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2 “SPIE” METODOLÓGICO

3 A INTELECÇÃO PARADIGMÁTICA NA ARQUIVOLOGIA: um diálogo entre o clássico e o contemporâneo

3.1 O Princípio da proveniência

Adentrando no universo prático e descritivo, alguns conceitos e princípios foram criados para tentar extrair a Arquivologia do senso comum. Sendo assim, a evolução da Arquivologia no que diz respeito aos seus fundamentos mais específicos, trouxe a ideia basilar de uma teoria, ou seja, de modelos que seriam a edificação de uma estrutura ou método científico aparecendo como base, “a metodologia arquivística se fundamenta em princípios básicos, como o da proveniência e da ordem original, formulados no final do século XIX” (CARMONA, 2004, p. 36).

De igual modo, o princípio da proveniência22 é posto na literatura como uma lei que rege e fundamenta as intervenções teóricas da Arquivologia, alicerçando as operações teóricas da arquivística. Essas sistematizações da proveniência e de seus fundos foram sendo apontadas como pilares epistemológicos no cotidiano das práticas arquivísticas, “o que chamamos de proveniência [...] deve ser a base de toda classificação bem entendida” (MARTÍN-POZUELO, 1996 apud FERREIRA, 2012, p. 29).

Segundo Bellotto (2004), o princípio da proveniência constitui a pedra angular da ciência arquivística, na medida em que essa proveniência define a posição do

22 O princípio da proveniência é a base teórica, a lei que rege todas as intervenções

arquivísticas. O respeito deste princípio, na organização e no tratamento dos arquivos qualquer que seja sua origem, idade, natureza ou suporte, garante a constituição e a plena existência da unidade de base arquivística, a saber, o fundo de arquivo. O princípio da proveniência e o seu resultado, o fundo de arquivo, impõem-se à arquivística, uma vez que esta tem por objetivo gerir o conjunto das informações geradas por um organismo ou por uma pessoa no âmbito das atividades ligadas a missão, ao mandato e ao funcionamento do dito organismo ou ao funcionamento e à vida da referida pessoa. Pense-se na criação, avaliação, aquisição, classificação, descrição, comunicação ou na conservação dos arquivos: todas as intervenções do arquivista devem ocorrer sob o signo do princípio da proveniência e, a partida, do reconhecimento do fundo de arquivo como unidade central das operações arquivistas. (ROSSEAU; COUTURE, 1998, p. 79, grifo nosso).

documento no seu fundo. A autora é enfática ao afirmar e relacionar a Arquivologia

como uma ciência, porém, não podemos comungar de tais afirmações, porque a Arquivologia necessita de metodologias e epistemologias coesas que fortaleçam o campo. Para que isso aconteça de fato, a Arquivologia teria que sair do rol de dependência administrativa e pragmatista que ao longo de sua história está atrelada através de princípios e fundamentos como o da proveniência:

[...] reunir os documentos por fundos, isto é, reunir todos os títulos (todos os documentos) provindos de uma corporação, instituição, família ou indivíduo, e dispor em determinada ordem os diferentes fundos. Documentos que apenas se refiram a uma instituição, corporação ou família não devem ser confundidos com o fundo dessa instituição, dessa corporação ou dessa família. (DUCHEIN, 1982, 1986, p.16).

Na contramão a este entendimento defendemos que essa “pedra angular da ciência arquivística”, ou seja, o princípio da proveniência, não pode ser diagnosticado como base teórica, uma vez que como não foi pensado para beneficiar a Arquivologia e sua essencialidade enquanto campo do conhecimento científico, mas sim as instituições administrativas com um olhar organizacional, “a aproximação do enunciado teórico do princípio de proveniência deu-se em torno de 6 de abril de 1819, o que mais tarde viria a ser a nova teoria sobre a organização e ordem interna dos arquivos”. (MARTÍN-POZUELO, 1996, apud FERREIRA, 2012, p.22).

Além do mais, seria complicado afirmar que esse princípio seria o precursor de uma ciência, pois o que vai caracterizar uma ciência é a sua maneira de lidar com os problemas e de solucioná-los de forma enfática dentro e fora de seu campo de atuação, então, o princípio da proveniência se apresenta mais como um modelo que separa “criador e criatura” no interior dos arquivos, que uma base teórica enquanto tal.

Por proveniência, portanto, se entende toda coleção existente ou que existe [a] para formar um arquivo, e na qual se compreendem os documentos cujos assuntos participem da mesma unidade, ou que podem interessar a um estabelecimento, corporação ou família mais imediatamente. (MARTÍN-POZUELO 1996 apud FERREIRA, 2012, p. 27).

Para Silva et al. (2009), sem uma terminologia de arquivo perfeitamente estruturada e sistematizada não é possível caminhar com segurança para uma arquivística com respaldo científico. Logo, pensar o princípio que ficou na página anterior como o caminho à cientificidade da Arquivologia é, no mínimo, contraditório e complexo.

Para Rosseau e Couture (1998, p. 52):

O princípio consiste em deixar agrupados, sem misturar com outros, os arquivos, provenientes de uma administração, de um estabelecimento ou de uma pessoa física ou moral. O conteúdo de uma circular que promulga que daí em diante os documentos que provenham de um corpo, de um estabelecimento, de uma família ou de um indivíduo deverão ser agrupados e não misturados com aqueles que apenas dizem respeito a um corpo de ou uma família.

Esse método logrou o aval em muitos países, visto que o processo organizativo da documentação administrativa ganharia a utilização desse princípio como critério de ordem interna, com a premissa de separar e não misturar os documentos. Nesse caso, o princípio da proveniência atravessou as barreiras de territorialidades, aplicando-se às instituições e aos diferentes profissionais arquivísticos de países como a França que começou a utilizá-lo.

Nesse sentido, Fonseca (2005, p. 43) argumenta:

Assim se estabelece o principio da proveniência, que até hoje representa, apesar de algumas releituras, o paradigma da disciplina arquivística. Criam-se daí, princípios de classificação e organização próprios para os acervos arquivísticos, subordinados àquelas características inerentes aos conjuntos arquivísticos, especialmente as que se referem à organicidade e à totalidade.

Presumimos que o princípio da proveniência quando foi criado, teria que ser aplicado nas instituições que geravam os documentos, assim, esse princípio ficaria muito preso aos preceitos administrativos. Mais adiante Rousseau e Couture (1998, p. 82, grifo nosso) esclarecem que:

O princípio da proveniência, que comporta duas vertentes, define-se como; o princípio fundamental segundo o qual os arquivos de uma mesma proveniência não devem ser misturados com os de outra proveniência e devem ser conservados segundo a ordem primitiva, caso exista, ou o princípios segundo o qual cada documento deve ser colocado no fundo donde provém e, nesse fundo, no seu lugar de

origem. Tanto de um ponto de vista prático, a aplicação do princípio da proveniência garante, por um lado, a ordem estreitamente administrativa que preside à organização dos documentos nas unidades e que estes devem conservar e, por outro, o valor de testemunho que alguns deles têm. Este princípio exprime a própria essência do valor de testemunho de que falara Baldassare Bonifacio no século XVII ou da evidential volue posteriormente explicada por Sir Hilary Jenkinson, T. R. Schellenberg e muitos outros.

Diante do exposto, os autores contextualizam as variações de graus a respeito do princípio da proveniência, explicando os procedimentos adquiridos com os fundos, ou seja, as entidades distintas que produzem documentos.

No seu primeiro grau, o da proveniência leva-nos a considerar o fundo de arquivo como uma entidade distinta. Assim, é aplicado ao primeiro grau o princípio da proveniência quando se deixam juntos ou quando se agrupam, se tiverem sidos dispersos, todos os documentos de arquivo como plano do seu valor secundário. No segundo grau, o da proveniência exige que todos os documentos de um fundo de arquivo ocupem um determinado lugar que tem de ser respeitado ou restabelecido, caso, a ordem primitiva dos documentos activos e semiactivos, esta proposta parece perfeitamente natural desde que tenha sido modificada por qualquer razão. (ROSSEAU; COUTURE, 1998, p. 83).

Sendo assim, o princípio da proveniência surge como direcionador na prática organizativa da Arquivologia, essa ideia de separar quem produziu a documentação nos conduz aos processos técnicos que ainda são adotados, não apenas na Arquivologia brasileira, porém, de um modo mais amplo.

A aplicação do princípio da proveniência maximiza o processo de gestão dos arquivos. Para cada uma das funções arquivísticas, o princípio da proveniência fornece grandes eixos, um quadro geral de intervenção baseado nas características e nas atividades da pessoa moral ou física a que se refere. Além disso, o princípio da proveniência permite aplicar o princípio de universalidade, tão caro aos arquivísticas e que tem a sua aplicação prática naquilo a que se decidiu chamar a noção do geral ao particular. A aplicação do princípio da proveniência e o seu resultado, o fundo de arquivo, levam igualmente o profissional da arquivística a considerar grandes conjuntos de documentos em vez de documentos à peça. (ROSSEAU; COUTURE, 1998, p. 85).

Não podemos desconsiderar a importância do princípio da proveniência na Arquivologia, porém, esse mesmo princípio não pode assumir-se como fundamento

científico da Arquivologia, uma vez que, só deu ênfase aos meios instrumentalistas

no processo de organização de documentos nos arquivos:

O princípio de proveniência ou respeito a origem determinará a clara delimitação do fundo, como agrupamento comum e mais geral dos documentos de arquivo de qualquer instituição ou pessoa fora do qual só existirá a artificiosidade das coleções. Determinará a estrutura hierárquica de cada fundo, no qual seguiremos. Seremos obrigados, consequentemente, a manter a unidade e a independência institucional de cada fundo e buscar sua integridade intelectual. (HEREDIA HERRERA, 2003, p.6).

Assim sendo, o princípio da proveniência criado pelo historiador Natalis Wailly23 traria autonomia e independência à Arquivologia como científica? Entendemos ser problemática essa ideia, pois ocorre exatamente o contrário tornando a Arquivologia mais atada aos procedimentos administrativos e institucionais do campo como científico, “[...] hoje, o princípio da proveniência é a base para a arquivística, seja no âmbito da teoria, seja na prática” (DUCHEIN, 1982, 1986, p. 16).

Nesse sentido, a proveniência é o modo de classificação documental que ocorre no interior dos arquivos, ou seja, através de uma gestão documental que consiste na obediência direta aos fundos e as entidades produtoras que geram a documentação em duas instâncias de primeiro e segundo grau como podemos notar:

O princípio de proveniência, tanto no primeiro como no segundo grau, pode ser aplicado a priori enquanto os documentos em plena fase ativa responderem ao seu valor primário ou a posteriori, no momento em que os documentos são adquiridos pelo serviço de arquivos devido ao seu valor de testemunho. Neste último caso, o arquivista deve proceder a uma reconstituição porque os documentos foram transferidos em desordem ou porque uma ordem qualquer

23 O método de trabalho elaborado pelo historiador francês Natalis Wailly (1805-1886) e

aprovado pelo ministro da tutela T. Duchâtel revelou-se, posteriormente, muito mais do que um simples modo de fazer. Numa circular emitida a 24 de Abril de 1841, Natalis de Wailly, então chefe da divisão administrativa dos arquivos departamentais do Ministério do Interior, propunha: [...] agregar os documentos por fundos, isto é, reunir todos os títulos [documentos] provenientes de um corpo, de um estabelecimento, de uma família ou um individuo, e dispor segundo uma determinada ordem os diferentes fundos. Natalis Wailly acabava de fazer sair a arquivística da anarquia e, mais importante, instalava-a sobre uma base sólida que lhe permitiria, posteriormente, evoluir normalmente para o estatuto de uma disciplina. Aliás, é interessante verificar que os arquivistas do Estado da Prússia adotaram o Provenienzprinzip. (ROUSSEAU; COUTURE, 1998, p. 79-80).

substituiu a ordem primitiva. Quando é preciso reconstituir um ou mais fundos ou então restituir a ordem interna de um fundo, a aplicação do princípio da proveniência assume plenamente ao seu sentido oneroso, árduo e delicado, visto que se está a praticar uma arquivística de sobrevivência. (ROSSEAU; COUTURE, 1998, p. 84).

Com efeito, na literatura arquivística o princípio da proveniência aparece com uma essência metodológica que põe a arquivística num caráter científico, no entanto, a natureza proveniente de respeitar os fundos necessita de uma discussão que extrapole a necessidade organizativa do agir funcional instrumental (técnica), “[...] o princípio da proveniência é a base para a arquivística, seja no âmbito da

teoria, seja na prática”. (DUCHEIN, 1982,1986, p. 17, grifo nosso).

Por conseguinte, não negamos a relevância desse princípio para a Arquivologia, porém, é preponderante a compreensão que esses fundamentos arquivísticos foram pensados como proposta instrumentalizadora de ação imediata, ou seja, de “solução do caos” da documentação nos arquivos, em uma emergência que não beneficia a discussão teórica e epistemológica de fato, mas esbarra em um saber-fazer que beneficiará as instituições. Por isso, a teorização na Arquivologia deve ir além desses canais organizacionais que se coadunam com imediatismo, mas sim, pensar esses princípios e fundamentos de forma mais exegética.

3.2 O Princípio da ordem interna ou original e o princípio de respeito pelos