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CAPÍTULO 2 O direito comunitário: definição e fontes

2.3.1 Princípios

Quadros afirma que os princípios são descobertos “a partir do conjunto de valores que formam o núcleo essencial, jurídico e político, do sistema jurídico em causa, neste caso, do Direito Comunitário”135. Partindo da premissa de que as normas de direito comunitário

obedecem a uma determinada ordem, em decorrência das relações mantidas por suas partes, os princípios são os responsáveis pela ordem e, por conseqüência, correspondem, comparativamente, a espinha dorsal do sistema jurídico comunitário.

Diego J. Liñán Nogueras (2006) os classifica em duas modalidades: princípios constitucionais e princípios gerais de direito comunitário. Os primeiros encontram-se implícitos nas normas de direito originário e, desta posição privilegiada, irradiam e informam todo o ordenamento jurídico comunitário. Os segundos, por sua vez, encontram-se espalhados por todas as fontes escritas e, por carecerem de uma formulação normativa concreta, são “apreciados jurisprudencialmente como exigências de racionalidade para a aplicação do Direito Comunitário”136. E, destarte, “têm contribuído, não só para aprofundar e robustecer a

especificidade do Direito Comunitário, como também para desenvolver e pormenorizar o sistema jurídico da União e das Comunidades Europeias.”137

135

QUADROS, Fausto. Idem. p. 348

136

“han sido apreciados jurisprudencialmente como exigencias de racionalidad para la aplicación del Derecho Comunitário”, (NOGUERAS, 2006, p. 355)

137

Dada a diversidade e a complexidade do direito comunitário, estes princípios revelam-se inúmeros. Heber Arbuet-Vignali é o autor que melhor oferece sua definição, ao relacionar nove princípios que, hoje, são essenciais ao sistema jurídico comunitário, quais sejam: a prevalência do interesse comum na interpretação das normas de direito comunitário; a especificidade; a subsidiariedade; a uniformidade da interpretação das normas de direito comunitário; a autonomia do sistema jurídico comunitário; a aplicabilidade direta das normas de direito originário e derivado; o efeito direto das normas de direito derivado; a primazia do direito comunitário sobre o direito interno dos Estados-membros; e, finalmente, a responsabilidade patrimonial do Estado-membro pelo descumprimento do direito comunitário.138

A prevalência do interesse comum na interpretação das normas de direito comunitário é um princípio que não se limita à interpretação do direito derivado em conformidade com o direito originário. Ele vai além desta relação de subordinação entre uma norma de qualificação inferior a uma de qualificação superior. Ele significa dizer que, na hipótese de divergência entre a interpretação literal do direito comunitário e a interpretação teleológica, deve prevalecer a interpretação mais favorável às Comunidades Européias e, por conseqüência, à integração. Este princípio resulta, pois, em uma regra de interpretação denominada de in dubio pro communitate.139

Definido pelo artigo 5.o, parágrafo primeiro do TCE140, o princípio da

especialidade delimita a capacidade jurídica das Comunidades Européias. Mediante os tratados constitutivos, os Estados-membros transferem parte de suas atribuições governamentais para as Comunidades Européias, as quais passam a ter competência exclusiva sobre estas atribuições. Assim, nas atribuições que lhe competem, os atos comunitários

138

ARBUET-VIGNALI, Heber. Idem. p. 362

139

QUADROS, Fausto de. Idem. p. 490

140

A Comunidade actua nos limites das atribuições que lhe são conferidas e dos objectivos que lhe são cometidos pelo presente Tratado.

prevalecem sobre as ordens jurídicas dos Estados membros. Na hipótese contrária, ou seja, de que as CCEE não possuam competência exclusiva, elas e os Estados-membros possuem competências concorrentes, sendo que a conduta das CCEE deve obedecer ao princípio da subsidiariedade.

O princípio da subsidiariedade, por sua vez, é aquele que “dá preferência aos Estados na persecução das atribuições que os Tratados considerem concorrentes entre a Comunidade e os Estados membros”141. Definido na primeira parte do parágrafo segundo do

art. 5.o do TCE142, ele consagra um princípio de exceção que se aplica apenas quando

configuradas duas condições: “a insuficiência da actuação estadual e a maior eficácia da intervenção da Comunidade”143. Por se tratar de regra de exceção, o ônus probatório é da

Comunidade, a qual, antes da prática de um ato cuja atribuição seja concorrente, deve provar as referidas condições.

A uniformidade da interpretação das normas de direito comunitário é um princípio elementar a todo sistema jurídico complexo. Ele objetiva alcançar um nível de certeza na aplicação das diversas normas do sistema, mediante uma interpretação abalizada, e, em conseqüência, produzir segurança jurídica. No sistema jurídico comunitário, foi criado o mecanismo de julgamento prejudicial por meio do qual o TJCE aprecia as questões referentes à interpretação do direito originário e derivado, sempre que os tribunais dos Estados-membros tiverem dúvidas quanto à sua aplicação. É o que se encontra estabelecido pelo artigo 234 do TCE144.

141

QUADROS, Fausto de. Idem. p. 200

142

Nos domínios que não sejam das suas atribuições exclusivas, a Comunidade intervém apenas, de acordo com o princípio da subsidiariedade, se e na medida em que os objectivos da acção prevista não possam ser suficientemente realizados pelos Estados-Membros, e possam pois, devido à dimensão ou aos efeitos da acção prevista, ser melhor alcançados ao nível comunitário.

143

QUADROS, Fausto de. Idem. p. 202

144

O Tribunal de Justiça é competente para decidir, a título prejudicial, sobre: a) A interpretação do presente Tratado;

b) A validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições da Comunidade e pelo BCE;

c) A interpretação dos estatutos dos organismos criados por acto do Conselho, desde que estes estatutos o prevejam.

A autonomia do sistema jurídico comunitário é o princípio pelo qual se assegura que, na sua formação e aplicação, independe tanto do direito internacional, quanto do direito interno dos Estados-membros. Ato contínuo, este princípio serve como justificativa à independência de suas categorias e noções145, de modo que ele deve ser interpretado e

aplicado a partir das qualidades que lhe são específicas.

A aplicabilidade direta é a susceptibilidade de aplicação sobre a ordem jurídica dos Estados-membros, a despeito de qualquer ato de recepção. Nada há que possa ser feito para impedi-la, pois “é um atributo conferido ao acto pelo Direito Comunitário e não representa uma concessão do Direito interno”146. No que se refere à tipologia das normas de

direito comunitário derivado, este princípio aplica-se exclusivamente aos regulamentos e às decisões dirigidas aos particulares.

O efeito direto é um princípio que se aplica às normas de direito comunitário derivado que dependem da atuação dos Estados-membros para que produzam efeitos, quais sejam, as diretivas e as decisões que lhes são dirigidas. Embora os Estados-membros possuam atribuições concorrentes com as CCEE, eles não podem proceder de forma a prejudicá-las. Assim, aquele que não dá cumprimento total ou parcial aos resultados da diretiva e da decisão, ou, excede o prazo para seu cumprimento, não pode se beneficiar da própria torpeza, ou senão, da própria inércia. Vislumbrada, portanto, a ocorrência destas hipóteses, os particulares jurisdicionados pelo sistema jurídico comunitário podem reivindicar, diretamente dos Estados-membros infratores, o cumprimento destas normas. Às referidas hipóteses, devem, no entanto, somar-se três outras condições, no caso: “a norma deve ser suficientemente clara e precisa; deve apresentar um carácter incondicional; e deve estar apta a

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados- Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal de Justiça que sobre ela se pronuncie.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça.

145

MARTÍN, Araceli Mangas; NOGUERAS, Diego J. Liñan. Idem. pp. 390-391

146

produzir os seus efeitos sem necessidade de qualquer disposição nacional ou comunitária que a complete.”147. Pressupondo que as diretivas obrigam somente os Estados, o TJCE tem

decidido que o efeito direto opera-se, exclusivamente, entre os particulares e os Estados- infratores numa relação denominada por “vertical”. Ato contínuo, os particulares não podem reivindicar entre si o efeito direto de uma diretiva, porque não são eles os responsáveis pelo seu descumprimento e, portanto, não se admite o efeito direto “horizontal”.

A primazia do direito comunitário é “uma característica absoluta e a condição existencial das próprias CCEE.”148 Pressupondo que o direito comunitário é resultado do

comum acordo de vontades dos Estados-membros e que ela deve prevalecer à vontade particular de cada uma das partes, no limite da sua competência, o direito comunitário deve ser aplicado, em detrimento do direito interno dos Estados-membros, qualquer seja sua natureza, assim considerada a norma constitucional e a infraconstitucional. Em razão do direito comunitário não se tratar de direito federal, o TJCE construiu o conceito de inaplicabilidade, ou seja, na hipótese de conflito entre as normas de direito comunitário e de direito interno, as últimas não são revogadas, e sim, deixam de ser aplicadas.

Finalmente, o princípio da responsabilidade patrimonial do Estado-infrator do direito comunitário é, nas palavras de Jorge Fontoura, o “mais importante aperfeiçoamento instrumental do direito comunitário europeu”149. Na hipótese do particular vir a ser

prejudicado pelo descumprimento do direito comunitário pelo Estado-membro, ele possui o direito de ser patrimonialmente indenizado. Este princípio é, pois, um consectário do efeito direto. O Estado-infrator não pode se beneficiar de sua deslealdade ou sua inércia com o processo de integração. Caso provoque prejuízo ao particular, ele não tem direito apenas a exigir, diretamente, o cumprimento do direito comunitário, mas também o de ser reparado. É,

147

QUADROS, Fausto de. Idem. p. 429

148

“es uma características absoluta y la condición existencial de las propias CCEE”, (MARTÍN, 2006, p. 427)

149

FONTOURA, Jorge Luiz Nogueira. Múltiplos de cidadania: o modelo de neojurisdição comunitário-européia.

realmente, um princípio inovador. Ele significa dizer que um sistema jurídico independente à ordem jurídica do Estado-membro obriga ele próprio a se punir. O aparato responsável pela aplicação da sanção pertence ao Estado-infrator, mas a sua administração, por sua vez, pertence ao sistema jurídico comunitário.

A despeito de sua classificação, ou seja, entre princípios constitucionais e princípios gerais, é importante ressaltar que o TJCE tem entendido que eles são hierarquicamente superiores às normas de direito derivado150 e, destarte, no exercício do seu

poder legiferante, executivo ou jurisdicional, os atos praticados pelos órgãos comunitários devem-lhes obediência.

2.3.2 Jurisprudência

Diego J. Liñán Nogueras destaca a importância da jurisprudência para a construção do direito comunitário, ao pressupor que, pela carência de sua normatização, os princípios devem ser revelados e articulados pela jurisprudência comunitária.151

Fausto de Quadros afirma que, ao contribuir para a formação do sistema jurídico comunitário, a jurisprudência “afasta-se da função que a jurisprudência assume nos Estados da família jurídica românica para se aproximar do papel que ela ocupa nos sistemas jurídicos anglo-saxónicos, onde assistimos, com normalidade, à criação do Direito por via pretoriana”152.

Isto é resultado do pragmatismo na construção do direito comunitário. Em sendo obrigado a dar solução aos conflitos decorrentes das práticas criadas no processo de integração da sociedade internacional européia, após o final da Segunda Guerra Mundial, os

150

QUADROS, Fausto de. Idem. p. 352

151

MARTÍN, Araceli Mangas; NOGUERAS, Diego J. Liñan. Idem. p. 355

152

princípios do direito comunitário constroem-se na medida de sua aplicação. Enquanto experiência da realidade, a jurisprudência é, ao mesmo tempo, fonte de ensino e critério de aplicação do direito comunitário, de modo que ambos de influem reciprocamente. É, neste sentido, que a jurisprudência pode ser considerada como uma fonte não-escrita do direito comunitário, suprindo suas lacunas e empregando-lhe novos significados.

Dada sua importância, Fausto de Quadros conclui que “se o Direito Comunitário alcançou a densidade e o progresso que hoje apresenta, isso se deve muito à jurisprudência comunitária, que soube suprir, tantas vezes, a paralisia dos órgãos políticos de decisão.”153

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