• Nenhum resultado encontrado

1.3 MANUSCRITO DE FLORENÇA

1.3.2 Análise de conteúdo do manuscrito de Florença

1.3.2.1. Primeira parte

O cosmógrafo inicia a sua defesa, com a análise da técnica de desenhar linhas de rumo num globo, segundo as regras enunciadas pelo bacharel, no 7º capítulo do seu trabalho. Assim escreve:

(…) lançemos pela arte que traz no 7.º capitulo na superficie do globo, ho Rumo de nordeste sudueste começando desde o circulo equinocial, e vejamos que sorte de linha curua he, e cotejemola com a sua mesma definição de Rumo que poem logo no prinçipio. Ora por quanto a quarta tauoa nos diz, que nauegando nordeste sudueste, se mudamos a altura per hum grao do meridiano, he a distançia dos meridianos per arco do equinocial outrosi hum grao, scilicet asi mesmo a dous graos Respomdem dous, e a tres tres, e isto igualmente ate chegarmos ao polo, de sorte que a 90 graos de meridiano Respomdem outros .90. no equinoçial, per distançia de meridianos, yremos asi de grao em grao pondo pomtos na superfiçie do globo como elle diz, desdo equinocial ate chegarmos ao polo ajudandonos pera isto do meridiano mobile, como soemos fazer quando situamos lugares ou estrelas fixas per longura e largura.132

Numa primeira leitura destaca-se a referência às tabelas existentes na obra do bacharel. Este é um dado com algum interesse pois, tanto quanto se sabe, trata-se da primeira referência a tabelas de rumo. Ao longo do manuscrito, Nunes não se refere a quaisquer tabelas por si próprio calculadas nem a qualquer objecção apresentada pelo bacharel a tabelas suas, o que me leva a crer que o bacharel terá sido o primeiro (ou dos primeiros) a apresentar tabelas de rumo. Pode assim especular-se que estes textos terão circulado em pequenos círculos restritos à corte e possivelmente à Universidade, e que existiria um debate em torno destas matérias. Naturalmente, esta foi uma contribuição importante para a divulgação do trabalho do cosmógrafo real.

Numa clara alusão à incompreensão da carta comum e dos problemas em volta da sua correcta utilização, que terão também passado despercebidos ao seu crítico, o cosmógrafo-mor continua, apontando à origem das confusões nas ideias do bacharel:

Diz mais que lancemos per todolos pontos e riscos e ficara feicta huã linha curua, que he o Rumo de nordeste sudueste e este modo vem ao Comum, que tem os mestres de cartas, que presumem de lançar Rumos em globos scilicet lançaõ meridianos de grao em grao, ou de tres em tres, ou de cimco en cinquo, segundo ho consente a qantidade do globo e lançaõ outrosi paralellos pella mesma hordem, e nos quadrados que ficam feitos lançam de amgulo a angulo per diametro Riscos, que vaõ asi continuando, e deixam feitos todollos nordestes suduestes e noruestes suestes.133

Explicado o método do bacharel, o propósito de Nunes passa a ser verificar este método de traçado de rumos no globo usando uma definição de linha de rumo, sugerida pelo seu opositor:

Rumo he huã çerta linha curva, que nacendo do polo do horizonte, ou do ponto que lhe Responde na Redondeza da terra, fazem os meridianos dos lugares per que passa, con todolos circulos mayores contingentes a dita linha, angulos igoaes, sem fazer uariaçaõ algũa.134

Descreve assim uma linha cujos círculos máximos tangentes a todos os seus pontos fazem ângulos constantes com os meridianos que a cortam. Segundo a descrição das tabelas do bacharel ter-se-ia (para o caso especifico de um rumo

V=45º) 90 pontos, que originavam uma curva composta por 90 arcos de círculo

máximo, unindo o equador ao pólo.

Nunes verificou que esta definição e a aplicação não eram consistentes entre si. Vislumbrando esta confusão, o matemático refere que “clara coisa é, que esta definição não compete à linha curva, que lançamos por Rumo nordeste sudoeste”135, “pois é um linha composta de arcos de círculos maiores, os quais vão fazendo ângulos uns com os outros sobre os pontos assinados, manifesto é que nenhum círculo maior corta a todo outro maior, como é demonstrado por

133 Manuscrito de Florença, p. 2. Nunes apresenta quase sempre como exemplo o rumo de NE-SO,

ou seja, V=45º.

134 Manuscrito de Florença, p. 2. 135 Manuscrito de Florença, p. 2.

Teodósio”136. Nunes percebia que a linha gerada, usando os dados da tabela, nunca seria de rumo constante. E “tendo assim provado que as ditas regras são falsas”, volta a referir um dos conceitos base da sua teoria, tal como tinha feito em 1537, que “he muy evydente per demostraçoẽs mathematicas, que quẽ anda per circulo mayor que nõ he o equinocial, vay sempre fazendo angulos desiguaes, com os meridianos dos lugares em que se acha, e quẽ per agulha nauega, gouernando a huã parte, g

l usar arcos d

ve-se salientar que Nunes opta geralmente pelo uso, como exempl

uarda sempre hum mesmo angulo, he manifesto que os taes arcos naõ saõ Rumos”137.

Os dois homens previam que, para se obter uma linha de rumo, esta pode ser construída através da soma de troços de arcos de círculo máximo. Mas o cosmógrafo chama a atenção para o facto de um troço de círculo máximo não ter as propriedades matemáticas de um troço de linha de rumo138. Todavia, avisa que “em pouca quantidade devemos tomar estes arcos por Rumo”, ou seja, é possíve

e círculo máximo para construir uma aproximação à curva de rumo e que, em determinadas condições, o erro que daí advém não compromete o cálculo.

Resumem-se de seguida os principais argumentos matemáticos presentes no manuscrito. Antes, de

o, de arcos com ângulo de partida V=45º (4ª quarta), generalizando depois para todos os rumos.

Como atrás foi referido, é possível usar troços de arcos de círculos máximos na construção de uma linha de rumo, desde que esta utilização obedeça a regras concretas. Para Nunes isto seria claro mas para o seu crítico, aparentemente não o

era139. Pegando no método proposto pelo bacharel, o cosmógrafo começou por

demonstrar que os troços de arcos de círculo máximo que utilizou na construção da

136 Manuscrito de Florença, p. 3. Refere-se a Teodósio de Tripoli (séc. I a.C.) Demonstrado nas

Esféricas, como aponta Joaquim de Carvalho.

137 Manuscrito de Florença, p. 7.

138 Relacionado com esta diferença e ainda antes de passar a tratar as confusões do seu “opositor”,

Nunes faz um desvio no seu propósito principal e tece algumas breves considerações a propostas de regras, do bacharel, para obter posições no globo ”quando navegamos per Rumos e estimativa” que não irei aqui analisar.

139 “(...) e isto se os riscos por que juntamos os (…) pontos que assinalamos, quiser que sejam arcos

de círculos maiores, por que não o declara, e assim o deve entender (...)”, Manuscrito de Florença, p. 1.

linha de rumo não são linhas de rumo. A propriedade principal e essencial das linhas de rumo é manter com os meridianos por que passam um ângulo constante,

V, ao p

z que no ponto em que um qualquer troço de arco termine, o rumo o

eja, dois arcos de um mesmo rumo (com os ângulo

asso que usar troços de arcos de círculo máximo implicaria variações neste ângulo.

Deste modo, estabelece que se os tais arcos de círculo máximo fossem rumos, “o rumo por que vamos ao nordeste não nos serviria para tornar por ele ao sudoeste”, uma ve

u ângulo que este faz com o meridiano final já não será igual a um qualquer ângulo V inicial.

Aponta também que no hemisfério norte, para uma igual variação em latitude, a variação em longitude é maior para um rumo NE que para um rumo SO, verificando-se o contrário no hemisfério sul. Em consequência do que foi antes demonstrado, conclui que tomando-se sempre arcos com o mesmo ângulo de partida para construir o rumo, se verificam desigualdades entre os ângulos dos arcos de retorno, em função da latitude, ou s

s de partida V iguais). Mas tomados em latitudes diferentes, obtêm-se diferenças para os ângulos de retorno.

Subsequentemente, apresenta uma importante demonstração matemática que permite entender melhor a aplicação de arcos de círculo máximo na construção duma curva de rumo. Segundo o relato que faz do método de traçar rumos num globo, dado pelo bacharel, seria necessário que as variações em latitude e as variações em longitude, ou seja, entre meridianos consecutivos, se mantivessem constantes para cada rumo específico. Nunes prova que tal não se deve passar e defende que quando a “altura vai crescendo igualmente e a diferença dos meridianos igualmente, é impossível o rumo ser igual nestas saídas dos pontos que por riscos ou arcos se juntam (...)”140. Se na aplicação dos arcos de círculo máximo se mantiverem constantes os valores referidos, introduz-se uma variação nos ângulos dos arcos sucessivos que, por definição, deveriam ser constantes. Nunes conclui e demonstra que mesmo à medida que se regista uma aproximação do pólo,

os arcos determinam ângulos cada vez menores com os meridianos. Assim, deve-se ter em atenção que o valor da diferença entre meridianos sucessivos tem de ser um grau de

opósito, e nas condições estabelecidas pelo b

liberdade, de modo a estabelecer um rumo usando arcos de círculo máximo mantendo constante a variação da longitude ponto a ponto.

Desta forma, conclui-se que a principal confusão do bacharel foi usar trigonometria no plano para tratar problemas no globo o que originaou naturalmente um erro no método de rumar. Com esse pr

acharel, dá um exemplo mostrando que a um rumo ' 45º  na carta,

corresponde um rumo γ = 43º 42’ no globo.

Depois, mostra que há variação nos valores dos ângulos de partida dos rumos à medida que se aproximam do pólo (valores que supostamente devem manter-se constantes). E para terminar, sugere que se calcule como exemplo, o valor da diferença entre meridianos que cabe realmente a um rumo de NE-SO nas condições propostas pelo bacharel, obtendo valores bem diferentes dos do bacharel. Portanto conclui que o método proposto pelo bacharel para rumar o globo consistiu em adaptar os pontos obtidos na carta ao globo, o que naturalmente estava

algumas características peculiares da linha de rumo, que não tinham sido incluídas em 1537. Em particular, um leitor do manuscrito terá acedido às novas conclusões

errado141.

Documentos relacionados