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4.3 Consequências para rule of law

4.3.1 Previsibilidade e ordem

O primeiro capítulo dessa dissertação já tratou da importância de previsibilidade e ordem para o conceito de rule of law. Ao fazer uma das primeiras considerações sobre a questão, Bishop (1961) afirmou que uma das principais funções do direito internacional e, rule of law, é garantir a previsibilidade, sendo esta um dos principais desejos dos Estados. A previsibilidade também está associada à ordem, sendo as acepções de Hayek e Bull utilizadas

nessa dissertação.44 Como ordem, no conceito de Bull, trata de um padrão de atividades, a capacidade de prever as ações dos atores é fundamental para garanti-la.

Por um lado, previsibilidade e ordem são consequências diretas do cerceamento do poder arbitrário, que será tratado na próxima seção. Entretanto, a resolução de disputas em meio pacífico, judicial, pode contribuir significativamente para esses dois resultados de rule of law.

A primeira contribuição consiste nas definições geradas nos casos analisados pelo Tribunal Internacional para o Direito do Mar, cujos esclarecimentos são de valor importante para a tomada de decisões dos atores do sistema internacional. Isso se deve ao fato de que o esclarecimento sobre pontos controversos do direito internacional produz informação sobre como serão resolvidos (HELFER; SLAUGHTER, 2005). Sendo assim, existem alguns exemplos nos casos analisados pelo Tribunal que devem ser mencionados. O caso do M/V Saiga (2) é particularmente importante, uma vez que as diversas demandas de São Vicente e Granadinas permitiram a definição de pontos importantes. Destacam-se, aqui, a interpretação sobre a perseguição (hot pursuit, artigo 111 da Convenção de 1982), o uso da força e reparações no âmbito do direito do mar. O caso do uso da força, conforme já tratado na seção 3.2.2, é um caso onde se invoca o artigo 293 e o Tribunal aproveitou para esclarecer, junto com questões sobre o perigo às tripulações, o uso de outras fontes do direito internacional. A relevância jaz no precedente que isso gera, invocado posteriormente em outros casos. Mesmo que a forma como reparações foram classificadas pelo ITLOS não condiz com os direitos humanos, gerou-se uma regra a partir da qual a corte deve decidir sobre danos em casos futuros (WENDEL, 2007).

Outro marco que pode ser considerado é o julgamento do Camouco, principalmente no que diz respeito à apreciação de demandas que fujam do que o artigo 292 permite que o Tribunal considere. Ou seja, o Tribunal optou pela interpretação mais positivista atendo-se exclusivamente à liberação de embarcação e tripulantes ou determinação da fiança. Todos os outros julgamentos baseados no artigo 292 seguiram a jurisprudência produzida no caso de número 5 (Camouco), mostrando como é possível caracterizar a geração de previsibilidade. Quando, no âmbito de demandas sob o artigo 292, outras questões foram levantadas, notadamente a legalidade da detenção da tripulação e os procedimentos internos adotados pelos países, foram rejeitadas pelos magistrados.

Ainda em referência ao artigo 292, o ITLOS emitiu importante julgamento, no caso do Tomimaru, esclarecendo a importância de ratione temporis na interpelação de ações sob esse artigo e rejeitando a demanda japonesa. A argumentação da corte seguiu o raciocínio de que, tratando o artigo da pronta liberação e, tendo seu conteúdo prazos específicos para a realização de certas ações por parte de Estados, a consideração ratione temporis é fundamental para basear a demanda sob o artigo 292 da Convenção. Extrapolado o prazo que o tribunal considera razoável – oito meses, tempo levado pelas autoridades japonesas não foi considerado como tal – não é possível interpelar uma demanda sob o amparo desse artigo.

Ligado, ainda, ao Camouco, pode-se ressaltar as regras definidas pelo Tribunal para as fianças. Como grande número de casos determinou fianças consideradas abusivas, cabe ressaltar os elementos essenciais considerados pelo Tribunal (Camouco, par. 67):

The Tribunal considers that a number of factors are relevant in an assessment of the reasonableness of bonds or other financial security. They include the gravity of the alleged offences, the penalties imposed or imposable under the laws of the detaining State, the value of the detained vessel and of the cargo seized, the amount of the bond imposed by the detaining State and its form.

A próxima seção abordará, ainda, a questão da razoabilidade das fianças e possíveis abusos de direitos. Entretanto, o importante do julgamento em questão é a regra gerada e seguida em todas as outras decisões com base no artigo 292 ou em que a razoabilidade das fianças foi questionada – pelo menos cinco casos (5, 6, 11, 13, 14 e 19).

Em algumas situações, porém, o Tribunal Internacional para o Direito do Mar deixou a desejar, gerando insegurança. Esse é o exemplo das questões levantadas pelo Panamá e Seychelles contra a França (Camouco e Monte Confurco) e pelo Panamá contra Guiné-Bissau (M/V Virginia G), no que se refere à detenção ou prisão da tripulação dos navios. Essa dissertação já tratou desses temas nas seções anteriores, mas é importante enfatizar que as decisões do ITLOS nesse respeito, principalmente ao ignorar as disposições do artigo 27 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, assim como o artigo 73(3) da Convenção da ONU sobre o Direito do Mar e outras normas da Assembleia Geral da ONU, respaldam Estados que se utilizam de artifícios meramente formais para praticar a prisão de facto (embora não de jure) das tripulações de navios que infringem regulamentações pesqueiras.

Apesar de, em determinadas circunstâncias, o ITLOS contribuir para a previsibilidade e, consequentemente, ordem nas relações internacionais, percebe-se como a fragmentação do direito internacional desempenha um papel catalisador, utilizando o parágrafo anterior como exemplo. Um outro problema da leitura isolada do direito do mar e,

especificamente da Convenção, é possibilidade de que circunstâncias similares possam ter uma releitura, a depender das normas utilizadas em sua análise. Isso poderia ser evitado se, desde o início a corte fizesse uso do artigo 293. Pela redação desse artigo (vide página 91), a aplicação de outras normas do direito internacional não só é esperada, como também não depende de uma expressa exigência ou apresentação de tais fundamentos nas demandas dos Estados ante o Tribunal.

Uma consideração final sobre a ordem decorre das questões avaliadas acima. A solução de controvérsias constitui um reforço à ordem endógena, espontânea de um sistema, uma vez que não há uma autoridade que a imponha de forma arbitrária. Trata-se de uma situação em que diferentes partes acordam em submeter uma disputa à resolução pacífica, comprometendo-se com a vinculação que se gera a elas. Pode-se argumentar, ainda, que há um reforço da noção de ordem internacional tal como traçada por Bull, em que princípios primários e secundários da sociedade internacional são preservados por meio de padrões de atividades. Há, por exemplo, o entendimento do Tribunal de que a subsistência das pessoas é essencial, mas deve-se ter um equilíbrio entre, de um lado, a soberania estatal para fiscalização do que lhe compete e, do outro, o direito de outros Estados e populações ao acesso a recursos que podem ser compartilhados, bem como o resguardo da liberdade de navegação que pode, em determinadas circunstâncias, ser restringida.

Sendo assim, apesar de haver uma defesa de princípios primários e secundários da sociedade internacional, em alguns momentos falta clareza do Tribunal Internacional para o Direito do Mar decidir sobre questões mais transversais. A liberdade de navegação pode ser restrita em determinadas circunstâncias, mas essa leitura envolve considerar, transversalmente, outros atores e normas nas relações internacionais. No contexto da fragmentação do direito internacional, fica claro que previsibilidade e ordem são atingidas, em alguma medida, pelo ITLOS, quando suas interpretações (mesmo da área restrita do direito do mar) contribuem para a regularização de entendimentos e padronização de procedimentos. A insegurança permanece, contudo, pelo fato de que a fragmentação ignora outras áreas correlatas do direito aplicável e fatos que, necessariamente, se vinculam.