas individuais devem ser situados na forma como se reportam à definição social do jornalista e do intelectual. Dependendo da teoria usada, essas relações podem, por exemplo, resultar numa situação “funcional ou disfuncional” (Ortega & Humanes, 2001), “dominante ou dominada” (Bourdieu, 1984; 1989; 1997, entre outros).

Embora ofereçam explicações a esse processo, decidimos rejeitar as perspectivas funcionalista e bourdieusiana na análise do nosso objeto. Já havíamos aparesentado alguns argumentos no capítulo anterior para justificar nossa escolha (seções 1.1.1; 1.1.2 e 1.1.4), que também se fundamenta na bibliografia consultada65. Justificamos também nossa opção por descartar essas duas abordagens pelo de fato de não corresponderem a parte dos resultados obtidos com a análise empírica do nosso corpus.

Assim, nossa atenção se voltou ao desenvolvimento de uma terceira abordagem, já utilizada por Ruellan (1993) nos estudos sobre a identidade profissional do jornalismo: o interacionismo simbólico. Ao nos centrarmos na bibliografia sobre as interações, foi possível construir um conjunto de conceitos que correspondessem à nossa pretensão em articular o comportamento individual do nosso objeto às práticas associadas ao espaço jornalístico e intelectual. Além disso, pudemos trabalhar dentro de uma perspectiva teórica com uma tradição considerável em estudos de caráter qualitativo, o que possibilitou a construção e a operacionalização de uma metodologia de análise aplicada a um corpus limitado a dez entrevistados (ver o capítulo seguinte).

65 Existe uma vasta bibliografia de discussão metodológica nas ciências sociais e na comunicação de forma que seria impossível citar todas. Ater-nos-emos aqui naquelas cuja importância foi central no nosso caminho teórico- metodológico. Assim, sobre a crítica ao funcionalismo nas ciências sociais, ver: BECKER, H. S. Métodos de

pesquisa em Ciências Sociais. 3ª Ed. São Paulo: Hucitec, 1997; BLUMER, H. El interaccionismo simbolico:

Perspectiva y Método. Barcelona: Hora, 1982; DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1995; DEMO, P. Metodologia do Conhecimento Científico. São Paulo: Atlas, 2000; ELIAS, N. La

société des individus. Paris: Arthème Fayard, 1991 ; RUELLAN, D. Le professionnalisme du Flou. Identité et

savoir-faire des journalistes français. Grenoble, Press Universitaires de Grenoble, 1993; RUELLAN, D. Les

‘pro’ du journalisme. De l’état au statut, la construction d’un espace professionnel. Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 1997. A desconstrução da teoria bourdieuana pode ser acompanhada entre outras pelas obras de DOSSE, F. La marche des idées. Histoire des intellectuels – Histoire intellectuel. Paris : la Découverte, 2003; RIEFFEL, R. La Tribu des clercs. Les intellectuels sous la Ve Republique 1958-1990. Paris: Calmann- Lévy, 1993; RINGOOT, R. e UTARD, J.-M. ‘Genres journalistiques et “dispersion” du journalisme’. In: RINGOOT, R. e UTARD, J.-M. (orgs.). Le journalisme en invention. Nouvelles pratiques, nouveaux acteurs. Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2005 pp. 21-47.

Este capítulo se destina- às reflexões sobre o interacionismo simbólico e os conceitos que o compõem aplicados ao estudo dos jornalistas-intelectuais. Em um primeiro momento, serão expostos os pressupostos teóricos dessa abordagem, vistos sob a perspectiva das ciências sociais. Nesse percurso teórico, recorreremos à linha de análise aberta pelo filósofo e psicólogo social George W. Mead (1934). Em alguns pontos, recorreremos a outros autores ligados a perspectivas que dialogam com o interacionismo simbólico, sobretudo o construtivismo (Berger & Luckman, 1974; Schultz, 1967), a noção de configuração (Elias, 1991; 1994; Riffel, 1993), além de aspectos da teoria bourdieusiana (Bourdieu, 1993; 200266). Na segunda parte do capítulo, faremos um esforço de adaptar e desenvolver a questão da interação para uma análise sobre o espaço jornalístico e seus praticantes, tendo como base o conceito de mundo social (Becker, 1982).

2.1 – Pressupostos teórico-metodológicos do interacionismo simbólico

Nesta seção, trabalharemos de forma bastante esquemática alguns pressupostos da perspectiva do interacionismo simbólico. Não nos aprofundaremos na apresentação dessa teoria mais do que o suficiente para os nossos objetivos, inclusive porque a maior parte das discussões epistemológicas envolvidas, já foi realizada no decorrer do século XX, durante o desenvolvimento das ciências sociais. Recomendamos aos interessados em uma leitura mais aprofundada sobre o interacionismo simbólico, as obras de Mead (1934), Blumer (1982) e Strauss (1992).

O interacionismo simbólico centra sua análise no modo como as linhas de comportamento são elaboradas pelos atores tendo em vista os limites da ação do seu interlocutor. Tais atores não se resumem às pessoas, podendo haver interações com objetos físicos, grupos sociais, instituições, conceitos e abstrações. Cada interação se fundamenta em um processo complexo em que o indivíduo busca orientar suas ações a partir da forma como ele antecipa a reação do outro. Efetivada essa reação, o sujeito reavalia sua linha de conduta e a orienta para a interação subseqüente.

O desenvolvimento dessa perspectiva pretente, na verdade, fugir do determinismo marxista que analisa a conduta humana em termos de lutas de classe (Blumer, 1982).

66 Em pequenos ensaios sobre a juventude e a família Bourdieu (1993; 2002) trata de forma mais explícita questões epistemológicas que fundamentam sua teoria dos campos. São textos bastante reveladores porque remetem ao diálogo que o autor promove entre o que ele chama de etnometodologias e os estruturalismos de matriz marxisita, com o objetivo de construir da sua própria metodologia.

Também se contesta o modelo weberiano de ação racional67. A ação individual ou coletiva pode, por exemplo, se balizar a partir do imaginário (Strauss, 1992), de uma obstinação (Blumer, 1992), etc. Convergindo com as perspectivas construtivistas (Schutz, 1967; Heritage, 1991), o interacionismo simbólico destaca o caráter contextual da ação social, na medida em que as motivações subjacentes a ela devem ser situadas no ato da interação, na forma como o indivíduo define e interpreta o objeto sobre o qual ele se relaciona68.

Evidenciamos, assim, a segunda característica dessa perspectiva: a forma como toda interação é simbolicamente mediada. O objetivo de Mead (1934) é justamente o de romper com a psicologia behaviorista, hegemônica no início do século XX, que limitava a análise das interações humanas ao esquema estímulo-resposta. Uma interação pressupõe que o ator social oriente seus atos de acordo com a representação que faz do outro. A construção desse outro remete a uma série de presunções sobre o interlocutor, algumas ligadas a experiências individuais, mas também a contextos coletivos, a uma dimensão que poderíamos chamar de estrutural, definida por Mead (1934) por meio do conceito de “outro generalizado” (generalized other).

Toda interação se fundamenta num conjunto de “símbolos significantes” (signifiant

symbols) que devem ser partilhados pelos atores envolvidos nesse processo. Essa base comum engloba a linguagem (Berger & Luckman, 1974), normas de conduta (Heritage, 1991), categorias sociais (Bourdieu, 1993), enfim, toda uma compreensão intersubjetiva da realidade social69 Ao mesmo tempo, a atuação do indivíduo também depende do modo como

67 De forma breve, podemos definer o modelo weberiano de análise sociológica a partir da construção de tipos ideais de comportamento humano, baseados na ação racional dos indivíduos, aplicados na análise do funcionamento do organismo social, ou seja, “el método científico consisitente en la construction de tipos investiga y expoe todas las conexiones de sentido iracoinal, afectivamente condicionadas, del comportamiento que influyen en la acción, como ‘desviaciones’ de un desarrollo de la misma ‘construindo’ como puramente racional un arreglo a fines” (Weber, 1964: 07).

68 O interessante, nesse caso, é a forma como o construtivismo de Schutz (1967: 31-31) para endossar essa idéia do caráter contextual das motivações subjacentes à ação social faz uma leitura bastante particular da teoria da ação racional de Weber afirmando que o seu modelo proposto pelo sociólogo alemão propõe não uma racionalidade abstrata, mas a forma os indivíduos, tendem a se pautar pelo que é mais razoável, de acordo com as suas concepções e do pensamento de senso comum, na hora de agir. Assim, “if I project a rational action which requires interlocking of my and the other’s motives of action to be carry out (…), I must be curious mirror-effect, have sufficient knowledge of what he, the others, knows (…), and this knowledge of his is supposed to include sufficient acquaintance with what I know”.

69 Essa dimensão sociológica do interacionismo, bastante presente no trabalho de Strauss (1992) foi melhor desenvolvida pelo construtivismo de Schutz (1967) e Berger & Luckman (1974). Mesmo Bourdieu (1993: 04), numa crítica ao nosso ver injustificada ao construtivismo (porque o acusa de tomar a realidade como uma ficção) tende a trabalhar essa relação entre estruturas sociais e estruturas mentais, entre o plano simbólico e a ação social: “Quand il s’agit du monde social, les mots font les choses, parce qu’ils font le consensus sur l’existence et le sens des choses, le sens commun, la doxa acceptée par tous comme allant de soi (…). Inscrits, à la fois, dans l’objectivité des structures sociales et dans la subjectivité des structures mentales objectivement orchestrées, ils se présentent à l’expérience avec l’opacité et la résistance des choses”.

ele interioriza subjetivamente a realidade que engendra formas de definir e agir sobre o objeto da interação.

O interacionismo simbólico busca, portanto, incorporar duas dialéticas fundamentais à compreensão do mundo social. Primeiro a idéia de que toda interação é um processo de ação sobre o outro (indivíduo, grupo, sociedade), no plano simbólico (das ‘palavras’) e também no plano concreto da vida social (das ‘coisas’). Segundo, porque essa relação se articula nas dimensões estrutural/sociológica e individual/psicológica. A especificidade dessa perspectiva está justamente na forma como a interação simbólica deve ser entendida como um lócus privilegiado de análise dos fenômenos sociais. Os interlocutores envolvidos no processo interativo orientam, confrontam, confirmam ou modificam suas visões de mundo e práticas tendo em vista a relação com o outro. Nesse sentido, a interação adquire um caráter evolutivo ou transformador (Strauss, 1992).

Em uma escala micro-sociológica esse processo é fundamental para a construção identitária, na forma como, no decorrer da interação e graças a ela, pessoa avalia melhor a definição de si e dos outros (Elias, 1994; Hall, 2001; Strauss, 1992). Ao mesmo tempo, tais processos são extensíveis à construção da ordem social. Ou seja, o conceito sociológico de estrutura é resultado do processo de objetivação de uma miríade de interações realizadas pelos diferentes atores envolvidos num grupo, instituição ou sociedade. As duas dimensões, ligadas ao processo interativo, serão detalhadas logo a seguir.

2.1.1 – Identidade e interação

Ao interagirem, os indivíduos não se limitam a personagens que jogam um papel conhecido, adotando uma linha de conduta exigida ou escolhida. Todo o processo interativo também possui um caráter formativo, no qual o indivíduo se reavalia, a partir da relação com o outro, em uma espécie de conversa interior (Blumer, 1982).

Ao analisar o processo de construção identitária a partir das interações, Mead (1934) desenvolve uma tipologia em que o indivíduo (self, “si mesmo”) é, ao mesmo tempo, objeto (me, “mim”) e sujeito (I, “eu”)70. Assume-se que, em parte, nossas condutas são definidas e controladas através de uma identidade que faz referência às atitudes e expectativas dos outros para conosco (me). O me, certamente, vai além da situação imediata da relação com o

70 Alertamos para um problema de tradução desses conceitos. A língua inglesa e também o francês fazem uma distinção entre os pronomes que fazem referência ao indivíduo como sujeito (“I” e “je”) e objeto (“me” e “moi”). Não existe uma correspondência exata desses termos na língua portuguesa. De forma que daremos preferência ao uso dos termos no original, no lugar da precária utilização das formas “eu” e “mim”.

outro e envolve também outros atores que moldam a interpretação e a conduta dos interlocutores para o indivíduo (Strauss, 1992). Assim, existem questões de ordem sociológica envolvidas no processo de interação. São eles: os atributos institucionais ligados aos atores (como diplomas e cargos), as ideologias associadas aos estatutos, às normas de conduta subjacentes a certos tipos de interação, entre outros.

Essa forma de ser portar, que é socialmente definida, é confrontada pelas nossas ações e interpretações, específicas aos diferentes contextos de interação. Ou seja, embora exista um conjunto de normas procedurais (Heritage, 1991), associadas à forma como nos assumimos frente ao interlocutor (me), o indivíduo, na figura do eu-sujeito (“I”) sempre pode agir de forma inesperada71. Nesse processo, a identidade é reavaliada simultaneamente pelo sujeito e por seu interlocutor, dando origem a um complexo jogo de interpretações e, conseqüentemente, de mudanças ou continuidades no comportamento. Assim, em uma interação:

I) O sujeito interpreta a si mesmo, na forma como a ação inesperada (“I”), induz a reavaliar sua identidade. Para isso se utiliza do mecanismo de “conversa interior”;

II) Ele interpreta a reação do outro. Dependo dela, pode ou não alterar a forma de apresentação de si, recorrendo, por exemplo, a mecanismos de imposição de estatutos;

III) O interlocutor também avalia a forma como o sujeito se apresenta e altera ou não sua interpretação sobre ele;

IV) Na sua resposta, o interlocutor pode ou não reiterar a definição de si apresentada pelo sujeito, de forma a orientar a reação deste.

Esse esquema interpretativo, aplicado ao contexto da interação face-a-face, é extensivo a outras dimensões do universo social, explicando as relações com/entre grupos, instituições, sociedade (Blumer, 1982). Ele expressa numa dimensão reduzida a dialética de co-construção entre indivíduo e estrutura social a partir das interações:

A resposta do ‘eu’ envolve adaptação, mas uma adaptação que afeta não apenas o self, mas também o ambiente social que ajuda a construí-lo, ou seja, ela implica numa visão de evolução na qual o indivíduo afeta o seu próprio ambiente da mesma forma que é afetado por ele72 (Mead, 1934: 214).

71 Sobre o assunto, Heritage (1991: 11) afirma que “les motivations et autres facteurs ‘subjectifs’ que l’on a coutume de situer derrière l’action sont à la portée des acteurs grâces à la combinaison du savoir contextuel qu’ils possèdent et de leur appréhension tacite de la structure procédurale de leurs propres activités”.

72 Tradução do autor de: “The response of the ‘I’ involves adaptation, but an adaptation which affects not only the self but also the social environment which helps to constitute the self; that is, it implies a view of evolution in which the individual affects its own environment as well as being affected by it”.

A identidade é formada por processos sociais. Uma vez cristalizada, é mantida e modificada ou mesmo remodelada pelas relações sociais. Os processos sociais implicados na formação e conservação da identidade são determinados pela estrutura social. Inversamente, as identidades produzidas pela interação do orgânico, da consciência individual e da estrutura social reagem sobre a estrutura social dada, mantendo-a, modificando-a, ou mesmo remodelando-a (Berger & Luckmann, 1974: 228)

Tomando como base essa dialética, podemos concluir que, embora não negue a existência de uma estrutura social, a perspectiva do interacionismo simbólico possui uma forma particular de definir e trabalhar com esse conceito, como analisaremos logo a seguir. 2.1.2 – Estrutura e mudança social

Na nossa descrição sobre o processo de interação, apontamos para a existência de uma dimensão sociológica, que podemos chamar também de estrutural. Ela delimita a forma de se identificar e se comportar na relação consigo mesmo e com o outro. Nesse processo, as estruturas funcionam como instâncias de mediação dos sentidos socialmente cristalizados que são apreendidos e ao mesmo tempo articulados pelos atores na sua interação. No lugar de um conjunto de “características esqueléticas”, destinado a descrever aspectos equivalentes das diferentes sociedades, as estruturas devem ser vistas como uma forma de apreensão da realidade social, “presentificada” pelos atores dependendo do contexto de interação (Hale, 1990).

Apesar da sua aparente estabilidade, ordem estrutural também está dialeticamente sujeita às transformações originadas por meio da interação entre diferentes atores sociais73. Assim, o que chamamos de estrutura, na verdade, deve ser considerada como uma ordem negociada que emerge quando as pessoas tentam – individual ou coletivamente – resolver os problemas encontrados em situações concretas (Strauss et all., 1964; McCall & Wittner, 1990). Em um dado momento, o resultado dessas negociações se configura em um conjunto de regras, políticas, acordos, entendimentos, pactos, contratos e outras formas de arranjos. (Strauss et all., 1964) que podem adquirir um status ontológico para as pessoas que passam conviver com elas (Berguer & Luckman, 1974). Tomadas dessa forma, mais do que uma ordem invariável, esta estrutura pode ser constantemente transformada74.

73 Esse é também o pressuposto utilizado por Elias (1991; 1994) para definir seu conceito de “configuração”. 74 A metáfora utilizada por Strauss et all. (1964: 311) para descrever o caráter negociável da ordem social e do sistema normativo merece ser citada pela forma como resume esse processo: “The realm of rules could them useful pictured as a tiny island of structured stability around which swirled and beat a vast ocean of negotiation.

Resumindo, podemos dizer que as estruturas sociais se constroem e se transformam através das contínuas negociações realizadas entre os indivíduos que as integram. Tais negociações, realizadas por meio do processo interativo, são bem mais heterogêneas e complexas do que as dinâmicas de luta por poder que permeiam a noção do campo de Bourdieu. Elas são afetadas por posições hierárquicas e ideológicas, mas também por relações pessoais. Podem ser explícitas ou não. Podem ser permanentes, temporárias, estabelecidas, revogadas, renovadas ou mesmo esquecidas (Strauss et all., 1964).

Os diferentes conceitos e autores apresentados nesta seção permitem estabelecer as bases do nosso referencial expondo como certas questões teórico-metodológicas – construção identitária, das estruturas sociais, da ação social e das motivações explícitas a ela – são abordadas do ponto de vista das ciências sociais. É preciso, entretanto, avançar na aplicação desses pressupostos, operacionalizando-os no que Merton (1970) chama de “teoria social de médio alcance”. Significa partir de pressupostos gerais, ligados a uma perspectiva mais abstrata – o interacionismo simbólico –, para construir um modelo teórico que também envolve abstrações, embora esteja mais próximo do nosso objeto empírico75. É o que

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