• Nenhum resultado encontrado

Princípio Sistémico – A imprescindibilidade de pensar e atuar “Glocal”

3. MACRO CONTEXTO DE NATUREZA METODOLÓGICA E CONCETUAL

4.2. Princípio Sistémico – A imprescindibilidade de pensar e atuar “Glocal”

“Considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes.”

Blaise Pascal (citado por Morin, 2003, p. 94)

O princípio sistémico poderá ser considerado quase como um “supra princípio” no paradigma da complexidade. Ele relaciona-se profundamente com vários outros princípios que serão abordados neste trabalho e permite-nos também tecer algumas ideias, que se deverão ter em atenção, quando se interpreta o jogo de futebol. Em comunhão com um outro princípio destacado por Morin (1995), o da “recursividade organizacional”, o princípio sistémico alerta- nos para os efeitos recíprocos que os elementos dos sistemas exercem uns

32

sobre os outros. Para o modo como são ao mesmo tempo influenciadores e influenciados, através de uma lógica interativa e de causalidade não linear (Morin, 2005). Assim como, da imprescindibilidade de para se conhecer o sistema na sua totalidade, ser necessário conhecer-se todos os seus subelementos (Morin, 1995).

Neste sentido, e no âmbito do futebol, se evidentemente nos deveremos preocupar com o comportamento da equipa do ponto de vista coletivo, não menos importante é perceber as interações setoriais, intersetoriais ou grupais que servirão de suporte ao plano macro da equipa. Ou seja, em alguns momentos, eventualmente, será uma adequada intervenção num aspeto micro ou meso que permitirá que a equipa, na sua globalidade, possa melhorar o seu desempenho.

Contudo, mais uma vez, lógicas aparentemente simples revestem-se de “camuflagens” de complexidade. Na medida em que nem sempre os problemas que nós delimitamos se circunscrevem àquilo que julgamos.

Tudo se relaciona com tudo, nesse sentido é fundamental entender que quando se analisa “algo” no jogo de futebol, esse “algo” emerge de um conjunto de circunstâncias e envolve consigo um agregado de relações. Não poderá ser colocado “in vitro” e analisado de modo independente do contexto que representa. Ao invés disso, deverá ser percecionado e interpretado de acordo com essa complexidade. Não se deve desprezar as interações.

Poderá parecer um tema fora do contexto, mas os transplantes são um exemplo daquilo que tentamos evidenciar. Por vezes, um indivíduo que sofre de disfunções hepáticas é sujeito a um transplante de fígado na perspetiva de vir a melhorar a sua saúde. Ou seja, ele muda uma parte “má” do seu corpo para uma considerada melhor. Contudo, por vezes, surge um fenómeno vulgarmente designado de “rejeição”. Isto acontece porque o órgão novo (a parte) não consegue interagir corretamente com o organismo e os seus elementos. Ocorre quando o “sistema imunológico do recetor, responsável por combater as

33

ameaças externas, não reconhece o novo tecido e passa a produzir anticorpos contra ele”.5

Portanto, o que parece linear, na maior parte das vezes não o é. Seria de supor que um órgão novo trouxesse apenas consequências positivas para quem o recebe. Contudo, ele vai ser incorporado num determinado organismo, com uma história e configuração próprias, tendo que se relacionar com outros componentes.

Neste sentido, é cada vez mais imprescindível lidar com sistemas complexos como as equipas de futebol, pensando globalmente e atuando localmente (Garganta, 2014).

“Para pensar localizadamente, é preciso pensar globalmente, como para pensar globalmente é preciso pensar localizadamente” (Morin, 2003, p. 25)

Caso isto não aconteça, e as interações também não sejam devidamente valorizadas, poderemos hipotecar tudo o resto. Tal como na Medicina, é necessário avaliar as “compatibilidades”.

Assim sendo, para melhor entender o comportamento coletivo é necessário perceber “como” e “com quem” se estabelecem as relações e dinâmicas nas diferentes escalas da equipa. Uma simples alteração de um elemento basta para que surjam novas nuances na forma como esta concretiza os seus princípios.

Nesta lógica, o treinador Rui Vitória quando questionado, num programa desportivo,6 acerca do menor desempenho da sua equipa (na altura Vitória S.C.) numa determinada altura do campeonato, diz o seguinte:

“A saída do Hernâni para o F.C. Porto em Janeiro trouxe-nos alguns problemas. A equipa ressentiu-se. Ele era um jogador muito importante na nossa

5http://saude.ig.com.br/transplantes/ consultado a 20/05/15 6http://www.rtp.pt/play/p1733/e196382/grande-area - Minuto 53

34

equipa. Não tínhamos ninguém com as mesmas características dele, permitia- nos facilmente ganhar muita profundidade, com e sem bola. Permitia-nos passar com facilidade de um momento de organização defensiva para uma situação (ofensiva) de perigo na baliza do adversário, devido à sua velocidade. O que obrigava as equipas contrárias a defender a 10/15 metros atrás, num bloco mais baixo, sob pena de a qualquer momento poderem ser surpreendidas com uma bola nas costas. No entanto, com a sua saída, isto alterou-se. As equipas subiam mais no terreno e os nossos médios tinham mais dificuldades a construir o jogo, o que nos causou dificuldades. Há peças que são um bocado mais importantes que outras...”

Ainda neste âmbito, consideramos também relevante trazer um problema colocado, a determinada altura, pelo treinador principal do Clube Desportivo das Aves:

“Abel, os nossos médios-centros não estão a conseguir jogar para a frente, preciso que cortes alguns momentos que sejam representativos disso mesmo.”

Nesta citação temos, na nossa opinião, uma situação que é exemplificadora de um problema que tem implicações coletivas, ou seja, no todo. No entanto, temos eventualmente de o perspetivar numa escala menor para o conseguir entender e tratar da melhor forma. Contemplando as partes e as relações que elas estabelecem entre si. Ou seja, diminuir a “graduação da lupa”, mas manter as “lentes da complexidade”.

Neste caso, estávamos perante uma situação na qual os nossos médios- centro apresentavam dificuldades para conseguir identificar e explorar os espaços na profundidade (por exemplo, entre a linha média e defensiva adversária). Num primeiro olhar percebemos que esses jogadores não conseguiam fazer passes verticais com a densidade e qualidade desejadas. Não conseguiam jogar para a frente com regularidade.

35

Assim, fomos investigar o problema e, de facto, encontrámos alguns aspetos (além de outros de natureza técnica) que estavam, eventualmente, a potenciá-lo. Por exemplo, o jogo posicional dos médios-centro não estava a ser o mais adequado. Esse e outros aspetos, estavam a impedir que estes jogadores orientassem o jogo para a frente e tornassem a nossa circulação mais vertical, tornando-a excessivamente horizontal e inconsequente (sendo que, numa fase posterior do trabalho, retomaremos este assunto com maior detalhe).

No entanto, ao longo da nossa investigação neste problema, fomo-nos apercebendo que este, também estava a ser agravado pelo modo como os nossos avançados estavam a interagir. Ou seja, algo que não dizia propriamente respeito aos médios-centro, estava a influenciar o modo como estes atuavam. O problema não estava exclusivamente no nosso setor intermédio, mas também na forma como os avançados se relacionavam com ele. Neste caso, os nossos avançados estavam com dificuldades a interpretar o jogo de acordo com os nossos princípios. Eventualmente, estavam a realizar ações que estavam muito relacionadas com hábitos que traziam de contextos anteriores.

Um dos aspetos pretendidos para os avançados, era que mantivessem um jogo posicional, no qual estivessem alternadamente disponíveis para jogar em apoio e em profundidade, entre outras razões, para criarem incerteza no adversário. De forma a cumprir este princípio, desejávamos que, em alguns momentos, um deles baixasse ligeiramente e procurasse espaços entrelinhas, por exemplo. Ambicionávamos que pudesse servir como apoio frontal para a progressão vertical da bola. Para depois, nessas circunstâncias, realizarmos situações de “3º homem”, através da aproximação do médio-ala ou do médio- centro. A nossa intenção seria colocar, à posteriori, esses jogadores com bola controlada, enquadrados para a linha defensiva do adversário. Por outro lado, nos movimentos de ataque à profundidade, por exemplo, pretendíamos que o outro avançado explorasse os espaços nas costas da linha defensiva, assim como que arrastasse os centrais, para criar mais espaço entrelinhas que pudesse ser explorado pelo outro avançado.

36

Contudo, como as vivências que eles tinham de contextos anteriores eram diferentes ainda manifestavam, em vários momentos, comportamentos como consequência dessas rotinas. Procurando, permanentemente, espaços na profundidade e ao mesmo tempo, o que não nos permitia progredir eficientemente, pela incorreta ocupação dos espaços entrelinhas. Consequentemente, faltavam linhas de passe viáveis para os nossos médios- centro, sobretudo em zonas interiores e criando um fosso enorme entre os jogadores (conforme demonstra a Figura 1).

Figura 1 – Má ocupação de espaços interiores

Este jogo posicional, impedia-nos de progredir verticalmente de um modo eficaz, de explorar devidamente esses espaços e assim inibindo a equipa de interagir e desenvolver o jogo pelo corredor central do modo pretendido (conforme demonstra a Figura 2).

37

Figura 2 - Gráfico de redes onde fica evidente a pouca interação entre os médios-centro e os avançados

Este problema era apenas minimizado nos momentos em que, um dos nossos médios-ala, com mais capacidade para jogar por dentro surgia nesses espaços interiores, criando uma possibilidade de progressão.

Em suma, com esta lógica pretendemos evidenciar uma vez mais o modo como tudo se relaciona com tudo no jogo de futebol. Pelo que, na maior parte das vezes os problemas que identificamos são mais complexos que aquilo que esperaríamos. Tudo funciona em interação e em rede.

38