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Questões de ordem teórica e suas implicações interpretativas

1.2 Síntese sobre trajetórias tecnológicas

1.2.1 Questões de ordem teórica e suas implicações interpretativas

Resultante de uma convergência teórica que combina elementos das tradições schumpeterianas, keynesianas, marxistas e da Escola da Regulação Francesa, a noção de Trajetória Tecnológica, quando incorporada por Costa à interpretação da realidade agrária amazônica, possibilita a inclusão de variáveis analíticas como a heterogeneidade de lógicas, estruturas e agentes que regem as dinâmicas econômicas, sociais e ambientais nela atuantes.

Partindo de uma abordagem que combina aspectos econômicos a elementos institucionais e ao papel social dos grupos, o que também implica no reconhecimento da importância das estruturas a partir da forma com que atendem às próprias necessidades de divisão social do trabalho e da forma de apropriação dos recursos naturais disponíveis na Amazônia, a noção de Trajetórias Tecnológicas supõe ainda a existência de paradigmas tecnológicos distintos que concorrem sob a forma de modelos de desenvolvimento agrário para a região.

Entre esses paradigmas, os fundamentos produtivos e resultados da produção, apoiados por conjuntos distintos de mecanismos institucionais [a exemplo das legislações, fundos e regras de financiamentos, assistência técnica, produção científica, entre outros fatores], diferenciam-se pela vinculação a universos simbólicos próprios e pelas formas de

incorporação do bioma amazônico/capital natural e da mobilização/organização e aplicação do capital físico e de trabalho.

O primeiro desses paradigmas, de base agropecuária, concebe a natureza a partir de uma lógica industrialista, baseada em esforços de padronização e homogeneização como constantes tentativas de subordinar, controlar e reduzir a influência da natureza sobre o tempo e a disposição do processo produtivo voltado à satisfação de necessidades reprodutivas da sociedade.

O valor do capital natural nesse contexto só existe na medida em que a natureza é morta, controlável e generalizada, transformada em matéria-prima pelo emprego do trabalho também genérico [abstrato, que não pressupõe habilidades insubstituíveis], em uma busca constante de trivialização das atividades agrícolas, ainda que tal objetivo seja historicamente tensionado [quando não frustrado] pelas complexas condições ecossistêmicas e biológicas [edafoclimáticas] de uma região como a Amazônia.

Tal paradigma conta também com significativos aportes de recursos governamentais sob a forma de crédito e incentivos financeiros, de acúmulo de repertórios de pesquisa e assistência técnica, assim como centralidade em programas/projetos, entre outras formas de aportes institucionais públicos, destinados, especialmente, a partir do modelo de desenvolvimentismo característico do regime militar para a Amazônia.

O segundo paradigma, de base extrativista, fundamenta-se em heterogeneidade produtiva associada aos ciclos de coleta e produção florestal, conta com a natureza nos [ou como os] próprios fundamentos da produção e, para isso, dispõe de habilidades próprias e conhecimentos tácitos [não menos complexos] sobre o manejo da floresta e ecossistemas locais, acumulados e em constante processo de reapropriação, desde os tempos de predominância das populações ameríndias, em períodos anteriores à colonização da Amazônia, até os dias atuais.

Pressupõe dessa forma a natureza como elemento vivo, como força produtiva, a ser mantida como um capital [natural], a partir de interações entre arranjos sociais adequados, práticas econômicas, produção simbólica e cultural adaptados a diferentes contextos. Organizou-se historicamente sob formas camponesas de produção, o que pressupõe a mobilização do trabalho e da hierarquia da produção em torno do trabalho familiar. Envolve, provavelmente, formas também próprias de produção e gestão desse conhecimento, historicamente autônomas e continuamente subestimadas pelas agendas científicas e programas de desenvolvimento oficiais, apesar de demonstrar capacidade de resiliência,

produtividade quanto ao uso da terra e do trabalho, e importância social na história da economia regional.

Por último, um terceiro paradigma, o agroflorestal, seria conformado pela combinação de elementos e posturas intermediárias entre os dois primeiros.

Segundo Costa, as trajetórias tecnológicas são, portanto, as formas particulares e concretas da realização de um paradigma tecnológico. Elas se realizam a partir de interações dinâmicas entre necessidades sociais e privadas, entre os problemas produtivos e reprodutivos, assim como por influências de procedimentos técnicos e institucionais, com os quais os agentes se defrontam e, a partir disso, tomam decisões concretas em contextos social, econômica e institucionalmente definidos (COSTA, 2012, p. 115).

De forma concreta, as trajetórias tecnológicas manifestam-se pela oferta de produtos, gerados por tipos de empresas [ou agrupamentos] que obedecem a processos decisórios, relações sociais e técnicas próprios.

No interior de cada uma há, de um lado, a empresa patronal, movida pelo trabalho assalariado e norteada pela expectativa de eficiência marginal do capital, nas quais as decisões são ponderadas por alternativas de processos de apropriação da terra e recursos naturais que obedecem a critérios de cotejamento orientado pela expectativa de lucro.

Do outro, há empresas camponesas, baseadas no trabalho familiar orientado por uma razão de eficiência reprodutiva que subordina a eficiência marginal do capital. As últimas se autogerem pelo atendimento das necessidades reprodutivas das famílias, alocando recursos produtivos e decisões de mudança a partir de um balanço entre necessidades e tensões, com capacidade de transformar as tensões reprodutivas em investimentos e inovações tecnológicas, o que lhes dotam de um tipo de consistência intertemporal em que as decisões atuais [do presente] tentam prever e resguardar as necessidades do futuro.

Em síntese, a proposta de leitura da dinâmica agrária por meio de trajetórias tecnológicas ajuda a compreender, no plano macro contemporâneo, a presença de dois projetos de desenvolvimento de base rural distintos e concorrentes, assim como num plano mais próximo da realidade, a significativa diversidade de agentes e de situações presentes no universo agrário amazônico.

Aqui, cabe ressaltar, não buscamos discutir a obra do autor e seus desdobramento teóricos ou metodológicos em pormenores mas propor uma interpretação capaz de demonstrar a amplitude e a potência de suas revelações para a interlocução com diversos campos do conhecimento. Também destacamos que não consideramos aqui a noção de trajetória tecnológica como uma categoria fixa, definitiva, imutável, mas, no rastro dos tipos ideais

weberianos, como formas de representação discursivas, constituídas de forma relacional [intersubjetiva] na e pela história amazônica, na e pela diversidade social por ela envolvida.

Dessa forma, vemos essas trajetórias como aproximações discursivas que nos indicam percursos históricos, materializados sob formas de produção, de uso da terra e da natureza, de organização do trabalho, entre outros aspectos.

Longe de encerrá-los em pré-determinações, essas trajetórias conduzem os nossos olhares e percepções para a diversidade no agrário, indicando, por meio de rastros e índices, caminhos que levam a universos amplos, dinâmicos, complexos e plurais, cujo interior é ocupado por grupos diversos, com seus percursos históricos, disposições e racionalidades, com suas tensões, alianças, pactos de convivência e hostilidades.

Desse modo, como uma forma [metodológica] de chegar e, ao mesmo tempo, como novo ponto de partida [teórico], torna-se possível reconhecê-los para que possamos, enfim, conhecê-los com o devido interesse e profundidade.

Abertas a permanentes reconfigurações, em função tanto de estímulos quanto de pressões endógenas e exógenas, as trajetórias tecnológicas [até então incomuns para a leitura do agrário] estão longe de aprisionar esses diversos grupos a determinações e grandes explicações científicas, por mais que contenham grande capacidade de se aproximar das realidades por elas desveladas. Aliadas a todos os dispositivos teóricos e metodológicos acionados por Costa, elas são parte do que buscarmos caracterizar aqui como uma perspectiva “substantiva” e aberta de leitura do agrário e de interpretação das possíveis histórias, sociedades e economias diluídas no significante “Amazônia”, o qual, a depender dos interesses, costuma ser tratado de modo amorfo, arbitrário, retórico e reificado.