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4.3 Consequências para rule of law

4.3.2 Restrições ao poder arbitrário

A existência de um mecanismo de solução de controvérsias de forma pacífica também beneficia o controle do uso arbitrário do poder, em todos os aspectos levantados na seção 1.3.2. Primeiramente, considera-se a possibilidade de que Estados, independentemente

de seu tamanho, potencial econômico ou militar, resolvam disputas sem o recurso à força. Essa questão será abordada como maior ênfase na seção seguinte, sobre isonomia. Entretanto, para rule of law, o cerceamento do poder arbitrário é um tema recorrente, e o fato de que o Tribunal permite que países com diferentes contextos de poder e desenvolvimento estejam em pé de igualdade é fundamental para sua contribuição para o a direção desse ideal nas relações internacionais.

Logo, cabe abordar a forma como os julgamentos contribuem para a distribuição de benefícios que tendem a evitar a proliferação do poder arbitrário. Citado na seção 3.1, os casos que envolvem fiscalização e pesca de espécies reguladas são, aqui, de utilidade. O Camouco, Monte Confurco, Grand Prince e Volga foram todos, de alguma forma, ligados pela merluza negra. Aquela seção também abordou a forma como essa espécie está sujeita à gestão de pesca. Nos julgamentos, o Tribunal considerou o contexto da pesca ilegal como um fator a ser considerado para a definição das fianças, baseado em apelos como o da Austrália:

The Respondent has pointed out that continuing illegal fishing in the area covered by the Convention for the Conservation of Antarctic Marine Living Resources (“CCAMLR”) has resulted in a serious depletion of the stocks of Patagonian toothfish and is a matter of international concern. It has invited the Tribunal to take into account “the serious problem of continuing illegal fishing in the Southern Ocean” and the dangers this poses to the conservation of fisheries resources and the maintenance of the ecological balance of the environment (Volga, par. 67).

Fica, assim, evidente que a Austrália solicitou ao Tribunal que, ao tomar sua decisão, tomasse em consideração os direitos de outros Estados pescarem em sua ZEE, ao mesmo tempo em que se reserva o direito de fiscalizá-la. É um impedimento a ações individualistas que visa, ao final, garantir o usufruto dos recursos vivos por todos os atores. Portanto, ao tratar do papel da distribuição de benefícios, entende-se que também se promove restrição à arbitrariedade ao assegurar as diversas capacidades de exploração e preservação entre os atores. Impede-se, assim, a preponderância de um ator sobre os outros. Trata-se de incentivo à noção de patrimônio comum da humanidade, tal como aborda Galindo (2006) em sua tese. Galindo abordou os fundos marinhos, mas percebe-se como o tema encontra semelhanças com a presente situação. Citando Charles Kiss, Galindo trata do tema como “a existência de uma tensão permanente entre a aspiração dos Estados a uma soberania mais extensa e a consciência ... de que estavam ... condenados a habitar em conjunto o planeta, de onde decorria uma obrigação de cooperarem mutuamente” (2006, p. 131). Qualquer reforço de rule of law, portanto, necessariamente perpassa a preservação do patrimônio comum da humanidade, pesando os direitos de exploração e preservação. Nenhum Estado, por

consequência, pode dirimir outros em benefício próprio – entendendo que o ato de dirimir, por diferentes que sejam as formas, constitui ação arbitrária.

As decisões do ITLOS relacionadas a violações pesqueiras são fundamentais para contenção da arbitrariedade nos julgamentos. Isso ocorre pelas determinações relativas ao direito de fiscalização e exigência das devidas autorizações por parte dos Estados costeiros (como no caso do M/V Virginia G), bem como do resguardo dos direitos das embarcações, empresas e Estados no devido processo legal. No caso do Juno Trader, por exemplo, o Tribunal decidiu pela soltura da embarcação e tripulação mediante postulação de uma fiança calculada pela própria corte. Esse mecanismo exemplifica uma contribuição à noção que o poder arbitrário deve ser restringido, uma vez que o Estado costeiro tinha o direito de fiscalizar e autorizar ações de pesca em sua zona econômica exclusiva mas, por outro lado, o Estado pavilhão e a embarcação também têm o direito à navegação, que se permite mediante uma compensação ao Estado costeiro (fiança). Ou seja, impede-se que cada parte vá além do direito concedido para tirar proveito próprio. Em todos os casos analisados pelo Tribunal com base no artigo 292 houve alteração do valor da fiança (sempre que esta foi considerada, uma vez que algumas demandas não foram apreciadas). Sendo assim, o Tribunal realizou seu papel de guardião, impedindo que Estados abusassem de seu direito de definir garantias ou fianças. Assim, é possível observar a diversidade de considerações que são feitas em prol da ponderação entre direitos de navegação, usufruto de recursos e a soberania dos Estados sobre aquilo pelo que lhes compete zelar na ZEE.

Como foi visto, o poder arbitrário é a antítese de rule of law. Assim, a priori, a resolução de disputas por meio de cortes internacionais é a melhor forma de garantir rule of law (CANÇADO TRINDADE, 2013), evitando a preponderância com base em critérios que não estejam vinculados à interpretação do direito – que, aqui, deve ser considerado de forma ampla.

Ainda sobre a arbitrariedade, uma circunstância do caso Arctic Sunrise merece ser discutida, principalmente pelos precedentes e forma como tem potencial de prejudicar esforços na direção de rule of law. Nesse caso, a Rússia se recusou a participar do procedimento judicial instaurado no Tribunal pelos Países Baixos. Somente dessa recusa, pode-se tirar algumas conclusões. Pela nota verbal da Rússia ao Tribunal,45 conclui-se que o país enxerga os diferentes procedimentos (internos, em âmbito penal e no ITLOS) como excludentes, mesmo quando a Convenção e o ITLOS, nos outros casos, tenham sido claros

que a incompatibilidade se dá somente no âmbito do artigo 292. A exclusão, também, se restringe à consideração do Tribunal sobre os procedimentos internos, não se aplicando à possibilidade de discutir outros elementos da legalidade de ações de um Estado. Por esse motivo, e corroborado pelo entendimento do Tribunal na decisão de novembro de 2013, a interpretação russa foi utilizada de forma a evitar sua participação no processo quando, de fato, esse direito não lhe é concedido pelas reservas que fizera à Convenção nem pelo teor da mesma ou jurisprudência internacional. A título de exemplo desse último, a decisão do tribunal cita diversas decisões da Corte Internacional de Justiça que se tomaram sem a participação de uma das partes.

A segunda conclusão se divide em duas partes. Na primeira, infere-se que a Rússia se considera acima de qualquer tribunal internacional, que demandas feitas por outros países não são de sua preocupação e não está disposta a cumprir com as decisões da instância. Tal inferência aproxima as atitudes da Rússia à arbitrariedade. A segunda se relaciona ao fato de que, anteriormente, no caso do Volga, Moscou já havia protagonizado uma ação no ITLOS – e que não lhe foi inteiramente satisfeita. A inferência, consequentemente, é que Estados, a exemplo da Rússia, recorram ou ignorem Tribunais internacionais de acordo com a conveniência. Essa segunda parte da conclusão, porém, é mais adequada para enquadrar as ações da Rússia pelo simples fato de que o país já havia, antes, recorrido ao ITLOS e também se defendido de demandas do Japão, sendo bem-sucedido nessas duas últimas (à exceção da questão do valor da fiança do Hoshinmaru). Mesmo assim, diante da situação em que uma das partes se tornou ausente, a ausência transmite uma imagem negativa, de que o poder judicial não está a seu alcance. A resposta do Tribunal, no julgamento, entretanto, foi muito adequada ao impedir a imposição de supremacia unilateral sobre os Países Baixos e da Rússia, mesmo que esta última estivesse ausente. A decisão (par. 53), por exemplo, reforça essa noção:

Considering that the prescription of provisional measures must also take into account the procedural rights of both parties and ensure full implementation of the principle of equality of the parties in a situation where the absence of a party may hinder the regular conduct of the proceedings and affect the good administration of justice.

Por mais que seja preocupante, de acordo com o afirmado nas seções anteriores, que o Tribunal, nesse caso específico, ignore parte das demandas dos Países Baixos, deve-se considerar um fator positivo que a corte baseie sua decisão geral na oportunidade, amplamente tida por ambas as partes, de defesa e do devido processo legal. Houve tentativa

de interferência por uma das partes, mas o Tribunal fez o que pôde para garantir o devido processo.

A leitura feita, portanto, dos julgamentos, permite afirmar que o Tribunal Internacional para o Direito do Mar representa uma importância instância para garantir ou fomentar rule of law nas relações internacionais no que diz respeito ao cerceamento do poder arbitrário. Isso envolve todas as acepções, incluindo a distribuição de benefícios e de recursos entre as partes (de forma equitativa), como é o objetivo da Convenção da ONU sobre o Direito do Mar. A fragmentação do direito internacional, entretanto, ainda pode representar um retrocesso, uma vez que afeta outra questão diretamente relacionada: isonomia dos atores nas relações internacionais. Esse é o tema a ser abordado na seção 4.3.3.