• Nenhum resultado encontrado

1.2 TRATADO DA SPHERA

1.2.1 Tratado sobre certas duuidas da nauegação

O tema deste tratado foi sugerido por dúvidas que Martim Afonso de Sousa terá compilado durante a sua viagem pelo hemisfério Sul. Além de homem da corte, este

65 Estes textos têm edição moderna: Luís de Albuquerque, Os guias náuticos de Munique e Évora

(Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965).

66 O texto sobreviveu em manuscrito mas existem algumas edições modernas disponíveis. Destaco

como exemplo a primeira: Esmeraldo de situ orbis por Duarte Pacheco Pereira, Raphael Eduardo de Azevedo Basto (coord.), (Lisboa: Imprensa Nacional, 1892).

67 Existe edição moderna: Luís de Matos (ed.), Um livro de marinharia inédito, Separata de Boletim

Internacional de Bibliografia Luso-Brasileira, Vol. X, (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969).

68 Também aqui há mais que uma edição do texto. Volto a destacar a primeira: João de Lisboa, Livro

de Marinharia – Tratado da Agulha de Marear, copiado e coordenado por Jacinto Ignacio de Brito Rebello, (Lisboa: Imprensa de Libanio da Silva, 1903).

69 Martín Fernández de Enciso, Suma de geografia que trata de todas las partidas e provincias del

mundo: en especial de las Indias. E trata largamente del arte de marear. Juntamente con la esfera en romance: con el regimiento del sol e del norte (Sevilla: Jacobo Cromberger, 1519).

fidalgo estabeleceu ao longo da vida fortes ligações à vida marítima, quer em explorações, quer a nível da administração de territórios70, e surge desta maneira como a personagem charneira nos primeiros momentos do Tratado sobre certas

duuidas da nauegação e é aquele que despoleta uma discussão que se arrastaria por

cerca de 30 anos nos trabalhos de Pedro Nunes. As suas duas dúvidas estão contidas na passagem inúmeras vezes transcrita71:

Nam ha muytos dias senhor que falando com Martim afonso de Sousa sobre a nauegaçã que fez per as partes do sul: antre outras cousas me disse com quanta diligencia e per quantas maneyras tomara a altura dos lugares em que se achara: e verificara as rotas per que fazia seus caminhos: mas que de duas cousas se espantara muyto que em sua viagem esperimentou: e era. A primeira que estando ho sol na linha em todos os lugares em que se achou lhe nacia em leste: e se lhe punha no mesmo dia em oeste: isto igualmente sem nenhũa deferença ora se achase da banda do norte ora da banda do sul. E preguntoume porque razã: se gouernamos a leste ou oeste: ymos per hũ paralello: em hũa mesma altura sempre: sem nunca podermos chegar a equinocial onde leuamos a proa juntamente com o leste dagulha. O segundo que me preguntou he que elle se achara em .xxxv. graos da outra banda da linha: no tempo que o sol estaua no tropico de capricorno: e lhe nacia ao sueste e quarta de leste: e se lhe punha no mesmo dia ao sudueste quarta de loeste: como aos que viuem na mesma altura desta parte do norte: e que nam via como podia isto ser: porque per razam: assi auia de nacer aos que viuem da outra banda do sul quãdo ho sol anda per os signos da mesma parte: como nace a nos quando anda desta nossa banda. E poys a nos no verão estando ho sol no tropico de cancro: nos nace em nordeste quarta de leste: tambẽ aos que viuem da outra parte do sul: no seu verão deuia o sol de nacer ao nordeste quarta de leste. Satisfiz eu a estas duuidas per palaura ho milhor que pude: e todauia determiney descreuer ho que nisso me pareceo: porque se não perdesse meu trabalho: em cousa que segũdo eu estimo: he a principal parte pera quem deseja saber como se ha de nauegar per arte e per rezão.72

Seja ou não este um episódio real, o certo é que o autor apresenta Martim Afonso como um navegador invulgar e uma incorporação do seu ideal do “novo marinheiro”. Isto é, alguém que estaria melhor formado que a maioria dos

70 Sobre Martim Afonso de Sousa veja-se: Carmen M. Radulet, «Martim Afonso de Sousa:

navegador, guerreiro e explorador entre as Índias Ocidentais e as Índias Orientais», in: Maria Isabel Vicente Maroto, Mariano Esteban Piñeiro (coords.), La ciencia y el mar, (Valladolid: Los autores, 2006) 287-309. Para saber mais sobre a sua vertente política ver também: Alexandra Pelúcia, Martim Afonso de Sousa e a sua Linhagem: A Elite Dirigente do Império Português nos Reinados de D. João III e D. Sebastião, Dissertação de Doutoramento, UNL-FCSH, 2007.

71 Obras, I, p. 105. 72 Obras, I, p. 105.

navegadores, além de possuir um espírito crítico que, à partida, lhe permitiu observar algo que passaria despercebido a um piloto comum.

Para melhor compreender o problema relatado por Pedro Nunes simulam-se, aproximadamente, as condições de observação experimentadas na expedição de Martim Afonso de Sousa. Assim fez Semedo de Matos no artigo “Em defensam da carta de marear”73 e, no que se segue, farei uso das suas indicações. Por uma questão de concordância com o itinerário da viagem, tome-se a posição do navegador num ponto qualquer, entre o equador e o trópico de Capricórnio74, num dia de equinócio. Como vem referido no Tratado da Sphera, os que vivem nesta zona “tem duas vezes no ano o sol sobre a cabeça”75 e “convêm a saber que a todas as regiões do mundo o dia que o sol está na linha nasce em leste e se põe em oeste”76. Atendendo à posição relativa e ao horizonte de lugar do observador nestas condições (colocado no ponto M), pode-se traçar o meridiano de lugar do observador (na fig. 1.1 é o circulo máximo que contém os pontos N, H e M). Nunes aponta que “nenhum paralelo fora da equinocial vai leste oeste”77 e sugere que se imagine um circulo máximo no céu que passe pelo nosso zénite, ou seja, pelo pólo do horizonte de lugar, círculo esse que faz 90º com o meridiano de lugar. Este círculo (o vertical primário) irá interceptar a equinocial em dois pontos, respectivamente, o oriente e o ocidente equinocial.

73 L. J. Semedo de Matos, «Em defensam da carta de marear», Oceanos, 49 (2002), pp. 36-53. 74 Para uma descrição da expedição de Martim Afonso de Sousa consultar, por exemplo: “Relação da

Navegação de Pêro Lopes de Sousa (1530-1532)”, Martim Afonso de Sousa, (Lisboa: Edições Alfa, 1989) 85-151.

75 Obras, I, p. 29.

76 Obras, I, p.106. A linha a que Pedro Nunes se refere é o equador celeste; o Sol “está na linha”

num dia de equinócio.

77 Obras, I, p.106. Percebe-se que nesta altura Pedro Nunes não considerava os paralelos como

caminhos leste-oeste. A primeira razão que apresenta baseia-se no facto de os paralelos não serem círculos máximos e, para qualquer horizonte do observador excepto quando o zénite está na equinocial, não cortarem os meridianos em quatro partes iguais (quadrantes). A questão dos rumos leste-oeste é central e Nunes volta a abordá-la mais tarde chegando a outras conclusões que não esta, como se terá oportunidade de ver.

Figura 1.2.1. N é o pólo norte, QHQ’ é a linha do equador, PP’ é o paralelo onde se encontra o ponto M, que representa a posição de Martim Afonso de Sousa. S é o ponto onde nasce o Sol, para um observador em M, no dia de um equinócio. A linha MS é um troço de círculo máximo, pelo que se um navegador pretendesse seguir esta rota, teria de mudar constantemente o ângulo que, em cada momento, faria com os meridianos por que passa.

Quem seguisse por esta linha (que corresponde ao rumo leste-oeste dado pela bússola) seguiria por círculo máximo e, lógico seria que, quem assim navegasse se dirigiria ao equador. Mas Martim Afonso teria experimentado algo diferente e era essa a base da sua dúvida. No passo seguinte Nunes explica a “confusão”:

Mas posto que o circulo grande sobredito nos encaminhe ao oriẽte equinocial e se represente pello leste da [a]gulha, e quem pello tal circulo for: va ter ao dito oriente equinocial, não auemos porem de cuidar: que quem por elle for yra a leste. Porque tãto que por elle andar achara que o leste da agulha não vay na proa do seu nauio. e andando espaço de caminho: em que esta deferença possa sentir achara que vay ja per outro rumo. E por tãto o que gouerna sem entender o porque o faz: emẽnda logo de principio sua nauegação: se que jr em hũa mesma altura.

(…) E a rezam disto he: porque posto que no centro do horizonte donde partimos: fezesse o circulo grande sobredito com o meridiano angulos reitos: como conuem pera ficar repartido o horizonte em quatro partes iguaes. tanto que saymos fora do tal lugar logo mudamos o horizonte: e pello conseguinte o meridiano: e ja o meridiano nouo não corta ao circulo grande per que faziamos nosso caminho cõ angulos reitos: mas faz outro desigual (…).78

Percebe-se que no momento em que o navio começa a deslocar-se, as condições alteram-se de tal maneira que este já não estaria a navegar segundo a rota inicial. Isto é, a relação entre o rumo de leste dado pela bússola e a rota segundo o círculo máximo, tal como é obtida no momento de partida, não se mantém constante no decurso da viagem. Nas palavras de W.G.L. Randles: “se o barco fosse direccionado desde o ponto de partida para atravessar o equador sobre um círculo máximo, um rumo da bússola apontado para leste mostraria, à medida que a viagem prosseguia, uma direcção diferente da do barco e [o navegador] procuraria colocá-lo numa rota paralela ao equador”79. Resumindo, o navegador que quisesse manter o rumo de 90º (por exemplo) daria por si a não “sentir” a variação de latitude, isto é, estaria a navegar sobre o paralelo já que, estaria sempre a corrigir uma rota com pequenos desvios imperceptíveis.

A questão é subtil e assenta principalmente na diferença que existe entre uma rota seguindo um círculo máximo e uma rota seguindo um rumo constante. Esta dúvida revela que, na época, esta diferença entre as duas variantes de navegação num globo ou, num sentido mais lato, numa superfície esférica não seria totalmente clara (pelo menos para a maioria das pessoas).

Esta confusão entre navegação seguindo um rumo constante ou seguindo um círculo máximo condicionava o entendimento e uso da carta de marear comum: as linhas rectas eram, erradamente, assumidas como linhas de rumo constante. Objectivamente e independentemente de o problema ter ou não expressão na altura, ou de alterar a navegação das carreiras ultramarinas, quem assim navegasse estaria a seguir uma navegação enganosa80.

79 W.G.L. Randles, «Pedro Nunes e a descoberta da curva loxodrómica», Gazeta de Matemática, 143

(2002) 90-97.

80 Na verdade, os próprios pilotos estariam já familiarizados com o facto de as distâncias tomadas na

carta não serem as que tinham que percorrer na realidade. Por exemplo, João de Castro no seu Roteiro de Lisboa a Goa (1538), refere a propósito do caminho entre o Brasil e o Cabo da Boa Esperança que “está ya assentado por máxima nos mareantes, que nêste caminho se haon de contar mais léguas em cada dia natural, do que acharem que a nau podia andar”, Salvador García Franco, Historia del Arte y Ciência de Navegar. Desenvolvimento histórico de “Los cuatro términos” de la navegcíon, Tomo II, (Madrid: Instituto Histórico de Marina, 1947), p. 41.

A explicação da segunda dúvida de Martim Afonso deteve um pouco mais o cosmógrafo. Em primeiro lugar interessava esclarecer a natureza dos rumos e principalmente clarificar a navegação ao longo de um paralelo, o que não era trivial. Nunes sublinha que os paralelos não podem ser considerados caminhos de leste- oeste ainda que façam ângulos rectos com os meridianos. Isto introduzia uma questão dupla de igualdade de ângulos rectos já que tanto os paralelos como os círculos máximos fazem ângulo recto num mesmo ponto do meridiano de partida, o que poderia sugerir uma impossibilidade lógica. Contudo, informa o leitor que

demonstrou no seu liuro dos triãgulos spheraes81 (obra hoje perdida) que os

ângulos rectos feitos pelos paralelos são ângulos rectos de direito, ou seja, são tão rectos como os ângulos feitos por intercepção de círculos máximos. Uma outra informação importante é de que os paralelos não podem ser identificados com rotas indicadas pela agulha já que estas são, na verdade, círculos máximos num globo.

Como consequência desta interpretação as bases da construção e uso da carta de marear comum estavam postas em causa. Os navegantes poderiam não entender bem a sua natureza geométrica, nomeadamente “que todalas linhas dereitas que estam na carta sam cortaduras dos circulos mayores [círculos máximos] e orizõtes. e yndo sempre em hũa rota: inclinandoa ao lugar do orizonte pera onde vão: he impos[s]iuel que vão pellas taes linhas dereitas: e elles fazem sua cõta per ellas como se per ellas fossem. Do qual se segue: que os lugares ficam situados onde nam estam (...)”82. Só assim se explicava a necessidade de “defender a carta”.

81 “como demostrey na .xxiiij. proposição do primeiro livro dos triãngulos spheraes”. Obras, I, p.

111. Este texto encontra-se hoje perdido. Provavelmente não terá passado de um registo manuscrito sobre temas gerais de trigonometria esférica. Sobre isto veja-se: Henrique Leitão, «Sobre as “obras perdidas” de Pedro Nunes», Henrique Leitão, Lígia Azevedo Martins (Coords.), Pedro Nunes, 1502- 1578: Novas terras, novos mares e o que mays he: novo ceo e novas estrellas (Lisboa: Biblioteca Nacional, 2002) 45-66.

Foi claro para Nunes que, quem seguisse estas “linhas” estaria, na realidade, a percorrer uma rota que não era um arco de círculo máximo mas sim, a sua “linha irregular” que é apresentada pela primeira vez numa figura:

Figura 1.2.2. Versão actual da figura apresentada por Nunes no seu primeiro Tratado

(Obras, I, p. 113). Trata-se de uma vista a duas dimensões a partir de um ponto exterior a esfera e perpendicular à linha do equador (equinocial) no ponto c. Nota-se aqui, a diferença clara entre um circulo máximo, de, e a representação de uma curva de rumo, ab.

Estas novas conclusões teriam alguns impactos práticos e Nunes, com as suas ideias e pretensões deve ter surgido aos olhos dos mareantes com uma atitude pouco habitual, o que desde logo poderá ter dado origem a tensões entre o cosmógrafo e os mareantes. A simples diferenciação das formas de condução de embarcações teria gerado alguma confusão. Não seria evidente, para quem toda a vida havia conduzido um navio sem estas “complicações”, que estas se reduzissem a uma de duas opções: navegar segundo a linha de rumo constante, o que obrigava a cálculos e a evitar a confusão deste com os caminhos rectos da carta; ou navegar por círculo máximo, a rota mais curta entre dois pontos, que também obrigava a cálculos e acertos frequentes. A interpretação da carta seria também afectada: nas palavras de Nunes, não servindo a carta normal, ou melhor, não servindo as “falsas”

interpretações e usos que dela faziam, o melhor auxiliar da navegação, seria a “poma rumada”, ou globo com rumos traçados.

Nunes volta depois ao propósito de explicar a segunda dúvida de Martim Afonso de Sousa. Mas antes disso, faz um último desvio para analisar a maneira de saber a rota entre dois lugares. Este aspecto introduz nova crítica às limitadas técnicas dos pilotos da época que não sabiam “mais que esperar o meo dia” para estimar a latitude. De seguida, explica finalmente a dúvida de Martim Afonso usando os princípios “tirados da sciencia dos triãgulos spheraes”. Não me irei deter sobre esta questão, uma vez que acaba por ser um simples exercício matemático cujo propósito acaba por ser a chamada de atenção para os métodos de obter alturas extra-meridianas83.

Chegado ao final da sua exposição, Nunes avisa que fica uma coisa ainda por esclarecer. Reclama uma diferença entre o valor medido por Martim Afonso para o azimute de nascimento do Sol, “estando [o navegador] em .xxxv. graos da banda do sul” 84 (onde obteve sueste quarta de leste, que corresponde a 123º45’) e as suas conclusões teóricas para o mesmo valor (“sueste quasi quarta e mea de leste” que corresponderá a cerca de 119º). Esta nota indica que o navegador já se preocupava com a medição de amplitudes ortivas, o que não era comum na época mas também reflecte perfeitamente as linhas de orientação do programa de Nunes. O cosmógrafo faz passar a ideia de que, sem sair do seu gabinete e usando somente ferramentas matemáticas, foi possível confrontar as medições a bordo com as suas próprias limitações, estabelecendo assim uma superioridade da demonstração matemática em relação à observação. Revela também a necessidade de se

83 García Franco é de opinião que “(…) en Pedro Nuñez – pronto seguido de otros autores

peninsulares y extranjeros – encontramos la iniciación de los métodos basados en observaciones extrameridianas de los astros. Mas comprendiendo que los métodos trigonométricos no estaban al alcance de los navegantes, resuelve el problema empleando pomas o esferas. (…) Shoneri, en la edición del Scripta clarissimi mathema, de Monte Regio, cree que este lo empleó cuando la aparición del cometa de 1472. Pêro la forma prática de resolucíon es debida a Nuñez, indudablemente”. Salvador García Franco, Historia del Arte y Ciência de Navegar. Desenvolvimento histórico de “Los cuatro términos” de la navegacíon, Tomo I, (Madrid: Instituto Histórico de Marina, 1947), p. 182. Provavelmente a ideia dos métodos de alturas extra-meridianas não seria original do cosmógrafo de D. João III. Este era um tópico que ocupara anteriormente os cosmógrafos ibéricos principalmente a partir da preparação da expedição de Magalhães.

adequarem os processos e técnicas a esta nova realidade e de se introduzirem algumas melhorias nos instrumentos que eram usados.

Documentos relacionados