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PO LA I. DE TOMAS

A morte do pai provoca na criança conflitos intensos, entre os quais apare­ cem sentimentos de culpa, temor, dor e saudade. A análise demonstrou-nos que quanto menos idade tem a criança, mais grave e maiores consequências têm a perda. O equilíbrio mental prévio às circunstâncias da morte, a atitude dos familia­ res com relação ao fato e à forma como é comunicado são fatores que entorpece­ rão ou facilitarão a elaboração do luto, processo por si só difícil e doloroso de rea­ lizar.

Jorge foi trazido pela mãe à consulta seis meses depois da morte do pai. Era motivada por uma série de sintomas que desenvolveu pelo falecimento e que aumentavam com o passar do tempo.

Quando Jorge tinha três anos e três meses de idade, o pai sofreu um ataque cardíaco. Aquela manhã como fazia habitualmente, despediu-se do filho com um beijo. Esse foi o último contato com o pai. Horas mais tarde, quando telefonaram para dar a notícia da morte, Jorge estava em casa, mas a mãe pensou que ele não a tinha entendido. Imediatamente, e sem lhe dar explicações, foi levado à casa de tios, onde permaneceu até o final do enterro. Quando voltou, encontrou a mãe de luto, chorando. A mãe tentou justificar a ausência do pai, dizendo-lhe que havia viajado por longo tempo. No transcorrer dos dias, Jorge, não satisfeito com as explicações

* Parte do trabalho que, com o mesmo titulo, foi apresentado na Asociación Psicoanalítica Argentina no dia 14 de abril de 1956.

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recebidas, começou a perseguir a mãe com perguntas, recebendo toda classe de respostas, menos a verdadeira. A situação chegou a ser insustentável e então a mãe, embora não fosse religiosa, decidiu dizer-lhe que “ seu pai fora para o céu e não vol­ taria mais” . Jorge, longe de tranquilizar-se, deu mostras de uma angústia e confusão crescentes, que se manifestaram através de um interrogatório incessante, não só dirigido à mãe, mas a todos os familiares. - “ Que é o Céu?” - “ Onde fica o Céu?” - “ Que faz papai no Céu?” - “ No Céu se faz pipi e cocô?” - “ Comem?” - “ De avião se pode chegar ao Céu?” - “ Papai está sempre no Céu?” - “ Por que se podem ver os aviões no Céu e eu não posso ver o meu pai?” - “ Quando vai voltar o papai?”

Finalmente, a mãe considerou conveniente dizer-lhe que seu pai havia mor­ rido, pronunciando pela primeira vez esta palavra. - “ Que é morrer?” - pergunta Jorge. - “ Morrer é como dormir, mas sem acordar mais” - responde a mãe. A par­ tir desse momento, teve dificuldades para conciliar o sono, transtorno que foi pau­ latinamente aumentando e complicando-se. Apareceram temores noturnos e mui­ tas vezes acordava chorando. Um dia perguntou se “ a carne era de um animal morto” e a partir deste momento negou-se a comê-la. Pouco a pouco essa atitude de rechaço deslocou-se a outros alimentos, chegando a sofrer de grave anorexia.

A mãe acrescentou, é conveniente comentar, que Jorge nunca demonstrou ciúmes por seu único irmão, Carlos, nascido dois meses após a morte do pai. Além disso, nos últimos tempos, tinha perdido todo o interesse por seus brinquedos.

A relação com a mãe sofreu uma modificação depois da morte do pai. A prin­ cípio, assumiu uma atitude algo fria, para passar depois a “ agarrar-se na minha saia” , segundo suas próprias palavras, e a exercer constante controle sobre todos os atos dela.

Jorge foi uma criança aparentemente desejada pelos progenitores, que pare­ ciam haver tido uma vida matrimonial feliz. Segundo a mãe, a gravidez transcorreu sem transtornos e o parto realizou-se com anestesia. Foi criado pela mãe até um mês. Desde o começo teve dificuldade em prender-se ao seio. Tinha tendência a dormir enquanto mamava, fato que a mãe atribuía ao cansaço que lhe produzia suc- cionar e obter pouco leite. Aceitou bem a alimentação mista e o desmame, realiza­ do aos três meses. Mas o fato de que a partir da idade de um ano fosse alérgico a todos os produtos lácteos, mostra que elaborou só aparentemente bem a perda do seio.

Aos quinze dias foi circuncisado. Relata a mãe que, embora Jorge conheces­ se crianças não circuncisadas, nunca fez perguntas sobre a diferença de seu pênis com o dos outros, mas quando da circuncisão do irmão, perguntou “ por que tinha o pipi tão vermelho?” A mãe respondeu que se devia ao fato de Carlos urinar-se e que isso lhe produzia irritação. Da origem das crianças, por outro lado, a mãe rela­ ta haver dito a verdade. A relação do menino com os pais parecia ter sido boa e a partir da gravidez da mãe tlnha-se aproximado mais do pai.

Desde o início da entrevista com a mãe, era evidente a gravidade dos confli­ tos do menino e o fracasso na elaboração normal do luto, pelo qual se aconselhou, sem perda de tempo, um tratamanto psicanalítico. Jorge anallsou-se durante um ano

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e meio, com quatro sessões por semana. Seu tratamento foi interrompido, então, por motivos econômicos. Nessa ocasião, esclareceu-se à mãe, embora a maior parte dos sintomas tivesse desaparecido, ainda não se podia considerar terminada a análise.

Naquela época, Jorge tinha voltado a ser um menino alegre, interessado nos seus jogos e tinha conseguido substituir a figura do pai pela de um tio político, muito carinhoso, em quem podia apoiar-se.

Neste fragmento de seu caso, exporei e analisarei somente uma parte do material relacionado com a morte do pai, sublinhando os fatores internos e exter­ nos que dificultaram a elaboração normal do luto.

Na primeira hora de jogo - a primeira de seu tratamento - o menino simbo­ lizou, através da atividade lúdica, seu conflito com a morte do pai.' Como é habitual nesses casos, Jorge foi informado do motivo pelo qual se submetia ao tratamento.2 Sua mãe explicou-lhe que eu “ era uma pessoa muito boa que o ajudaria a resolver suas complicações” .

Chegou acompanhado pela mãe e insistia que esta entrasse no consultório. Uma vez dentro, a mãe sentou-se ao lado, dedicando-se a 1er, e o menino pareceu desinteressar-se dela. Observou atentamente a sala e os brinquedos, dando a impressão de grande desconfiança. Sentou-se perto dos brinquedos, mas sem tocá- los, permanecendo em silêncio por um longo tempo e olhando-me sempre. Então lhe interpretei: “ Queres conhecer os brinquedos que eu te dou, para saber se são bons ou maus, se sou boa ou má. Tens medo que sejamos maus; por isso não te ani­ mas a brincar comigo” .

A esta altura da sessão, ainda era impossível saber as causas internas que determinavam a atitude desconfiada de Jorge, mas era lógico supor que colocaria em dúvida minha “ bondade” , como me definiu a mãe, já que ela, como vimos, men­ tiu-lhe em outras oportunidades. Por outro lado, sua atitude também estava deter­ minada pelo temor de que eu repetisse as más condutas de seus pais.3

Depois da interpretação, animou-se a revisar os brinquedos, escolhendo em primeiro lugar o avião. Deixou-o de lado, para agarrar dois barquinhos de diferen­ tes tamanhos. Colocou-os a flutuar na água, brincando em silêncio de navegar. A mãe, ao vê-lo absorvido pelo brinquedo, disse-lhe que sairia para esperá-lo lá fora, o que despertou em Jorge uma grande angústia. Começou a chorar, pedindo que não fosse embora. Somente quando teve certeza de que não sairia retornou ao jogo.

“ Tens medo - disse-lhe eu - que a tua mamãe te deixe sozinho, que vá embora e não volte mais, como aconteceu com o teu papai; por isso te assustas tanto e choras.” Essa interpretação atuou, diminuindo seus temores, como pude comprovar quando Jorge, depois de um tempo, permitiu espontaneamente que a

1 Cf. capítulo 7. 2 Cf. capítulo 5. 3 Cf. capítulo 7.

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mãe abandonasse o consultório. Apesar disso, a necessidade de reasseguramento sobre o destino da mãe e seu retorno manifestou-se por uma série de perguntas que lhe formulou: “ onde o esperaria?” , “ que faria enquanto isso?” , “ quanto tempo ficaria na sala de espera?” , “voltaria quando ele chamasse?” .

Evidentemente, o abandono imprevisto e a insegurança sobre o que pudes­ se acontecer à mãe, não estando ele presente, o angustiavam, temeroso da repeti­ ção do trauma original.'1 Jorge continuou seu jogo, contando-me que em sua casa não tinha barcos, mas sim dois cisnes de plástico que flutuavam na água. Os barcos e os cisnes tinham como elemento comum o flutuar - poder navegar era o que Jorge esperava de sua análise.

Disse ele: “ O cisne maior quebrou a cabeça, mas eu não tenho culpa; a culpa é de Oscar. Não, também não; quem tem culpa são as paredes” . Interpretei consi­ derando este como o momento de máxima urgência dentro da sessão: “As vezes quiseste quebrar a cabeça-pipi do cisne-papai e agora que o teu papai está morto, te sentes muito mal, pensas que a tua raiva o matou e tens medo de que tua mamãe e eu fiquemos brabas contigo e não te queiramos mais” .

Com esta interpretação expressei tanto o medo a perder o carinho da mãe como também o meu, pois Jorge, ao falar dos dois cisnes e dos dois barcos - a casa e o consultório, a mãe e o analista - induziu-me a fazê-lo. A culpa expressa neste jogo provocou no mínimo fortes ansiedades persecutórias, levando-o a projetá-las em Oscar e nas paredes, negando-a assim frente a mim por temor, pois na minha pessoa tinha projetado certos aspectos de seu superego. Eu representava principal­ mente o pai destruído - cisne com a cabeça quebrada -, convertido na presente situação em seu principal perseguidor, por ter sido objeto da agressão do mesmo. Também representava sua “ mãe furiosa” pela perda do pai e, parcialmente, enten­ deu a intenção dela de sair do consultório - abandonando-o - como vingança. Em última instância, o que tentou projetar sobre Oscar e sobre as paredes foram seus impulsos destrutivos dirigidos ao pai - cisne com a cabeça quebrada -, numa tenta­ tiva a mais de negar a morte deste e a culpa que o fato lhe produzia enquanto sen­ tia que ele a havia determinado. No decorrer da análise, pude compreender total­ mente a fantasia dos cisnes quando estabeleci a identidade de Oscar, que terminou por ser um primo de Jorge extremamente brigão e agressivo, a quem Jorge imitava. Essas características fizeram de Oscar a figura ideal para serem projetados os impul­ sos destrutivos. Mas na medida em que Jorge também se identificava introjetiva- mente com ele, a defesa fracassava, sendo necessário buscar um segundo elemento para projetar, muito mais afastado de si mesmo: as paredes.

A interpretação referente aos seus desejos de morte do pai e a consequen­ te culpa determinou uma modificação no jogo. Jorge agarrou um pedaço de massa de modelar e, tentando amolecê-la, solicitou minha ajuda. Trabalhava calado, amas­ sando o material de forma torpe. Com grande dificuldade, fez três cobrinhas de dife­ rentes tamanhos e as colocou sobre a mesa, uma ao lado da outra, na seguinte

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ordem: a melhor e a média nas extremidades e a maior no meio. Finalmente, esti­ cou a menor até convertê-la na mais comprida.

“ Sentias” - interpretei-lhe - “ que a cobrinha-papai te separava da cobrinha- mamãe e por isso às vezes desejaste que teu papai morresse. Querias ser como teu papai e ter um pipi ainda maior que o dele (cobrinha pequena que passa a ser a maior), mas como isso não acontecia, ficaste muito brabo e quiseste que o pipi do teu papai se quebrasse (cisne com a cabeça quebrada).”

Através desse jogo Jorge expressou a situação triangular e o conflito edípico que tentou solucionar desejando a morte do pai, fantasia que, neste caso, coincidiu com a realidade. Simbolizou, além disso, a ereção do seu pênis com a cena primá­ ria (cobrinha que se alonga) e os desejos de voltar a dar vida ao pai destruído, moti­ vo pelo qual escolheu o jogo no qual tinha que contruir (fazer cobras) como antíte­ se do destruir. Mas a torpeza e a dificuldade com que trabalhava evidenciavam o intenso conflito entre seu amor e seu ódio.

Mencionar abertamente em minhas interpretações a morte do pai, não repe­ tindo a atitude da mãe e dos familiares, permitiu a Jorge ter a primeira vivência de retificação do fato, interna e externamente, através da análise. Quando anunciei o fim da hora, manifestou desejos de voltar novamente.

Essa primeira sessão foi seguida por um período em que Jorge realizou, com pequenas variações, um mesmo jogo denominado por ele “ fazer provas difíceis” . Colocava os móveis do consultório um em cima do outro, subia neles, fazendo toda sorte de piruetas, expondo-se continuamente a uma queda. Eu devia contemplá-lo entusiasmada e aplaudir cada vez que concluía uma prova com êxito.

Além de interpretar a conduta masoquista de Jorge, tomei sempre as medi­ das necessárias para evitar que não se machucasse seriamente.5 Apesar disso e das interpretações, fazia coisas tão arriscadas que chegava a cair. Dizia então, contendo as lágrimas: “ Não dói nada” - ou - “ Não me dói, porque sou muito forte” - ou - "Homem não chora” .

Falava frequentemente em ser “grande e forte” (o pai), ao mesmo tempo que me tratava como se eu fosse “ pequeninho” (ele mesmo ou o irmão, dependen­ do das circunstâncias e do papel em que ele me colocava), assumindo uma atitude verdadeiramente paternal para comigo. Coincidiu esta conduta evidenciada durante a análise com uma de sua casa, quando seu brinquedo preferido era calçar os sapa­ tos do pai, dizendo ser ele.

Outras vezes não se limitava a realizar as provas, mas subia até o mais alto dos móveis, tentando tocar no teto com a mão (alcançar o pai no céu). O pai tinha sido um homem forte e amante dos esportes. Aos domingos, costumava ir com Jorge a um clube, onde praticava uma série de esportes (provas) que despertavam a admiração do menino. Através desses jogos, Jorge expressava sua necessidade de identificar-se introjetivamente com o pai esportista, sinônimo de pai vivo e forte, para negar tanto a perda do objeto amado como seu próprio temor à morte. Ao

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mesmo tempo, sua culpa o levava a seguir o destino do pai, expondo-se, ele mesmo, à morte mediante as quedas (pequenos suicídios).6

Não chorava para poder ser como o pai (homem não chora) e também por­ que chorar por ele supunha aceitar sua morte. Quando na realização das provas necessitava de minha ajuda para levantar ou arrastar algum móvel mais pesado, fica­ va furioso. O fracasso da defesa maníaca imposta pelo juízo de realidade (não tinha a força do pai) enfrentava-o uma vez mais com sua culpa, do que agora se defendia transformando-a em agressão (fúria).

Ter que ocupar o lugar do pai, o que aparentemente o agradava na suposição de realizar seus desejos edípicos, produzia-lhe no fundo uma grande angústia, enquanto era uma imposição de seu superego, pois, considerando sua idade e situa­ ção real, não se encontrava em condições de realizá-lo.7 Esse jogo, considerando o contexto da sessão em que aparecia, foi utilizado por Jorge para simbolizar, além dos aspectos interpretados, seu desejo de conquistar-me através do êxito de suas provas difíceis (potência). Usava este mesmo jogo tanto para expressar fantasias edípicas como para mostrar sua necessidade masoquista de destruir-se. Não era estranho que assim acontecesse, pois, como se demonstrou no transcurso da análise, para Jorge as relações sexuais eram frequentemente ligadas com a morte do homem.

O traumático que foi para Jorge o caráter repentino da morte de seu pai, além do fato em si, foi simbolizado por ele durante várias sessões através de um jogo rea­ lizado com a persiana do consultório. Consistia em baixá-la lentamente, enquanto dizia: “ Vejo-te pouco, agora te vejo menos, agora já não te vejo” ; às vezes agregava: “Onde estás?” . Depois de conseguir obscuridade completa, abria-a outra vez.

O núcleo central deste jogo, que demonstrou ser análogo ao do carretel des­ crito por Freud,8 era fazer desaparecer e reaparecer ativamente o objeto, o que para o inconsciente do menino representava perdê-lo e recuperá-lo. Mas nesse jogo, ao lado da necessidade de seguir negando a morte através do sentir em si mesmo a capacidade de ressuscitar o objeto (fazer a luz), aparecia o primeiro indí­ cio de aceitação da morte (obscuridade). Jorge começava a elaborar mais normal­ mente a morte ao aceitar a perda, apoiando-se na situação transferencial analista-

6 “ ...A tendência das crianças a queixar-se e o hábito de cair e machucar-se devem ser considerados como a expressão de diversos medos e sentimento de culpa. A análise de crianças nos convenceu de que estes repetidos acidentes - e às vezes outros mais sérios - são substituições de autodestrui­ ções mais graves e podem simbolizar tentativas de suicídio com meios insuficientes. Em multas crianças, especialmente meninos, uma extrema sensibilidade à dor é substituída muito cedo por uma exagerada indiferença, que, segundo considero, não passa de uma defesa elaborada contra a ansie­ dade e uma modificação da mesma". Melanie Klein: El pslcoanálisis de ninos, parte I, cap. VI, “ Neurosis en los ninos", p. I 14. Ed. Asociación Psicoanalítica Argentina, Buenos Aires, 1948, tradu­ zido por Arminda Aberastury de Plchon Rivière.

7 Quando morreu seu marido, a mãe levou Jorge, que até então dormia em quarto separado, a com­ partir com ela a cama matrimonial. Este fato, além de sobre-estimular o menino, reforçou seu man­ dato Imposto pelo superego: ocupar o lugar do pnl.

8 FREUD, Sigmund: "Más allá dei principio dei pincer", tomo II, Una teoria sexual y otros ensayos, p. 285.

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pai, que desaparecia na obscuridade. Tudo tinha que ser feito pouco a pouco e não rapidamente, como ocorreu na realidade.

Frequentemente aparecia no material de Jorge a vivência de que seus impul­ sos destrutivos, nascidos da situação edípica, tinham destruído o pai, o que deter­ minou a necessidade de reprimi-los, que pôde ser interpretada quando foi revivida na situação transferencial.

Costumávamos brincar de corrida com carrinhos ou aviões. Entre seus brin­ quedos tinha um carrinho amarelo, que o representava e que sempre ganhava, mesmo chegando em segundo lugar, e outro, prateado, que me representava. Em nosso jogo, usávamos como pista o divã, relacionado com a cama de seus pais e com a cena primária. Jorge se colocava na cabeceira (largada) e eu devia ficar nos pés do divã (chegada), para evitar que os carros caíssem. Devíamos limitar a pista e os car­ ros da mesma forma como ele tentava limitar certos impulsos seus por temor a per­ der o controle.

Durante uma das corridas impulsionou com grande violência meu carrinho, que geralmente era o vencedor, fazendo com que se desviasse da rota e caísse ao chão. “ Que desastre” - exclamou -, e a partir desse momento só demonstrava entusiasmo se o seu carro e o meu chegassem empatados. Interpretei então: “ O carrinho amarelo (Jorge) queria ganhar do carrinho prateado (analista-papai) e como não pôde, quis que o carrinho-papai tivesse um desastre. Quando o teu papai mor­ reu de verdade, te assustaste muito do desastre. Não gostarias que isso aconteces­ se também comigo; por isso queres que nossos carrinhos empatem; assim não acon­ tece nada” .

As vezes, quando não conseguia empatar os carros, obrigava-me a determi­ nar o ganhador. Deste modo, ao não nomear ele o vencedor, evitava magicamente o desastre (morte do pai rival), ao mesmo tempo que descarregava a responsabili­ dade dos seus atos sobre mim.

Neste caso, o tratamento será seguido por uma segunda análise de Jorge, que foi determinada pelos seguintes motivos: com o tempo, a mãe, que casou de novo, engravidou pela terceira vez. Quando chegou ao sexto mês, época da morte do pai de Jorge na gravidez anterior, apareceram novamente uma série de sintomas.9 No material que segue veremos como o menino, durante a primeira análise, asso­ ciava a morte do pai à cena primária e a suas consequências, a gravidez.

Toda a primeira época do tratamento caracterizou-se pelo aparecimento, através de diferentes jogos, do sentimento de culpa pela morte do pai. A interpre­ tação reiterada da mesma trouxe, além de sua diminuição e alívio da culpa, o apa­ recimento de uma fantasia angustiante para o menino. Esta tinha permanecido

9 Neste momento tão traumático, a mãe recorreu a Arminda Aberastury, a mesma analista que fez a orientação de tratamento para seu filho quando da primeira vez. Esta lhe disse que, ao estar no mesmo mês da gravidez em que se encontrava quando morreu seu primeiro marido, temia que ao segundo pudesse acontecer o mesmo e que este mesmo medo era o que na criança provocava o