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“— É o que dá quando se vai atrás das tetas duma árvore.

Mamasse nas vacas e não nas seringueira. Pensava que a borracha esticava sem rebentar um dia?”

(BGP, 2004, p.99). Conforme já mencionamos, Belém do Grão-Pará é o quarto livro do ciclo romanesco de Dalcídio Jurandir e o primeiro dos seis que se passam em Belém. Concentra-se principalmente no centro mais antigo da cidade, mas sem perder de vista as suas periferias mais antigas, como o Guamá e os Covões - e a relação destas com outras regiões do estado, especialmente as ilhas do entorno da cidade, o arquipélago do Marajó e os municípios fundados no curso da estrada de ferro Belém-Bragança.

Nas palavras de Benedito Nunes (2004), a apresentação da obra:

Quem lê Belém do Grão Pará, como o romance dos Alcântara (o casal seu Virgílio / D. Inácia e a filha Emilinha), lê a inteira cidade dos anos vinte, tal como a tinha deixado, após o início da decadência econômica conseqüente à crise da borracha, que culminara em 1912, as reformas do Intendente (prefeito) Antônio Lemos. O

drama daquela família, com a qual Alfredo vai viver, drama todo exterior, de perda de status, levando-a, após o lemismo, a uma mudança de casa e de rua, está relacionado com aquela decadência. Sob a inspiração da gorda filha do casal, os Alcântara, para tentar recuperar o status perdido, transferem-se para a rua dos ricaços, dos fazendeiros, a Av. Nazaré, mas vão habitar uma casa arruinada pelo abandono e pelos cupins, enquanto seu Virgílio se deixa subornar pelos contrabandistas perdendo o emprego público. É o momento em que a casa, que cheirava a cupim e a mofo, ameaça desabar. A família, com a participação dos empregados e de Alfredo, carrega, de madrugada, os poucos móveis que lhe restam, incluindo um piano, símbolo da perdida distinção social, que a adiposa Emilinha mal podia dedilhar, para a acolhedora sombra das mangueiras à beira da calçada. Só o curioso Alfredo, dono de mágico carocinho, vê a cidade com olhos preparados para descobri-la (NUNES, 2004, p. 17).

O período vigente na narrativa é o começo da década de 1920, sendo que a sua redação se deu na década de 1950.

O tempo relativamente breve a que o excerto no início desta seção se refere é um tempo que, de tanto esticar, rebentou, junto com as ilusões de riqueza associadas à economia da borracha, deixando como principal herança, conforme apontado por Castro, uma espécie de devaneio sobre uma era passada mas, ao mesmo tempo, em suspensão, porque continuamente reeditada desde aquele período no imaginário social sob a forma de um constante sentimento de saudades “do que poderia ter sido mesmo sem ter acontecido” (CASTRO, 2010, p. 29):

A “Era da Borracha”, sempre é bom lembrar, não existia em seu período histórico. Havia, sim, a certeza da economia próspera e a produção sígnica-discursiva de então. Essa é a primeira evidência da ilusão discursiva que permeia o termo “Era da Borracha”. Aquele tempo somente se torna “Era da Borracha” quando precisamos, em nossos tempos de sujeitos sucessivos, definir e proteger nossos sonhos e nossas melancolias de fausto, apogeu e queda. Nesse sentido, creio, posso dizer que “Era da Borracha” é um lugar de produções sígnicas, que incorpora o passado de uma forma imaginativa (CASTRO, 2010, p. 28).

Sobre os elementos que até hoje remanescem nos discursos e no imaginário social, forjados sob signos nostálgicos e fantasmagóricos sobre a economia do látex, o autor aponta:

O elementos discursivos atuais, digamos dos anos [19]40 a este fim de século em que estamos, sobre a “Era da Borracha” baseiam-se nos seguintes signos, ou melhor, códigos de afluição de signos: - Ideia de um passado de fausto, - Ideia de um passado “modernamente” civilizado; - Ideia de uma urbanidade delirante e cosmopolita; - Ideia de destruição ágil e impiedosa dos signos anteriores. Essas ideias reproduzem o devaneio sobre o ciclo, saudades do que poderia ter sido sem ter acontecido (CASTRO, 2010, p. 28-29).

Pois é a partir dessa saudade vaga e inexata que permeia o lugar de fala da “Era da Borracha” que o autor irá propor também a noção de semiotical blues, como forma de definir mas também de ironizar “a sensação alegórica de sentir a modernidade, própria às periferias do capitalismo no final do século XIX”, como promessa de um projeto de civilização incompleto e corrompido pela tragédia da ruína (CASTRO, 2010, p.30-31).

Frisamos os aspectos nostálgicos que envolvem o trato comum a respeito do período vigente na narrativa para demarcar, principalmente, o que o seu conjunto não expressa. Em Belém do Grão-Pará, essas impressões, pesarosas por essa espécie de promessa não-realizada e presentes nas falas/pensamentos de certos personagens ou nas impressões momentâneas de Alfredo em torno de uma Belém onírica, são frequente e quase imediatamente confrontadas por outra cidade, percebida e narrada por Alfredo a partir das interações com os diferentes espaços e personagens/coletivos, e suas tensões, solidariedades, desigualdades e violências. Mais à frente, no capítulo 4, buscaremos interpretar esse movimento de “despertar”, a partir da noção benjaminiana de “imagens dialéticas”, com base em Bolle (1994).

O pesar em relação ao declínio da economia do caucho não é compartilhado por Alfredo, alter ego de Jurandir, mas se encontra fortemente presente no sentimento melancólico que envolve a casa em que vive Barbosa, o ex-aviador do Baixo Amazonas e de Cachoeira que, num passado recente, em suas andanças a passeio pelo Lago do Arari, conhece o Major Alberto e é convidado a batizar o menino, nutrindo nele e em sua mãe a esperança, posteriormente frustrada, de um dia estudar na capital sob a bênção protetora do padrinho.

Expressão cotidiana do aviamento [sobre o qual tratamos no capítulo 2, com ênfase na seção 2.4], o compadrio aparece como elo entre os grupos dominantes e as classes subalternas, como promessa não-cumprida de acesso a direitos [no caso, o de estudar e à mobilidade social por meio da escolarização], portanto de ingresso do filho de uma negra e de um funcionário público de condição “branca” a um universo de cidadania plena.

Ao avistar as palmeiras do largo da Trindade, teve a emoção de que ia encontrar a mesma menina, o mesmo tapete no corredor. E ali estava a casa de esquina, fechada a porta da Frente, as quatro janelas, como também as numerosas sobre a travessa onde o capinzal servia de coradouro para a estância vizinha. Baixa, envelhecida, como se fosse aos poucos se afundando, a casa parecia consciente da ruína de seu dono. Talvez por ser pegada naquele palacete. Do Governador, informou d. Amélia. Com efeito a velha casa do padrinho sentia o poder e mocidade da outra e rastejava cada vez mais as suas janelas no calçamento (BGP, 2004, p. 99).

A lembrança vívida de Alcinda, filha do padrinho com quem Alfredo, entre maravilhado com aquele universo de objetos luxuosos e inflado pelas expectativas da mãe de acessá-lo,

brincara um dia, defrontava-se agora com a sua aparência murcha, como quem perdera os dons que faziam valer as conversas e corridas no tapete. O ganso brigão envelhecera e a mudez agora dominava o gramofone, cujo som, nos tempos de prosperidade do Comércio situado na 15 de novembro, deixava a escutar na calçada, debaixo da janela, o vizinho, Augusto Montenegro, então governador do estado.

Para Alfredo, a casa [e a nostalgia do período de pujança econômica decorrente da exportação da borracha] parecia definhar tal qual o dono, agora silencioso e fisicamente vulnerável, fazendo com que o afilhado, longe de partilhar daquele sentimento melancólico, saísse dali aliviado, despedindo-se rapidamente das antigas recordações em companhia da mãe.

Como veremos de forma mais detalhada no próximo capítulo, outros acontecimentos no curso da narrativa demonstram como o autor tensiona, por meio de uma perspectiva crítica, essa interpretação de cidade onírica e o sentimento de saudade inexata, desde o momento em que Alfredo chega a Belém em companhia da mãe, para cursar o terceiro ano elementar no Grupo Barão do Rio Branco.

Dessa forma, diante dessas situações, a perspectiva de Alfredo aparecerá quase sempre ou impregnada por uma percepção crítica ou contrastando ora com os costumes praticados em seu lugar de origem ora pelos grupos com os quais já tenha interagido ou venha a se relacionar no curso dos romances. Nesse movimento de estranhar, identificar e reconhecer, ele também tece interpretações a respeito das formas de trabalho e tratos com a natureza, que interessam a essa pesquisa, e de aspectos diversos como luta política, paixões, vida e morte, entre outras questões.

De acordo com o que já foi mencionado anteriormente, ainda que o sentimento melancólico, presente no imaginário da região e identificado por Castro como semiotical blues seja parte constitutiva da criação de alguns dos personagens e dos contextos que os envolvem, notamos que, como recurso narrativo e talvez por influência das próprias orientações políticas do autor, ele é quase sempre contraposto a situações que evidenciam as contradições dos projetos de modernidade implementados historicamente na região - de modo geral, etnocêntricos, desiguais e excludentes..

Não à toa o destino dos Alcântara, família de uma classe média empobrecida que deseja ascender ao patamar dos grupos idealizadores desses projetos é o da ruína, tal qual a referência ao casarão para o qual a família se muda, como símbolo de um momento tratado pelas narrativas “tradicionais” como apogeu da história amazônica, a “Era da Borracha”, que cede à ameaça de desabamento no final do romance.

Conforme a interpretação de Bolle, a concepção da história de Belém do Grão Pará, a se considerar pelo próprio título, ultrapassa os seus contextos narrativo e de produção, estendendo-se a um tempo de longa duração:

São esses fenômenos – a permanência de estruturas colonialistas e escravocratas, o extrativismo desenfreado e a impiedosa exploração da mão-de-obra – que mostram que a crise se localiza num nível muito mais profundo. O tempo da decadência e da crise não existe isoladamente, isto é: não se limita aos fenômenos aparentes dos anos 1920 a 1950. Ele é permanente e estrutural: iniciou-se na época em que foram fundados o Estado do Grão-Pará e seu baluarte de defesa, a cidade de Belém, e se estende até o ano da publicação do romance de Dalcídio Jurandir e, possivelmente, até o tempo atual (BOLLE, 2008, p. 112).

De acordo com o que também seguiremos discutindo, ao dispor de tais recursos narrativos, o autor expressa uma concepção de mundo atrelada à reflexão sobre justiça social, que inclui a interpretação da história a partir de suas violências contra populações indígenas e negras, o reconhecimento das diferentes realidades em que seus descendentes se inseriram no cotidiano da vida e do trabalho das periferias de Belém e da região como um todo, as possibilidades de luta política a partir das inteligências associadas a essas experiências e a emancipação social dos mesmos por meio de um projeto de educação condizente com a diversidade de culturas e formas sociais descritas em seus romances.

Mais à frente, também demonstraremos que a composição dos personagens permite a interpretação acerca das forças de renovação política, que passam por onde e por quem os produtores de institucionalidades formais não costumam ver - ou se recusam a reconhecer.

Antes de seguirmos com outras questões presentes no livro, cabe ressaltar que o excerto acerca da economia da borracha, que inicia essa seção, também nos remete ao que já foi tratado nas primeiras partes deste trabalho, que corresponde a uma visão partilhada até hoje no imaginário social da região a respeito do extrativismo florestal não-madeireiro como atividade economicamente ineficiente, frágil e insustentável, em detrimento da pecuária enquanto atividade eficiente, rentável e capitalizadora.

Por um lado, com base em Costa (2012b), conforme já tratamos em outros momentos, esse ideário de negação do extrativismo florestal fundamenta-se no que talvez seja um prenconceito fundante da nossa história econômica: a rejeição decorrente da sua relação com os conhecimentos e as formas civilizatórias de populações pré-colombianas, que associavam a floresta, as suas formas de vida e ritos, seus tempos biológico e cultural às ideias de pecado, de incontrolável, de coisa a ser disciplinarmente domada, controlada e ordenada por um ideário agrícola civilizatório, cristão e eurocêntrico.

Por outro, tais preconceitos vigorariam no curso dos séculos na medida em que o modo de produção capitalista reedita essa hierarquização do agrícola em detrimento do extrativista (associado às práticas florestais não-madeireiras) por ter na homogeneização e na padronização fundamentos essenciais da sua forma de produzir.

Cabe ressaltar, mais uma vez, que entendemos essa hierarquização como parte de um processo que, historicamente, diferencia [por mecanismos de racialização, mas não apenas] e subalterniza populações e seus modos de vida, que eventualmente se adapta e apropria-se dessas formas de produção mas apenas numa tentativa de subordiná-las aos interesses de acumulação que regem os poderes locais desde os primeiros tempos de colonização.