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Princípios aplicáveis ao conflito aparente de normas

3.5 CONFLITO APARENTE DE NORMAS

3.5.1 Princípios aplicáveis ao conflito aparente de normas

Tendo em vista que já foram citados os conflitos aparentes de norma do tema abordado, nos resta demonstrar nos próximos parágrafos o rol de princípios existentes para a dissolução destas antinomias: o princípio da especialidade, da subsidiariedade, da consunção e da alternatividade. (MIRABETE, 2010, p. 106).

a) Princípio da especialidade

Damásio preleciona que uma norma é especial quando elenca todos os elementos do tipo de uma norma geral e ainda acrescenta outros (de natureza objetiva ou subjetiva), especializando e consequentemente aumentando a severidade desta. (JESUS, 2012, p.152).

Prossegue o autor a respeito da desnecessidade de confronto concreto entre as leis do conflito aparente de normas: “[...] a prevalência da norma especial sobre a geral se estabelece in abstracto, pela comparação das definições abstratas contidas nas normas.” (JESUS, 2012 p. 150).

E sentencia:

Dessa forma, se a lei especial, incriminando certos fatos, ou considerando determinadas figuras típicas sob ângulo diferente, ditar preceitos particulares para a sua própria aplicação, em contraposição às normas do Código, o conflito apenas aparente de normas será resolvido pelo princípio da especialidade. (JESUS, 2012, p. 152).

Este princípio se difere dos seguintes por estabelecer um confronto em abstrato das leis, enquanto os outros dependem de uma comparação em concreto das normas definidoras de um mesmo fato. (JESUS, 2009, p. 108-109)

b) Princípio da subsidiariedade

Damásio prevê que no princípio da subsidiariedade ocorre a absorção da lei de menor gravidade pela lei de maior gravidade. O autor subdivide este princípio em subsidiariedade expressa ou subsidiariedade implícita (a norma não vincula seu uso à inexistência da infração principal). (JESUS, 2012, p. 152-153).

Desta forma, “ocorre a subsidiariedade expressa (ou explícita) quando a norma, em seu próprio texto, subordina a sua aplicação à não-aplicação de outra, de maior gravidade punitiva”. E então, “há subsidiariedade implícita (ou tácita) quando uma figura típica funciona como elementar ou circunstância legal específica de outra, de maior gravidade punitiva, de forma que esta exclui a simultânea punição da primeira: ubi major minor cessat”. (JESUS, 2012, p. 153-154).

c) Princípio da consunção

Mirabete sintetiza este princípio dizendo que “[...] consiste na anulação da norma que já está contida em outra; ou seja, na aplicação da lei de âmbito maior, mais gravemente apenada, desprezando-se a outra, de âmbito menor.” (MIRABETE, 2010, p. 107).

Reitera Fernando Capez que “há uma regra que auxilia na aplicação do princípio da consunção, segundo a qual, quando os crimes são cometidos no mesmo contexto fático, opera- se a absorção do menos grave pelo de maior gravidade.” (CAPEZ, 2012, p. 98).

Colhe-se jurisprudência que exemplifica o princípio da consunção:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO E USO DE DOCUMENTO FALSO. ARTS. 297, CAPUT E 304 DO CÓDIGO PENAL. CONFECÇÃO DE CERTIDÕES NEGATIVAS DE DÉBITO DO INSS CONTRAFEITAS PARA SEU SUBSEQUENTE USO EM LICITAÇÕES. MATERIALIDADE DOS DELITOS COMPROVADA. AUTORIA DA CONTRAFAÇÃO PELO RESPONSÁVEL CONTÁBIL DA EMPRESA E PELO REPRESENTANTE LEGAL DESTA. CRIME DE USO PRATICADO, PORÉM, APENAS POR ESTE ÚLTIMO.CONDENAÇÃO DO PRIMEIRO PELO CRIME DO ART. 297 DO CP, E DO SEGUNDO PELO ART. 304 DO CP.INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. ABSORÇÃO DO CRIME-MEIO (FALSO) PELO CRIME-FIM (USO DE DOCUMENTO FALSO) PELO REPRESENTANTE DA EMPRESA. PRECEDENTES. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Quando a falsificação do documento é apenas meio ou fase necessária para a sonegação fiscal, não configurando crime autônomo, aplica-se o princípio da consunção. (PARANÁ, 2013).

Pode-se então notar que este princípio é aplicado pela jurisprudência no crime de falsificação (artigo 297 do CP) seguida do uso do documento (artigo 304 do CP).

d) Princípio da alternatividade

O princípio da alternatividade é, para alguns autores, a quarta opção existente para dirimir um conflito aparente de normas. Para Capez, “a alternatividade nada mais representa do que a aplicação do princípio da consunção, com um nome diferente”. (CAPEZ, 2012, p. 100).

Todavia, Damásio explica que neste princípio “[...] a norma penal que prevê vários fatos alternativamente, como modalidades de um mesmo crime, só é aplicável uma vez, ainda quando os ditos fatos são praticados, pelo mesmo sujeito, sucessivamente.” (JESUS, 2009).

Capez esclarece ainda que o princípio da alternatividade está relacionado aos “[...]chamados tipos mistos alternativos, os quais descrevem crimes de ação múltipla ou de conteúdo variado.” (CAPEZ, 2012, p. 99).

3.6 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA

Conforme estudado na última seção, é fundamental que para a consumação do delito haja dolo. O autor da falsificação ideológica deve então agir com o intuito de criar obrigação, inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, omitir declaração que devia constar no documento, ou alterar verdade sobre fato juridicamente pertinente. (GRECO, 2016, p. 607).

Existem duas modalidades de falsidade ideológica para Greco, sendo que a primeira é consumada “[...]quando da confecção do documento, público ou particular, sem a declaração que dele devia constar, em virtude da omissão dolosa do agente.” Para a consumação da segunda modalidade, o agente deve inserir ou fazer inserir, “[...] em documento público ou particular, declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita.” (GRECO, 2016, p. 607).

Quanto à tentativa, há conceituação doutrinária no sentido de que só é admitida na modalidade de inserir ou fazer inserir. Detentor deste ponto de vista, o autor Andreucci reforça que “admite-se tentativa apenas nos casos de inserção ou induzimento à inserção. Na conduta omissiva não se admite a tentativa, pois se trata de crime omissivo próprio”. (ANDREUCCI, 2013, p. 474).

Prado corrobora com o entendimento de Andreucci a respeito da modalidade omissiva:

A tentativa, na forma omissiva, é inadmissível, porquanto se trata de delito omissivo próprio. Destarte, ou o agente deixa de incluir a afirmação verdadeira exigível quando deveria consigná-la, e já estará consumado o delito, ou ainda pode fazê-la e não se cogita de tentativa. (PRADO, 2008, p. 338).

No entanto, defende que a tentativa só é admitida na forma comissiva sob a modalidade de fazer inserir, e explicita:

[...] na modalidade de inserir, tratando-se de falsidade imediata, como o agente é o autor direto do documento, enquanto não completado e aperfeiçoado este, poderá ele retirar o conteúdo mendaz ou retificá-lo a fim de restabelecer a verdade, e não terá havido tentativa. Realmente, nesta última hipótese poderia haver, quando muito, a

figura da desistência voluntária ou do arrependimento eficaz, que constituem causas pessoais de exclusão de pena, e não chegam a constituir tentativa punível, nos termos do artigo 15 do Código Penal. (PRADO, 2008, p. 339).

Entende-se, portanto, que para haver consumação do delito, o agente deve atuar com a intenção de contrafazer fato juridicamente relevante, lesar direito ou gerar obrigação. Quanto à tentativa, ocorre na modalidade comissiva do crime, apesar de haver entendimento no sentido de que só existe dentro desta modalidade sob a forma de “fazer inserir.”

3.7 CLASSIFICAÇÃO JURÍDICA

Da mesma forma que se estudou a classificação jurídica do crime de falsidade material do capítulo antecedente, dar-se-á ensejo à análise da falsidade ideológica nos parágrafos que seguem, com o intuito de posteriormente diferenciar os dois institutos.

Trata-se, portanto, de “crime comum, tanto no que diz respeito ao sujeito ativo quanto ao sujeito passivo; doloso (não havendo previsão para a modalidade de natureza culposa); comissivo e omissivo próprio (podendo, também, nos termos do art. 13, §2º, do Código Penal, ser praticado via omissão imprópria, na hipótese de o agente gozar do status de garantidor); de forma livre; instantâneo; monossubjetivo; plurissubsistente; não transeunte.” (GRECO, 2016, p. 607).

Sobre ser a falsidade ideológica um crime classificado como formal, em que se antecipa a consumação, Sylvio do Amaral preleciona:

[...] imprescindível que, integrando o elemento subjetivo do delito, se demonstre um fim determinado a mover o agente; mas essa parcela do elemento subjetivo não encontra correspondência entre os requisitos materiais do crime, de tal modo que este se tem por perfeito ainda quando não chegou a consumar-se materialmente o objetivo final do agente. (AMARAL, 2000, p. 93).

Com relação ao objeto material da norma incriminadora, este é o documento público ou particular. Ressalva-se o pensamento de Sylvio do Amaral em que “a falsidade ideológica em documento público, prevista no art. 299, restringe-se, pois, às declarações de vontade, do particular ou do Estado.” (AMARAL, 2000, p. 89).

Apesar de o sujeito ativo poder ser qualquer um, existe aumento de sexta parte da pena caso este seja funcionário público e cometa o crime prevalecendo-se de seu cargo, conforme se observa no início do parágrafo único. (ANDREUCCI, 2013, p. 473).

Parte-se nesse momento para o último capítulo, que abarcará a celeuma levantada por este trabalho, qual seja, a caracterização da rasura em documento como sendo falsidade material ou ideológica.

4 A RASURA EM DOCUMENTO COM O FIM DE ALTERAR FATO JURIDICAMENTE RELEVANTE

Por derradeiro, o último capítulo visa esclarecer a premissa deste trabalho, através da observância dos capítulos anteriores (premissas maiores) para atingir uma solução lógica da temática.

Inicia-se esta tarefa por meio da conceituação da palavra “rasurar” na língua portuguesa, conforme se depreende do dicionário: “v.t. Fazer rasura, reduzir a rasuras, raspar, rabiscar; emendar (a escrita) ”. (DICIONÁRIO ON-LINE, 2016).

Todavia, importa a este capítulo entender a rasura em documento com o fim de alterar fato juridicamente relevante. “É que a alteração consumada, para fundamentar a figura delituosa, precisa ser de verdade juridicamente relevante para o agente ou para a vítima, ou para ambos.” (AMARAL, 2000, p. 65)

O fato juridicamente relevante é aquele que o Estado tutela com o intuito de afastar qualquer ameaça à coletividade. Capez explica que “[...] nenhuma conduta pode, materialmente, ser considerada criminosa se, de algum modo, não colocar em perigo valores fundamentais da sociedade”. (CAPEZ, 2012, p. 29).

Sobre estes valores fundamentais, entende-se que:

[...] do Estado Democrático de Direito parte o princípio da dignidade humana, orientando toda a formação do Direito Penal”. Assim, a dignidade humana [...] orienta o legislador no momento de criar um novo delito e o operador no instante em que vai realizar a atividade de adequação típica. (CAPEZ, 2012, p. 25).

Para que haja a relevância jurídica citada, a rasura deve ser apta a iludir o homem médio. Por homem médio se entende “[...] a coletividade (conceito abstrato, que se representa pelo homem de inteligência e capacidade de observação estritamente comuns), visto ser a falsidade crime contra a fé pública, e não contra a fé privada de um ou outro indivíduo.” (AMARAL, 2000, p. 70)

Denomina-se falsidade grosseira aquela que não engana a coletividade, conforme se entende:

APELAÇÃO CRIMINAL - FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO, USO DE DOCUMENTO FALSO E FALSIDADE IDEOLÓGICA – [...]- ATIPICIDADE DA CONDUTA - FALSIFICAÇÃO GROSSEIRA - AUSÊNCIA DE POTENCIALIDADE LESIVA PARA OFENDER A FÉ PÚBLICA - INEXISTÊNCIA DO DELITO DE FALSIDADE IDEOLÓGICA - DOCUMENTO ADULTERADO E NÃO IDEOLOGICAMENTE FALSO – [...]. Grosseira é a

adulteração empreendida sem nenhum cuidado, com rasuras e alterações visíveis, incapaz, portanto, de embair o homem prudente. A falsidade ideológica

caracteriza-se pela existência de um documento formalmente verdadeiro, mas que possui conteúdo falso, o que não se verificou na espécie, vez que os documentos apresentados foram objeto de grosseira adulteração. (MATO GROSSO, 2011, grifo nosso).

Vale ratificar, portanto, que a rasura incapaz de enganar, “[...] facilmente reconhecível a olho desarmado, não constitui material do falso e se, por alguma circunstância excepcional, o agente consegue êxito, o crime a identificar será outro, o do estelionato.” (CUNHA, 2016, p. 682)

Sendo inapta a iludir, “[...] a falsificação inócua, sem qualquer repercussão na órbita dos direitos ou das obrigações de quem quer que seja, não constitui ilícito penal, embora contenha em si ostensivamente o requisito da alteração da verdade documental.” (AMARAL, 2000, p. 65).

Após o estudo destes conceitos, pode-se então seguir para a análise doutrinária e jurisprudencial da rasura como elemento alterador de fato juridicamente relevante e sua tipificação no Direito Penal.

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