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Princípio da não-intervenção ou da liberdade no Direito de Família

O princípio da não-intervenção ou da liberdade no âmbito do Direito de Família está consagrado no art. 1.51395, do Código Civil de 2002. Tal princípio está intimamente ligado com o princípio da autonomia privada, também presente nas relações familiares.

A autonomia privada objetiva a concepção do ser humano como agente moral, dotado de razão, com capacidade de decidir o que é bom ou ruim para si, com liberdade de fazer escolhas, desde que estas não perturbem os direitos de terceiros, nem violem outros valores relevantes para a comunidade.96

No que tange às relações de Direito de Família, admite-se a intervenção do Estado a fim de que este promova o acesso e exercício dos direitos fundamentais garantidos pela Carta Magna de 1988, tais como a liberdade, a igualdade e a dignidade da pessoa humana, como, também, permita ao indivíduo o exercício da autonomia da vontade.

Contudo, tal intervenção estatal restringe-se às hipóteses elencadas no parágrafo acima, não se admitindo que a mesma ultrapasse esses limites.97

Ademais, verifica-se a aplicação do referido princípio no Código Civil de 2002, no disposto no art. 1.51398, o qual corrobora com a questão da não intervenção estatal na vida familiar.

Nesse sentido, prevalece como regra geral nas relações de cunho familiar a autonomia privada, a qual permite que o indivíduo atue de forma livre, razão pela qual somente se admite a intervenção do Estado como forma de garantir os direitos fundamentais ameaçados.99

95 Art. 1.513. É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família. BRASIL, 2002.

96

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005; SARLET, 2007.

97 FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011. p. 111. 98

Art. 1.513. É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família. BRASIL, 2002.

Assim, tal vedação da intervenção estatal de forma abusiva pode ser verificada em doutrinas e jurisprudências dos Tribunais de Justiça brasileiros100, evitando que o Estado interfira no poder que o indivíduo possui de gerenciar a própria vida, bem como as escolhas que faz, de forma que não viole a intimidade pessoal e a dignidade humana.

O Direito de Família brasileiro nem mesmo sob a máscara de função social da propriedade admite a intervenção estatal desarrazoada na vida privada, sob pena de violação da dignidade da pessoa humana. No mais os princípios constitucionais possuem função de revelar e unificar o Ordenamento Jurídico, não permitindo afronta por normas infraconstitucionais. Assim, fazer da culpa a fênix que surge das cinzas pelo Usucapião dito pró-Família ofende a ordem constitucional posta, a qual é baseada na afetividade e não mais no patrimônio ou na tutela da moral.101

Ainda, vale ressaltar que o princípio da autonomia e da menor intervenção estatal é a consideração de uma das cruciais questões da contemporaneidade, qual seja, o limite do público e do privado. O público e o privado são a dicotomia que permite pensar no espaço da vida privada em confronto com normas/regras de interesse público. A intervenção em excesso na vida privada está na contramão do discurso psicanalítico em que todo sujeito deve se responsabilizar pelos seus atos.102

Portanto, vislumbra-se que a intervenção do Estado na vida privada do indivíduo, em especial nas relações familiares, deve ser de forma proporcional e limitada, na medida em que garanta às pessoas o exercício de direitos fundamentais e a autonomia de vontade das mesmas, bem como, o direito de gerenciar as próprias vidas e fazer suas próprias escolhas.

Analisados os princípios gerais que norteiam o instituto da usucapião e as relações familiares, conclui-se que as modificações sociais, culturais e tecnológicas refletiram diretamente na legislação brasileira, em especial, nos direitos sociais e garantias fundamentais

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Os arranjos familiares, concernentes à intimidade e à vida privada do casal, não devem ser esquadrinhados pelo direito, em hipóteses não contempladas pelas exceções legais, o que violaria direitos fundamentais enfeixados no art. 5º, inc. X, da CF/88 – o direito à reserva da intimidade assim como o da vida privada –, no intuito de impedir que se torne de conhecimento geral a esfera mais interna, de âmbito intangível da liberdade humana, nesta delicada área de manifestação existencial do ser humano. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de instrumento n.991090460740, de 10 de fev. de 2010. Des. Relator: José Marcos Marrone. São Paulo: Tribunal de Justiça, 2010.

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SILVA, 2012.

102 CUNHA, Rodrigo da. Uma principiologia para o Direito de Família. Disponível em: <www.rodrigodacunha.adv.br/rdc/?p=617>. Acesso em: 10 de ago. 2013.

conferidos ao cidadão, tendo como reflexo principal a busca da concretização do princípio da dignidade humana, da igualdade entre as pessoas e do bem-estar social.

Tal estudo principiológico auxiliará na compreensão do objeto principal do presente trabalho, qual seja a nova modalidade de usucapião, denominada de usucapião por abandono do lar conjugal, prevista no art. 1.240-A103, do Código Civil de 2002. A nova modalidade de usucapião trouxe diversos questionamentos acerca da constitucionalidade deste, bem como da aplicação do mesmo no âmbito do Direito Civil brasileiro, razão pela qual será analisada a origem, os requisitos de aplicabilidade e, em especial, a violação dos princípios da segurança jurídica, da igualdade e do retrocesso social e os reflexos no Direito de Família brasileiro.

103 Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 02 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011). § 1º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 2º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011). BRASIL, 2002.

3 DA USUCAPIÃO POR ABANDONO DO LAR CONJUGAL

Conforme analisado no capítulo anterior, a Constituição Federal de 1988 tem como escopo a busca da concretização do princípio da dignidade humana, da igualdade entre as pessoas e a satisfação do bem-estar social, razão pela qual se exige do legislador obediência a tais valores fundamentais e direitos sociais.

Assim, pode-se afirmar que a busca da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, colocou a pessoa humana no vértice do ordenamento jurídico brasileiro, de modo que tal é o valor que conforma todos os ramos do Direito.1 Nesse sentido, a proteção de um patrimônio mínimo põe em primeiro plano a pessoa e as necessidades fundamentais desta.2

Então, uma das mais relevantes formas de assegurar a estabilidade e a ordem social é por meio do instituto da usucapião, que possibilita o acesso à terra e proporciona ao cidadão, com condições sociais e econômicas mínimas, a chance de progredir e contribuir para o desenvolvimento social.3

Nessa vertente, a propriedade começou a ser tratada em face da função social da mesma, razão pela qual o legislador precisou enfatizar o direito à moradia, especialmente, no que tange à realização de obras ou serviços com caráter produtivo, para fins de aquisição de bens por meio da usucapião.4

Com base nisso, o Estado implanta projetos que buscam a satisfação do bem comum e dos direitos sociais, em especial o direito à moradia. Neste sentido, a União Federal criou o “Programa Minha Casa, Minha Vida”5

.6

O referido Programa é normatizado pela Lei nº 12.424, de 16 de junho de 2011, que trouxe consigo a alteração no Código Civil brasileiro, uma vez que implementou uma nova modalidade de usucapião7.8

1 MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um Direito Civil Constitucional. Revista de Direito Civil, São Paulo, n. 65. p. 21-32, jul./set. 1993.

2 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico de patrimônio mínimo. Rio de Janeiro. Renovar, 2001. p. 41. 3

SOARES. Rafael Machado. Direitos Fundamentais e expectativas normativas: o caso da função social da propriedade. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2012.

4 VICOLA, Nivaldo Sebastião. Revista FMU Direito, São Paulo, ano 25, n. 36, p.99-107, 2011. ISSN: 2316- 1515.

5

O “Programa Minha Casa, Minha Vida” tem por finalidade instituir mecanismo de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até R$4.650,00 (quatro mil e seiscentos e cinquenta reais). VILARDO, Maria Aglaé Tedesco. Usucapião Especial e Abandono do Lar – Usucapião entre Ex-Casal. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFam, n. 27, p. 46, abr./maio 2012.

Tal alteração acrescentou no Código Civil brasileiro o art. 1.240-A9, que refletiu em diversas áreas do Direito, especialmente na área cível, uma vez que representa mais uma forma de aquisição de propriedade, e, também, na área do Direito de Família, já que abarca a relação marital e a dissolução da mesma.10

Depreende-se que a nova lei tem por objetivo assegurar e facilitar a propriedade do imóvel residencial àquelas famílias de baixa renda, visando garantir o patrimônio mínimo e as necessidades básicas das pessoas.11 Da mesma forma, verifica-se que tal inovação decorre do princípio constitucional da função social da propriedade, como também, do direito social à moradia, anteriormente analisados.

Entretanto, a nova modalidade de usucapião deu margem a uma série de questionamentos, discussões polêmicas e dúvidas quanto à efetiva aplicação da lei e a interpretação da mesma.

Desta forma, analisar-se-á os requisitos gerais exigidos para a incidência da usucapião conjugal, bem como as violações ao texto constitucional e as repercussões geradas no ordenamento jurídico, em especial no Direito de Família brasileiro.