• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II: OS PRINCÍPIOS DO CONTEXTO

2. O PRINCÍPIO DO CONTEXTO COMO UMA TESE SOBRE A REFERÊNCIA

2.2. O PRINCÍPIO DO CONTEXTO COMO UMA TESE SOBRE A REFERÊNCIA E A NOÇÃO

Numa curta passagem de The Interpretation Of Frege’s Philosophy, Dummett descreve as relações entre o princípio do contexto como uma tese sobre a

referência e sua concepção de valor semântico. 197 Ele inicia o trecho

perguntando se o princípio do contexto como uma tese sobre a referência é incompatível com sua concepção de valor semântico. Para ter um exemplo por meio do qual pudesse expor sua posição, ele supõe que, ao interpretar uma

linguagem formal, postulamos que a constante primitiva “0” denota o número

zero. O trecho continua assim:

Nada é pressuposto, por isso, sobre como deveríamos explicar o que está envolvido em considerar um símbolo como denotando esse número; presume-se que se sabe o que é assim considerá-lo. ConR [O princípio do contexto como uma tese sobre a referência] aplicado a este caso, toma como uma hipótese que encontramos algum modo de fixar os sentidos de todas as frases nas quais “o número zero” ocorre, e então, tendo em vista que esta expressão se comporta logicamente como um termo singular, nos licencia a considerá-la como tendo uma referência. [...]. A estipulação do valor semântico de “0” permanece neutra quanto às explicações do que é para um símbolo ter uma dada referência. Sustentar que as referências dos símbolos que compõem uma fórmula, em conjunto, determinam seu valor de verdade não diz nada sobre o que ter uma referência envolve, e é, portanto, compatível com Conr e com sua negação. 198

Todo o trecho é construído para destacar que, seja qual for o valor semântico que adotarmos para as expressões logicamente relevantes de dada linguagem, isso não terá implicações para o modo como deveríamos entender a relação de referência. Não teria implicações porque a concepção de Dummett de valor semântico seria neutra no que diz respeito ao modo como deveríamos entender a relação de referência. Em miúdos, uma vez definido valor semântico como aquela característica de uma expressão da qual depende a verdade ou não-verdade de qualquer frase na qual a expressão ocorra, nada se seguiria sobre como deveríamos explicar a relação das expressões com essa característica, com seu valor semântico. Por exemplo, se adotarmos como valor semântico do termo “0” um objeto matemático que existe atemporamente e que pode ter propriedades epistemicamente inacessíveis para nós; ou se adotarmos a concepção segundo a qual o valor semântico de “0” é um conjunto de sentidos equivalentes, nada seria prejulgado por essas estipulações sobre como

197 The Interpretation, p. 549-50. 198 The Interpretation, p. 549-50.

deveríamos explicar a relação de “0” com seu valor semântico. Isto é, considerações sobre a natureza do referente não afetariam como a relação de referência deve ser explicada, desde que o referente seja o valor semântico da expressão.

O trecho pôde ser assim redigido, a fim de responder à questão sobre se

a noção de valor semântico é incompatível com “ConR”, porque Dummett

entende como essencial ao princípio do contexto como uma tese sobre a referência que ele forneça uma resposta a esta outra questão: o que é para um

sinal denotar certa entidade? 199 Ou, em uma recente formulação de Linnebo: “o

que torna o caso que um objeto sintático ‘morto’ – alguma marca de tinta sobre o papel (...) – ‘alcance’ algum referente com o qual o termo singular não mantém

nenhuma conexão intrínseca?”. 200 Uma instância dessa pergunta é, por

exemplo: o que é para a expressão “Monte Everest” ter determinada montanha como seu referente, em que consiste a relação entre essa expressão e essa montanha? Segundo Dummett, o princípio como uma tese sobre a referência estabelece que para uma expressão manter com certa entidade uma relação de referência é, para a primeira, ocorrer em frases com um sentido determinado.

201Em sintonia com o princípio do contexto, não seria em decorrência de nosso

uso de um termo singular em frases com um sentido determinado que chegaríamos a referir a objetos, pois, referir a um objeto e usar um termo que o

nomeia em frases com sentido seria uma e a mesma coisa. 202

Embora o princípio do contexto seja neutro em relação à noção dummetiana de valor semântico, a relação de referência será pensada de modo distinto pelo realista e pelo antirrealista. Certo tipo de antirrealista, por exemplo, não aceitará que termos para os quais não temos método efetivo de identificar o

199 Há uma intrigante semelhança entre as explicações de “denotar”, ou “referir”, e do predicado “é verdadeiro”. Sobre essa semelhança Cf. Origins Of Analytical Philosophy, p.19-20. Cf. também F:POM, p. 195.

200 Frege's Context Principle and Reference to Natural Numbers, p. 14.

201 A qualificação “determinado” posposta ao termo “sentido”, nesse período, merece uma nota. Para Dummett, dizer que um sentido é determinado, não o contrário de dizer que ele é vago. Vagueza e indeterminação são, para ele, fenômenos distintos. Um conceito é vago quando há pelo menos um objeto do qual faz sentido perguntar se ele cai ou não sob aquele conceito, mas para a qual não há resposta – e se há, ela não é a única admissível. Um conceito é indeterminado em relação a um objeto se a pergunta sobre se esse objeto cai ou não sob esse conceito nem mesmo surge. Exemplos: o conceito “ser azul” é indeterminado para o número 2; o conceito “ser um monte” é vago para sete grãos de arroz. Cf. F:POL, p. 647, e The logical Basis, p. 326. 202 The Interpretation, p. 141-142.

seu referente tenham referência. Não aceitará que possa haver uma relação de referência entre certas expressões e certas entidades nas quais o realista acredita. Um extremado antirrealista sobre o passado, por exemplo, pode não admitir que os termos para entidades de um passado muito remoto refiram. Mas o desacordo entre realista e antirrealista nesse caso não é sobre a correção ou não do princípio do contexto sobre a referência, em vez disso, é um desacordo sobre os sentidos dos enunciados nos quais ocorrem tais expressões. Dummett é enfático quando diz que o princípio do contexto sobre a referência pressupõe, para sua aplicação, que o sentido dos enunciados já tenha sido estabelecido. O desacordo entre realistas e antirrealistas sobre quais entidades referem está, pois, no nível do sentido.

CAPÍTULO III: REALISMO E PRINCÍPIO DO CONTEXTO