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Prevalência de sintomas somáticos associados à depressão na Atenção Primária

A maioria dos pacientes atendidos na Atenção Primária não tem uma doença física diagnosticável, a despeito de apresentar predominantemente sintomatologia somática (Panzarino, 1998). Na Atenção Primária, a proporção de pacientes com sintomas somáticos para os quais não foram encontradas explicações orgânicas pode variar entre 20% a 84% (Kellner, 1985; Smith et al., 1995). É bastante comum que esses sintomas ocorram concomitante com transtornos psiquiátricos, especialmente os transtornos depressivos e os ansiosos. Esta coexistência é encontrada na maioria dos grupos étnicos e culturais, mesmo quando se considera a existência de uma grande variação intercultural em relação ao tipo e à frequência do transtorno (Escobar, 1995; Kirmayer & Young, 1998). Essas variações na apresentação dos sintomas provavelmente se devam aos resultados da interação de múltiplos fatores dentro dos contextos culturais que afetam a forma como os indivíduos identificam e classificam suas sensações corporais, percebem sua doença e procuram atenção médica. Dois estudos (Escobar et al., 1998; Interian et al., 2004) demonstraram que cerca de um quinto dos pacientes atendidos na Atenção Primária apresentavam SSCI e que dois terços deles preenchiam os critérios diagnósticos para o TDM. Segundo esses

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autores, os SSCI representariam a forma típica de apresentação dos transtornos psiquiátricos nos serviços de Atenção Primária.

Esses sintomas de natureza somática tendem a se tornar persistentes, apresentando um curso clínico crônico e sem remissão (Gureje & Simon, 1999). Estudos com pacientes considerados “superutilizadores” dos serviços de saúde demonstraram que, em sua maioria, eles apresentam taxas mais altas de sintomas somáticos inexplicados clinicamente e também têm uma alta prevalência de transtornos mentais (Katon et al., 1990; Katon, 1987; Simon, 1992), e que a coexistencia de SSCI e transtornos depressivos é particularmente proeminente nesses pacientes.

Alguns estudos estimam em 76% o número de pacientes com depressão que reportam sintomas somáticos, incluindo vários tipos de dor, tais como cefaleia, epigastralgia, dor lombar e outras de localização imprecisa (Kroenke & Price, 1993; Corruble e Guelfi, 2000).

A literatura médica tem mostrado que a maioria dos sintomas somáticos relatados pelos pacientes atendidos em unidades de cuidados primários não tem causa orgânica identificável. Kroenke & Mangelsdorff (1989) demonstraram esse fato de forma sucinta em uma revisão retrospectiva de 1.000 prontuários médicos de pacientes, em que examinaram a incidência, a etiologia e o desfecho clínico dos 14 sintomas somáticos mais comuns. Notavelmente, esses sintomas incluem oito das queixas mais comuns referidas em cuidados primários. Uma causa orgânica para esses sintomas foi encontrada em apenas 16% dos casos; 10% tinham uma provável origem psicogênica e o restante dos sintomas tinha origem desconhecida. Khan et al. (2003) procederam à observação similar em uma amostra de 289 pacientes de Atenção Primária com sintomas somáticos; 48% desses sintomas foram considerados psicogênicos ou de origem desconhecida.

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Em um estudo epidemiológico transversal conduzido em um centro médico de Atenção Primária à saúde, Gerber et al. (1992) avaliaram a relação entre as queixas físicas específicas dos pacientes e os sintomas depressivos subjacentes. Os resultados desse estudo indicaram que as queixas reveladoras de um alto valor preditivo positivo (positive predictive value – PPV) para depressão eram os distúrbios de sono (PPV 61%), fadiga (60%), queixas múltiplas (três ou mais) (PPV 56%), queixas músculo-esqueléticas não especificadas (PPV 43%), dor nas costas (PPV 39%), respiração curta (PPV 39%) e queixas somáticas vagas (PPV 37%). Os pesquisadores concluíram que os pacientes deprimidos são comuns na Atenção Primária e que o estilo de queixas físicas mencionadas acima e sintomas físicos encontram-se frequentemente associados à depressão subjacente.

No Canadá, um estudo examinou retrospectivamente 685 pacientes atendidos em Atenção Primária e constatou que 76% dos pacientes com diagnóstico de transtorno depressivo ou transtorno de ansiedade atribuíam aos sintomas somáticos a principal razão para procurarem atendimento médico (Kirmayer et al., 1993).

Durante a segunda fase do estudo “Depression Research in Europe Society II (DEPRESS II)”, que envolveu 1.884 sujeitos em tratamento para depressão, dois dos três sintomas mais referidos durante o episódio depressivo atual (cansaço e problemas de sono) eram de natureza somática (Tylee et al., 1999).

Simon et al. (1999) realizaram um estudo internacional envolvendo 5.447 pacientes originários de 15 centros de Atenção Primária à saúde em 14 países nos cinco continentes. Essa amostra foi submetida a uma avaliação com a entrevista estruturada Composite International Diagnostic Interview (CIDI – primary care version). Desses 5.447 pacientes, 1.146 satisfizeram os critérios para o diagnóstico de TDM e 791 (69% dos 1.146 pacientes) relataram que os sintomas físicos foram a principal

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razão para procurarem ajuda médica, enquanto 126 (11%) negaram experimentar sintomas psicológicos de depressão quando diretamente questionados.

Ao investigar a sobreposição dos diagnósticos de depressão, ansiedade e somatização entre pacientes atendidos na Atenção Primária, 2.099 pacientes consecutivos de 15 centros nos EUA foram examinados psiquiatricamente, utilizando-se as escalas PHQ-8 (depression module), PHQ-15 e a GADS (Generalized

Anxiety Disorder Scale). Em mais de 50% dos casos foi constatada a comorbidade

entre essas três condições, demonstrando que a existência dessa sobreposição merece ser investigada em tais pacientes (Löwe et al., 2008).

Em sua abrangente revisão sobre a importância dos sintomas somáticos na depressão em Atenção Primária, Tylle & Gandhi (2005) indagam se esses sintomas não poderiam ser considerados como preditores de um quadro depressivo nesses pacientes. Ao menos quatro estudos (Hotopf et al., 1998; Barkow et al, 2001; Patten, 2001 e Terre et al., 2003) mostraram que pacientes com sintomas somáticos têm maior risco de vir a desenvolver um episódio depressivo. Da mesma forma, pacientes com depressão têm maior probabilidade de vir a desenvolver sintomas somáticos em longo prazo que os não deprimidos (Von Korf et al., 1993; Hotopf et al., 1998). Além disso, quanto maior o número de sintomas somáticos que um indivíduo apresente, maior será a possibilidade de que seja portador de um quadro depressivo (Kroenke et al., 1997; Nakao & Yano, 2003). Um estudo em 1.143 trabalhadores japoneses demonstrou que o número de sintomas somáticos identificados em uma lista contendo 12 itens correlacionava-se positivamente com a prevalência de depressão (Nakao & Yano, 2003). Kroenke et al. (1997) também observaram que múltiplos sintomas somáticos (seis ou mais sintomas) se configuravam como preditor independente de depressão e ansiedade, em um estudo que envolveu