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1.2 Síntese sobre trajetórias tecnológicas

1.2.2 T2, a trajetória agroflorestal de ribeirinhos e caboclos

Quando consideramos a obra de Costa como um percurso, percebemos, entre outros aspectos, um plano argumentativo constituído para ressaltar tanto a diversidade de paradigmas, que podem ser entendidos como matrizes de produção com distintas capacidades técnicas, tecnológicas, estéticas e mesmo éticas no trato de questões como trabalho e natureza, quanto, a partir de tal diferenciação, o reforço à existência de um campesinato agroextrativista na Amazônia, cujas lógicas de produção e reprodução fogem ao repertório explicativo ajustado estritamente ao sistema de produção capitalista.

Formado historicamente a partir de diferentes processos, mas com o início marcado na segunda metade do século XVIII [mais especificamente no período de 1756 a 1777], como

veremos na próxima seção deste trabalho, esse campesinato, ao qual se juntam novos integrantes tanto orientados pelo extrativismo quanto pela agricultura no decorrer dos séculos seguintes, a partir da formação dos seringais no período de proeminência econômica da borracha, ou durante a abertura de ferrovias e de rodovias no decorrer do século XX, entre outros marcos históricos, também explica a dificuldade de formação de um mercado de trabalho com as dimensões exigidas por grandes projetos capitalistas intensivos em mão-de-obra, como o empreendimento instalado pela Ford na região na segunda metade da década de 1920.

A depreciação da natureza por técnicas homogeneizadoras de ambientes e de processos produtivos, adotada por empreendimentos agropecuários, tende a exigir, de forma crescente, a contratação de mão-de-obra para o aumento de escala que garanta taxa de lucro suficiente para justificar a produção, recaindo no mesmo problema, o da ausência de um mercado de trabalho nas proporções necessárias a tais empreendimentos (COSTA, 2000).

Na medida em que os camponeses dispõem dos meios de produção necessários à sua existência e atuam por uma lógica própria de eficiência reprodutiva, eles tenderiam a resistir, renunciar ou mesmo recusar a adesão ao trabalho assalariado, organizado a partir de critérios capitalistas de produção.

A permanência desse campesinato, cuja base produtiva de extração de produtos florestais não-madeireiros pressupõe a manutenção e o uso de áreas de floresta, conformará a estruturação de uma trajetória específica, mais à frente apresentada como T2, ligada tanto ao paradigma extrativista quanto ao agroflorestal, o que implica na combinação das práticas extrativistas com atividades agrícolas diversas e pressupõe em alguma medida a preservação da natureza originária.

Sob formas contemporâneas, Costa identifica a sua presença nas mesorregiões Norte, Sul e Sudoeste Amazonense, assim como no Médio Amazonas, na região Tocantina do Nordeste Paraense e na Região das Ilhas do Pará, lugares em que a intensa vida colonial culminou, conforme antes mencionado, na geração de um campesinato “caboclo” especializado no extrativismo de coleta.

Logo após a primeira década do século XX, quando a crise nos preços internacionais por conta da concorrência asiática altera os volumes de exportação da borracha amazônica, parte do corpo de migrantes nordestinos arregimentado para as atividades de extração, sob o arranjo de grandes seringais, também se dispersa entre famílias camponesas extrativas da própria borracha ou de novos produtos, como a castanha-do-pará, em áreas como o Vale do Acre e o Sudeste Paraense.

Sudeste e Sudoeste Paraense também foram destinos de grupos ligados a essa trajetória a partir de frentes mais recentes, como as orientadas pela expansão das fronteiras na Amazônia com a imposição de projetos de infraestrutura, desenvolvimento e colonização nas décadas de 1960 e 1970 pelo governo federal, e, nos períodos mais recentes, por práticas que estimularam a regeneração de áreas agrícolas degradadas (COSTA, 2012c, p. 160).

Por meio de modelagens e análises que combinam aspectos como a relevância social e privada da produção, a influência dos grupos de produtos nos investimentos por fontes endógenas e exógenas, a qualificação dos grupos de produtos e a interação entre eles [a diversidade de formas com que esses produtos são combinados], seguida da forma como a atuação institucional se dá e influencia a combinação de grupos de produtos, assim como a maneira com que sua produção física evolui no decorrer do período analisado (1995-20048),

seis trajetórias tecnológicas foram inicialmente identificadas como predominantes na configuração do agrário na Região Norte – sendo 03 de base camponesa e outras 03 patronais, apresentadas no quadro 1.

Posteriormente, ao comparar o período de 1995 a 2006, o autor verificou que a T4, trajetória patronal especializada em pecuária de corte, seguiu por uma tendência inesperada de aumento contínuo do grau da diversidade, redistribuindo parte do valor bruto da produção para as culturas temporárias, tendo a importância das últimas superado a atividade principal em alguns casos, o que indicaria o surgimento de uma nova trajetória, a T7, compatível com o crescimento da produção de grãos, em especial a soja, assim como o milho, em diferentes áreas da Região Norte (COSTA, 2012a, p.162). A formação de uma nova trajetória demonstra, conforme discutimos anteriormente, como esse é um processo dinâmico, o qual, ao invés de determinar e fixar condições para a sua compreensão e análise, ajuda a detectar mudanças e a capacidade de adaptação dos grupos em resposta a diferentes contextos e disposições.

Em resumo e apenas para dar uma ideia geral de suas conformações no período analisado (1995-2004) em 2012a, as trajetórias dividem-se entre:

Quadro 1 - Trajetórias tecnológicas

Paradigma agropecuário Trajetória (característica)

Patronal T4: “conduzida por agentes patronais, marcada por uso extensivo de solo, homogeneização da

paisagem (alto impacto na biodiversidade) e formação intensa de dejetos: na forma de emissões poluentes (pela queima da floresta na formação de plantações e pastagens) e na forma de áreas degradadas”.

Atividades principais: pecuária de corte por fazendas (distintas da pecuária de várzea e da praticada no

Marajó)

8 Dados estatísticos, obtidos pelo Censo Agropecuário de 1995-96 e por levantamentos anuais da produção

Paradigma agropecuário (cont.) Trajetória (característica)

Patronal T6: “conduzida por agentes patronais, marcada pelo uso extensivo do solo, com homogeneização da

paisagem (alto impacto na biodiversidade) e baixa formação de dejetos/impacto poluidor”.

Atividades principais: reflorestamento/ silvicultura

Patronal T5: “conduzida por agentes patronais marcada por uso intensivo do solo, com homogeneização da

paisagem (impacto na biodiversidade e baixa formação de dejetos/impacto poluidor.

Atividades principais: plantation empresarial

Camponesa T3: “conduzida por agentes camponeses, marcada por uso extensivo do solo, homogeneização da

paisagem (alto impacto na biodiversidade) e formação intensa de dejetos: na forma de emissões poluentes (pela queima da floresta na formação de plantações e pastagens) e na forma de áreas degradadas”.

Atividades: criação de gado (várzea e terra firme) para corte

Camponesa T1: “conduzida por agentes camponeses, marcada por uso intensivo do solo, com sistemas

diversificados (baixo impacto na biodiversidade) e baixa formação de dejetos/impacto poluidor.

Atividades principais: agricultura com pecuária de leite.

Paradigma extrativista Trajetória (característica)

Camponesa T2: conduzida por agentes camponeses, marcada por uso altamente diverso das disponibilidades

naturais, com baixíssimo impacto na biodiversidade e baixíssima formação de dejetos/impacto poluidor

Atividades principais: sistemas agroflorestais sob a forma de manejo florestal, agricultura e aquicultura ou

de atividade quase exclusivamente agrícola associada cada vez mais à reconstituição do bioma e manejo florestal.

Fonte: COSTA, 2012a, p. 157-161. Elaboração nossa.

Sendo assim, cabe ressaltar novamente, o autor descreve Trajetórias Tecnológicas como conformações de “grandes movimentos que, resultantes de processos adaptativos conduzidos por agentes, de busca e seleção de possibilidades produtivas e reprodutivas, nos quais se incluem recursos institucionalmente distribuídos” (COSTA, 2012, p.152).

Dessas, a Trajetória Camponesa T2 destaca-se pelo seu potencial de protagonismo quanto a um “desenvolvimento de bases socialmente mais justas e igualitárias, economicamente criativo, dinâmico e eficiente, com baixa entropia” (COSTA, 2012c), na medida em que:  no Censo de 1995-96, por exemplo, apresentava-se como capaz de ocupar 502 mil pessoas,

distribuídas entre 130,5 mil estabelecimentos camponeses numa área de 03 milhões de hectares;  ao mesmo tempo em que respondia por 21% do valor bruto da produção, com elevada taxa média

de crescimento entre 1990 e 2006 de 6,1% a.a. e a despeito de sua taxa de investimento em 1995 ter sido de 3%;

 apresentava no mesmo período a maior produtividade por área de todas, alcançando 5,99 hectares por trabalhador quando analisada a relação entre terra e trabalho, crescente a uma taxa de 11,4% a.a., enquanto a área em operação aumentava a meros 1,1% a.a.;

 sua menor rentabilidade líquida por trabalhador em 1995 é recuperada nos anos seguintes, em função de condições externas [industrialização de produtos orientada por ações de governo ou empresas líderes], demonstrando capacidade de crescimento a uma taxa de 12,7% a.a. e relevância ímpar num quadro de análise que tenha a pobreza como fator a ser superado a partir

das bases estruturais de produção tanto inclusiva do ponto de vista da geração da renda familiar quanto ambientalmente sustentável;

 do ponto de vista ambiental, é a trajetória mais afeita a um ideário conservacionista do bioma amazônico, apresentando baixo percentual de degradação de terras, correspondente a apenas 3% do total, junto com o mais elevado custo de oportunidade da entropia do setor, crescente a 9,9% a.a., e o mais baixo balanço líquido de dióxido de carbono [entropia inerente a partir do CO2], cujo valor responde por apenas 2,6% de todo o conjunto analisado e aumento em ínfimos 0,9% a.a . (COSTA, 2012c, p. 156, 179 e 303).

Dessa forma, assegura Costa, nenhum programa ou política de desenvolvimento territorial e endógeno, que leve em conta a necessidade de assegurar estruturas sociais mais equânimes e consistentes, assim como critérios econômicos e ambientalmente virtuosos, pode prescindir de reconhecer as contribuições históricas, de considerar o direito à terra, à permanência e de incentivar essa trajetória, com a criação de institucionalidades capazes de compreender e se adequar a seus modos de vida e de reprodução próprios.

Por ser extraordinária na forma de produzir e negociar a sua participação no mundo ocidental e no mercado, ela deteria dessa forma um enorme potencial de liderar a composição de arranjos produtivos que sejam efetivamente mais favoráveis à região.

Adiante, tentaremos explorar os contextos de formação histórico-social e discursiva de parte dos grupos ligados a essa trajetória, buscando argumentar como a invisibilidade foi construída pela mediação de interesses e disputas de poder diversos, assim como por meio de limitações teóricas e racismos de ordem científica no mundo ocidental como um todo, mas com desdobramentos específicos no Brasil.

2 Ignorâncias convenientes e desconhecimentos produzidos: o apagamento das histórias de indígenas, negros e mestiços na Amazônia

“[...] A luta de classes, que um historiador formado em Marx

tem sempre diante dos olhos, é uma luta pelas coisas duras e materiais, sem as quais não podem existir as requintadas e espirituais. E, apesar disso, estas últimas estão presentes na luta de classes de modo diverso da ideia dos despojos que cabem ao vencedor depois do saque. Elas estão vivas nessa luta sob a forma de confiança, coragem, humor, astúcia, constância, e atuam retroativamente sobre os tempos mais distantes. Elas porão permanentemente em causa todas as vitórias que algum dia coube às classes dominantes. Tal como as flores se voltam para o sol, assim também, por força de um heliotropismo secreto, o passado aspira a poder voltar-se para aquele sol que está a levantar-se no céu da história. O materialista histórico tem de saber lidar com essa transformação, a mais insignificante de todas.”

(Walter Benjamin, tese IV, Sobre o conceito da História) Passamos, então, a discutir o prolongado desconhecimento sobre a biodiversidade amazônica como um resultado da relação homem-natureza-cultura, associando-o, em parte, ao processo de formação das ciências naturais, às influências das teorias racistas e à constituição da invisibilidade sócio-histórica de grupos camponeses agroextrativistas estudados por Costa9

(2012 a).

Como o passado que aspira a levantar-se no céu da história, a partir das interpretações históricas de autores como Salles (2005), Chambouleyron (2006), Guzmán (2015), Bezerra Neto (2001), Santos (1980), Pacheco de Oliveira (1979), Weinstein (1993) e Costa (2012b), entre outros, propõe-se a refletir também sobre os desdobramentos históricos dessa invisibilidade, inclusive como fator que em parte favorecerá a estruturação de um sistema como o do aviamento entre os séculos XVIII e XX, cuja ordem de funcionamento não seria possível sem a construção de diferentes modalidades de cidadania, desigualmente estabelecidas a partir também dos apagamentos simbólicos e da reprodução de etnocentrismo pelos diversos campos do conhecimento.

Consideramos esse movimento reflexivo fundamental à compreensão do contexto narrativo de Belém do Grão-Pará, sobre o qual nos debruçaremos com mais ênfase a partir dos três próximos capítulos.

9 No final desta seção, argumentamos sobre algumas razões possíveis para usar menos a expressão “campesinato

agroextrativista” e o termo “caboclos”, preferindo “ribeirinhos” para substantivar esse público referencial. Até lá, manteremos essas formas, por força da argumentação apresentada pelos respectivos autores.