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Capítulo 1 Sociedade civil e Cultura

1.2 Cultura em movimento

1.2.1 Prestando serviços públicos de cultura

Os anos 90 foram marcados pela necessidade da criação de um Estado Mínimo, fundamentada na teoria do neoliberalismo e “de que os recursos públicos deveriam ser administrados com maior eficiência” (Santos, s/d:3). Isso implicava, também, numa maior flexibilização nas relações trabalhistas e nas licitações de compras e gestão pública. A partir desse cenário, deu-se início aos diversos processos de privatização de empresas estatais, sendo, no Brasil, um dos mais emblemáticos o da privatização dos serviços de telefonia – a compra da Telesp pela Telefônica, empresa espanhola. Outro movimento importante nesse sentido foi a mobilização social frente à tentativa de venda da Petrobras. Para Santos, durante as privatizações, era evidente a centralidade das ações para a lucratividade dos negócios e para atrair os investimentos privados. Contudo, ainda se via necessária a criação de outro mecanismo que não estivesse sob a visão do lucro, mas que garantisse a execução dos serviços públicos com a parceria do setor privado. Santos (s/d:3) complementa que:

A concepção que orientava essa proposta era de que a administração direta deveria se envolver com atividades exclusivas a sua natureza (formulação e execução de leis, aplicação da justiça, planejamento das políticas públicas, segurança interna e externa). As demais passariam a ser consideradas atividades não-exclusivas, como a prestação de serviços sociais, de saúde, ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura.

Nesse momento foram concebidas qualificações que pudessem garantir que entidades sem fins lucrativos, sob o formato de Organizações Sociais (OS) ou Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips)12, pudessem assumir alguns serviços considerados atividades não-

12 OS e Oscips são, na realidade, qualificações criadas por meio de leis para que uma organização sem fins lucrativos possa assumir a execução de atividades de serviços públicos. A lei 9.637/98 deu vida às OSs, dando, portanto, possibilidade de que essas organizações assumissem a execução de serviços públicos, por meio de contratos de gestão. As Oscips nasceram em 1999, por meio da Lei 9.790/99, que estabelece o Termo de Parceria entre o poder público e entidades privadas.

exclusivas. O objetivo desses títulos era garantir que essas entidades pudessem criar uma relação de parceria com o Estado na gestão de programas ou ações públicas de saúde, cultura, educação, assistência social, entre outros. OSs e Oscips são, portanto, qualificações e não formas jurídicas de organizações sem fins lucrativos. Dentro do Gife, 44% dos seus associados possuem a titularidade de Oscips e 4%, de OS. A Abong não apresenta essa informação sobre os seus associados, mas pode-se supor que existam, também, OSCs com as mesmas titularidades. O proposto de entrar com um pedido dessa qualificação, muitas vezes, tem por objetivo facilitar certas formas de financiamento e de editais públicos, caso das Oscips com os termos de parcerias. Contudo deve-se fazer a ressalva de que, apesar de serem títulos, qualificações, muitas entidades surgiram dentro deste contexto – de prestadoras de serviços – e, portanto, para esse fim:

Conforme Abreu (2001), a partir dos anos 1990, as elites dirigentes no Brasil passam a criar organizações empresariais para atuar como organizações da sociedade civil. Surgem também organizações paragovernamentais, criadas por intermédio de políticas de governo, com o propósito de implementar políticas de governo (Paz, 2005:19).

Isso difere das organizações que nasceram a partir de uma historicidade própria, na defesa de direitos e na luta pela democracia no país, como será visto, a seguir, nos demais eixos propostos.

Em pesquisa realizada por Freitas (2010) sobre a gestão pública de serviços culturais nos estados de São Paulo e Minas Gerais, foram analisados diversos serviços prestados por meio de OS ou Oscips. A pesquisa colheu os dados nessas unidades federativas por serem as que utilizam, com bastante frequência, o sistema de parceria entre público e privado. O Estado de São Paulo adotou esse formato e possui muitas instituições com esse perfil. Foram identificados 39 espaços e programas culturais desenvolvidos no estado de São Paulo, coordenados por 10 organizações sociais, para a gestão de espaços públicos, como museus (Pinacoteca do Estado, gerenciada pela Associação Amigos da Pinacoteca), ou instituições voltadas ao ensino das artes (Associação Santa Marcelina Cultura, que é responsável pela Escola de Música do Estado de São Paulo - Tom Jobim).

Freitas não considera que essa forma de parceria possa ser considerada como “privatização” dos serviços públicos, na medida em que acredita que alguns exemplos de gestão

com OS e Oscips foram bem sucedidos, e nomeia-os como publicização dos serviços ou gestão pública não estatal. Para a pesquisadora, o importante é respeitar os processos de contratação dessas organizações, garantir a transparência e o controle social frente às ações. Um dos problemas apontados está na falta de transparência na contratação dessas organizações e também na publicação das informações sobre os serviços e sobre os recursos financeiros. “Entretanto, as vantagens imediatas obtidas com o modelo não devem desviar os questionamentos necessários, tais como a que preço e de que formas estas vantagens estão sendo atingidas ” (Freitas, 2010:113). Agnaldo dos Santos, sociólogo e pesquisador do Observatório do Cidadão do Instituto Polis, concorda que deve valer o controle social e o monitoramento dessas parcerias e observa que ainda faltam estudos e informações sobre o tema, mas que:

[...] movimentos sociais e fóruns da sociedade civil que atuam em políticas onde existem OS e Oscip, como no caso da saúde, denunciam que essas organizações não permitem (ou não facilitam) a presença de conselhos gestores, e que incorrem em irregularidades ao utilizarem recursos humanos da administração pública direta. Também denunciam a enorme falta de transparência financeira (Santos, s/d:4).

Do ponto de vista da cultura, muitas vezes a parceria não é feita de forma salutar e não se respeita a base do que seja uma parceria, que seria a relação entre iguais e responsabilidades mútuas.

A prática de algumas experiências de publicização na área cultural prova que, não raro, as metas são estabelecidas unilateralmente, oferecendo um risco duplo. Quando apenas a visão da OS ou Oscip prevalece, o interesse público pode ser comprometido e a abstenção do Estado pode significar a ausência de políticas públicas para o setor cultural. Por outro lado, quando o Estado controla sozinho a elaboração e proposta das metas, corre o risco de incoerência com a realidade da gestão e no desperdício de uma oportunidade de parceria correta com a sociedade para elaboração de políticas públicas (Freitas, 2008:97).

Tais apontamentos podem ser ampliados para toda e qualquer forma de parceria entre a sociedade civil, o poder público e o setor privado. Abong, Gife e outras redes de associações defendem a necessidade de um ambiente legal e seguro para o acompanhamento dessas parcerias e do uso dos recursos públicos. Para tal, foi criada uma frente de diálogo com o governo federal através da Plataforma por um Novo Marco Regulatório para as organizações da sociedade civil.

Defendem a implementação de um marco legal e de políticas públicas que criem um ambiente favorável e seguro para o envolvimento dos cidadãos e cidadãs em causas públicas. As organizações precisam dessas condições para mobilizar recursos junto à própria sociedade

civil e, com legitimidade e transparência, acessar recursos públicos para realizar atividades relevantes para a democracia e para o bem comum (Abong, 2012).

Contudo, para compreender se essa forma de parceria entre público e privado assume ou não uma relação de privatização de serviços, é preciso, antes, proceder a uma análise mais aprofundada das relações estabelecidas e estudar diretamente alguns casos. Como não é objeto de análise desta pesquisa, esta limitar-se-á ao apontamento dessas reflexões, observando a necessidade de uma análise mais profunda e da consolidação de um campo de pesquisa sobre o tema.

Por essas razões, esta pesquisa não se dedicará muito a esse eixo e às OS, na medida em que o seu foco são mais as ações vindas diretamente da sociedade e que estão contextualizadas historicamente pela defesa de direitos e pela luta pela democracia. A construção das OSs está numa lógica distinta e, por isso, não condiz com o que essa autora acredita ser uma organização da sociedade civil.