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O direito comunitário europeu à luz da teoria do ordenamento jurídico de Norberto Bobbio

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(1)

U

NIVERSIDADE

C

ATÓLICA DE

B

RASÍLIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

STRICTO SENSU EM DIREITO

Mestrado

O DIREITO COMUNITÁRIO EUROPEU À LUZ DA TEORIA DO

ORDENAMENTO JURÍDICO DE NORBERTO BOBBIO

Autor: Antonio Corrêa Junior

(2)

BRASÍLIA

2007

Antonio Corrêa Junior

O DIREITO COMUNITÁRIO EUROPEU

À LUZ DA TEORIA DO ORDENAMENTO

JURÍDICO DE NORBERTO BOBBIO

Projeto de dissertação apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Stricto Sensu

em Direito da Universidade Católica de Brasília, como requisito para a obtenção do Título de Mestre

(3)
(4)

À minha família, por ter me trazido ao mundo e ensinado os primeiros passos,

À minha esposa, pelo privilégio de tê-la como minha companheira nesta maravilhosa aventura que é a vida,

Aos meus amigos, pelas impagáveis lições, sem as quais nada faria sentido.

(5)

Pela liberdade e pelo vanguardismo com que me orientou na busca do conhecimento,

Ao Prof. MSc. Frederico Dias,

Por ter me aberto os olhos para uma percepção do mundo além do direito,

Ao Prof. Antonio Corrêa,

(6)

“ (...) E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e

compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós.”

Albert Camus

“(...) Le vrai triomphe de l’Europe est là: dès q’un peuple est libéré, il veut l’intégrer.”

(7)

direito comunitário. Por se desenvolver sobre uma lógica funcionalista, solucionando, pragmaticamente, os problemas decorrentes das transformações das práticas européias, pós-1945, faltou-lhe um aperfeiçoamento teórico, permitindo que a doutrina e jurisprudência adotassem posições errôneas. Exemplo é a pressuposição de que o direito comunitário é um ordenamento jurídico, a despeito da investigação de que ele reúne as características que lhe são elementares: unidade, coerência e completude. A dissertação se propôs, então, a investigar se o direito comunitário possui estes predicados particulares, à luz dos ensinamentos de Norberto Bobbio, quem melhor articula a teoria do ordenamento jurídico. Por meio da análise histórica e dogmática do conteúdo dos tratados das Comunidades Européias, da jurisprudência do Tribunal de Justiça e da doutrina foram reunidas evidências suficientes de que o direito comunitário é uno, coerente e completo e que, por reunir estes predicados particulares, ele representa, hoje, o ordenamento jurídico da sociedade internacional européia. É também responsável pela manutenção da sua ordem. Entretanto, seus princípios inovadores não podem ser estendidos ao restante da sociedade internacional, uma vez que ele foi criado pelos europeus e para eles próprios. A sua contribuição se limita em despertar a sociedade internacional para a importância de mecanismos de solução de controvérsias mais eficientes, o que, em última análise, representa um impulso às mudanças dela mesma.

(8)

European Community law. Developing itself on funcionalistic logic, solving, pragmatically, the problems from European practices’ changes, after-1945, lacked a theoretical improvement to it, allowing that the doctrine and jurisprudence adopted mistaken opinions. Example is the presumption of that the European Community law is a legal system, in spite of the inquiry if it congregates the characteristics that are elementary: unit, coherence and completeness. This paper’s goal is to investigate if the European Community law possesses these particular predicates, in the light of the teachings of Norberto Bobbio, who better articulates the theory of the legal system. Throughout the historical and doctrinal analysis of the content of the Europeans Communities Treaties, of the case law of the Court of Justice and the doctrine evidences had been congregated enough of that the European Community law joins unit, coherence and completeness and, for congregating these particular predicates, it represents, today, the legal system of the international european society. It is also responsable for the maintenance of its order. However, its innovative principles cannot be extended to the remain of the international society, because it was created by the Europeans and for the Europeans. Its contribution limits in awaking the international society for the importance of more efficient controversy-solving mechanisms, what, in last analysis, it represents an impulse to the changes of itself.

(9)

INTRODUÇÃO, REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLOGIA ... 9

CAPÍTULO 1 A integração da Europa: 1945-2007 ... 22

1.1 Europa: a percepção de si própria ... 23

1.2 Entre guerras: 1914-1945 ... 24

1.3 A fase da cooperação: 1946-1950... 30

1.4 O início da integração: 1951-1956 ... 32

1.5 A integração em marcha: 1957-1985... 36

1.6 Um novo impulso: 1986-1991 ... 40

1.7 Um novo horizonte: 1992-2007... 42

CAPÍTULO 2 O direito comunitário: definição e fontes ... 48

2.1 Definição ... 48

2.2 Fontes escritas ... 52

2.2.1 Direito comunitário originário ... 52

2.2.2 Direito comunitário derivado ... 54

2.3 Fontes não-escritas ... 60

2.3.1 Princípios... 61

2.3.2 Jurisprudência... 66

2.4. A falta de originalidade ... 67

CAPÍTULO 3 O direito comunitário sob diferentes perspectivas teóricas... 71

3.1 Internacionalista ... 74

3.2 Federalista ... 78

3.3 Teoria do Ordenamento Jurídico ... 81

CAPÍTULO 4 Teoria do Ordenamento Jurídico, por Norberto Bobbio ... 85

4.1 Unidade ... 86

4.2 Coerência ... 90

4.3 Completude ... 95

4.4 Ordenamento jurídico: uma concepção funcionalista... 100

CAPÍTULO 5 O direito comunitário: um ordenamento jurídico ... 103

5.1 Unidade ... 103

5.2 Coerência ... 112

5.3 Completude ... 116

CONCLUSÃO ... 123

(10)

INTRODUÇÃO, REFERENCIAL TEÓRICO e METODOLOGIA

O objetivo principal da dissertação é investigar se o direito comunitário europeu,

ou seja, se o conjunto de regras e princípios, criados pelos órgãos das Comunidades Européias

– CCEE – e celebrados de comum acordo pelos seus Estados-membros, reúne todas as

características que são próprias a um ordenamento jurídico.

O direito comunitário é resultado das significativas mudanças a que o direito

internacional tem se sujeitado, após o final da Segunda Guerra Mundial.

Antes de 1945, as relações internacionais eram dominadas por premissas realistas

das relações internacionais, quais sejam, a preeminência do papel do Estado no cenário

internacional e a convicção de que o seu objetivo elementar é a preservação de sua soberania.

Em conseqüência disso, para a escola realista, as relações internacionais produzem,

necessariamente, um conflito endêmico entre seus atores, os Estados.

Nesse contexto, o direito internacional era concebido como um instrumento criado

pelos Estados a serviço dos seus objetivos. Era um direito marcado pela coordenação de

interesses soberanos que se convergiam pela conveniência. Um direito de preservação do

status quo, e não de sua transformação.

Expressão da escola realista é a conclusão de Hedley Bull de que o direito

internacional é um conjunto de regras que contribui para a manutenção da ordem da sociedade

internacional. Esta afirmativa pressupõe dois conceitos: sociedade internacional e ordem. A

sociedade internacional existe “quando um grupo de Estados, conscientes de certos valores e

interesses comuns, forma uma sociedade, no sentido de se considerarem, ligados, no seu

relacionamento, por um conjunto comum de regras, e participam de instituições comuns” 1. A ordem, por sua vez, é um padrão das atividades internacionais que sustenta os objetivos

1

(11)

fundamentais desta sociedade, quais sejam, sua auto-preservação, a manutenção da

independência dos Estados, a manutenção da paz, a limitação da violência, o cumprimento

dos acordos e a estabilidade do direito de posse, mediante a regulamentação da propriedade.

Bull (2002) afirma que o direito internacional contribui para a manutenção da

ordem de três formas: identificando a noção da sociedade internacional como pressuposto à

organização política da humanidade; expressando as regras de coexistência dos Estados e de

outros atores da sociedade internacional; e, mobilizando a aceitação das regras da sociedade

internacional. 2

Portanto, o direito internacional não tem como intervir na sociedade internacional,

a não ser, como um repositório de legitimidade de suas regras e valores comuns. É, na

verdade, um conjunto de regras que busca mobilizar os interesses da sociedade internacional

em favor da ordem, justificando sua existência.

A Segunda Guerra Mundial impôs uma revisão destas premissas do direito

internacional, especialmente, entre os seus principais protagonistas: França, Alemanha, Itália

e Inglaterra. Eles não podiam mais arriscar a possibilidade de uma nova guerra como aquela,

não como aquela! As populações tinham que ser socorridas e, para tanto, suas economias

deviam ser imediatamente recuperadas. Para agravar a situação, tinham que administrar o

risco de uma invasão soviética sobre a Europa central.

Diante dessas condições, o direito internacional não podia mais ser concebido

como um simples repositório de legitimidade de regras, as quais não tiveram êxito em impedir

a sua própria destruição. Ele devia impor-se à vontade dos Estados em determinadas

situações. Devia pesar sobre a Europa.

Hedley Bull expõe as principais mudanças pelas quais o direito internacional

passou, após o final da Segunda Guerra Mundial, “mudanças relativas aos sujeitos, ao escopo

2

(12)

desse direito (os atores ou os objetos que pretende regular), aos procedimentos com os quais o

direito é formulado e ao papel da advocacia no direito internacional.” 3

Como resultado delas, o direito internacional não mais admitiria a exclusividade

do Estado como sujeito de direito, dividindo-se o papel principal entre indivíduos, grupos e

organizações não-estatais. Ele não serviria mais, exclusivamente, a assuntos políticos e

estratégicos, devendo também regular temas econômicos, sociais e ambientais. Valorizaria

mais os princípios gerais, a jurisprudência e a doutrina como fonte de direito, ao lado dos

tratados e do costume internacional. Finalmente, admitiria, abertamente, que suas decisões

devem levar em consideração valores morais, sociais e políticos, em detrimento de valores

exclusivamente jurídicos.4

Para Hedley Bull, os apologetas destas mudanças defendem que elas estão

provocando um verdadeiro progresso do direito internacional:

progresso a partir de um direito que põe sob sua jurisdição não apenas os Estados mas toda a comunidade mundial; de um direito interessado apenas na coexistência entre os Estados para um direito preocupado com a cooperação econômica, social e ambiental entre as pessoas, dentro da comunidade mundial; de um direito em que o consenso se tenha tornado uma fonte de obrigações; 5

Exemplo desse progresso é o direito comunitário, que atribuiu direitos e

obrigações aos Estados, órgãos das Comunidades Européias e cidadãos dos

Estados-membros; que instituiu um mercado comum, em que pessoas, bens, serviços e capitais

circulam livremente; que assegura um welfare state aos seus cidadãos; e, que impõe soluções

aos sujeitos de direito, sejam eles os Estados-membros ou seus cidadãos.

Relacionados apenas esses aspectos do direito comunitário, tem-se a impressão de

que o progresso foi obtido, linear e gradualmente, pelas partes envolvidas, o que não é

3

BULL, Hedley. Idem. p. 165

4

Ibidem. pp. 167-173

5

(13)

verdadeiro. Ele é um processo marcado por avanços e retrocessos, por sucessos e fracassos,

mas, principalmente, por renúncias.

Para alcançar a integração, o direito comunitário dependia de que os

Estados-membros transferissem parte de suas atribuições governamentais em favor de uma instituição

supranacional e, portanto, contrapunha-se, nevralgicamente, à concepção monolítica e

totalitária de soberania, que prevalecia no período que precedeu a Segunda Guerra Mundial,

isto é, àquela de que o soberano se impunha a tudo, ou então, não se impunha a nada.

Em meio a esta controvérsia se dividiam as opiniões dos “institucionalistas” e

“funcionalistas”. Élisabeth Guigou afirma que os primeiros:

preconizavam a criação de uma constituição federal. A idéia, trazida pelos ‘funcionalistas’, que começou a se espalhar foi de uma cooperação estreita, inicialmente, limitada aos setores econômicos mais importantes e que seria estendida, progressivamente, a toda a economia e criaria instituições políticas integradas.6

Se, hoje, a idéia de um Estado federal europeu ainda provoca inúmeras

controvérsias, na metade do século XX, a resistência era ainda maior. Acabou por prevalecer

a opinião dos “funcionalistas” e, em conseqüência, o direito comunitário se desenvolveu em

meio de “um processo marcado por sucessivas integrações parcelares de sectores limitados,

configurando-se como ponto de partida para a constituição de uma federação europeia”7. O direito comunitário foi criado a partir de objetivos específicos e predicados

inovadores para atender às necessidades econômicas, políticas, sociais e estratégicas da

Europa, ao final da Segunda Guerra Mundial. João Mota de Campos retrata a dimensão das

necessidades européias, no período:

6

“qui préconisaient d’emblée une constitution féderále. L’idée, portée par les ‘funcionalistes’, commençait donc à se répandre d’une coopération étroite, d’abord limitée aux secteurs économiques clés et qui serait élargie progressivement à toute l’economie et donnerait naissance à des institutions politiques intégrées.”, (GUIGOU, 2004, p. 39).

7

(14)

Reduzidas à condição de Estados de população média e pequenas dimensões territoriais, os principais países da Europa Ocidental não podiam, individualmente, suportar o confronto – em matéria política, econômica ou militar – com os Estados Unidos ou com a União Soviética.8

As regras e princípios do direito comunitário foram criados para resolver os

infindos problemas enfrentados pela sociedade européia do pós-guerra. Obedecendo a uma

lógica funcionalista, ele seria apenas um instrumento que tornaria, possível e automática, uma

ação social contínua, em favor da evolução pacífica da Europa. Pelo seu caráter pragmático,

ainda falta ao direito comunitário uma teoria geral, um aperfeiçoamento conceitual que

permita que seus intérpretes e operadores apliquem-no de forma escorreita e uniforme. Esta é

a opinião de Heber Arbuet-Vignali:

Este sistema surge de forma pragmática como uma resposta jurídica a uma necessidade política, o que explica a falta de uma teoria geral cuidadosamente elaborada a seu respeito. Sua recente aparição, o desenvolvimento pragmático de sua concepção, a novidade dos seus instrumentos que, não obstante, em algo se assemelham em alguns casos aos do direito interno e em outros aos do Direito Internacional, somado às dificuldades conceituais que resultam da convivência de estruturas de coordenação com estruturas de subordinação, conduziram a doutrina a adotar a seu respeito algumas posições errôneas ou confusas.9

A adoção de posições confusas sobre definições conceituais não se limitou à

doutrina. João Mota de Campos defende que o Tribunal de Justiça das Comunidades

Européias – TJCE –“tem recorrido a fórmulas sibilinas, como a de ‘nova ordem jurídica’ e

tomado decisões ousadas que lhe permitiram pavimentar, pedra a pedra, a via de um certo

federalismo europeu.”10

8

PITTA E CUNHA, Paulo de. Integração européia. Coimbra: Almedina, 2004. p. 130

9

“Este sistema surge em forma pragmática como una respuesta jurídica a uma necesidad política, lo que explica la falta de una teoría general cuidadosamente elaborada a su respecto. Su reciente aparición, el desarollo pragmático de su concrécion, la novedad de sus instrumentos que, no obstante, em algo se asemejan en algunos casos a los del derecho interno y en otros a los del Derecho Internacional, sumado a las dificuldade conceptuales que resultan de la convivencia de estructuras de coordinación con estructuras de subordinación, condujeron a que la doctrina adoptara a su respecto algunas posiciones erróneas o confusas.”, (ARBUET-VIGNALI, 2004, pp. 333-334)

10

(15)

Este problema germinal não podia impedir o TJCE de cumprir seu papel

institucional, de assegurar uma interpretação uniforme do direito comunitário, e histórico, de

atribuir-lhe a legitimidade necessária a sua primazia sobre as ordens jurídicas dos

Estados-membros.

Em 1964, ao apreciar o caso Costa/ENEL, o TJCE deu início ao polêmico

entendimento de que “em contraste com tratados internacionais ordinários, o tratado CEE

criou sua própria ordem jurídica e, com a sua entrada em vigor, tornou-se uma parte

integrante das ordens jurídicas dos Estados-membros, cujos tribunais são obrigados a dar

cumprimento.”11

A utilização da expressão “ordem jurídica”, ou “ordenamento jurídico”, não

provocaria problema se ela não fosse uma daquelas expressões que possui diversos

significados. Ela pode significar a totalidade das regras jurídicas que regulam as relações de

uma determinada população e, portanto, ser utilizada como sinônimo de direito. Ela também

pode significar um conjunto de regras, interligado e coordenado por princípios próprios, e,

assim, ser utilizada como sinônimo de sistema. Ela pode, ainda, ser utilizada como sinônimo

de ordenamento jurídico.

Nas palavras de Norberto Bobbio, o conceito de ordenamento jurídico foi

inventado, “isto é, introduzido ex novo pelo próprio positivismo. Antes do seu

desenvolvimento faltava no pensamento jurídico o estudo do direito considerado não como

norma singular ou com acervo de normas singulares, mas como entidade unitária constituída

pelo conjunto sistemático de todas as normas.”12.

Na acepção positivista do termo, um ordenamento jurídico é característico por

reunir três predicados, no caso, a unidade, a coerência e a completude, os quais “fazem com

11

“By contrast with ordinary international Treaties, the EEC Treaty has created its own legal system which, on the entry into force of the Treaty, became an integral part of the legal systems of the member States and which their Courts are bound to apply”, disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do? uri=CELEX:61964J0006:EN:HTML> Acesso em 31 jan. 2007.

12

(16)

que o direito no seu conjunto seja um ordenamento e, portanto, uma entidade nova, distinta

das normas singulares que o constituem.”13

A expressão “ordenamento jurídico” pode, portanto, significar um conjunto de

normas que, em decorrência de sua unidade, coerência e completude, formam uma entidade

autônoma, cuja natureza e significado diferem das normas que a constituíram.

Examinada apenas a diferença do todo em relação à unidade, o direito comunitário

pode ser considerado um ordenamento jurídico, na acepção positivista do termo. Nesse

sentido, Fausto de Quadros afirma que:

o Direito Comunitário tem o seu objeto próprio e, portanto, a sua autonomia própria, não devendo, portanto, ser interpretado ou aplicado, nem pela União, pelas Comunidades e pelos seus órgãos, nem pelos Estados membros e pelos seus órgãos, com perda da sua especificidade, isto é, das suas características próprias.14

No entanto, essa afirmação omite o que é fundamental à definição positivista de

um ordenamento jurídico, no caso, a reunião das três qualidades que lhe são elementares: a

unidade, a coerência e a completude.

As evidências demonstram, portanto, que a jurisprudência e a doutrina

especializadas têm utilizado o conceito de ordenamento jurídico, de forma equivocada,

ignorando as qualidades que lhe são fundamentais.

Elas demonstram também que a jurisprudência e a doutrina pouco têm se

dedicado a investigar se o direito comunitário é, na acepção positivista, um ordenamento

jurídico.

A despeito disso, a partir do acórdão COSTA/ENEL, quando se aplica o direito

comunitário e quando se estuda a sua aplicação, tem-se admitido que ele corresponde a um

novo ordenamento jurídico.

13

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 198

14

(17)

Finalmente, elas demonstram que as atenções da jurisprudência e da doutrina

voltam-se, na maioria, à investigação de questões relativas à interação do direito comunitário

com o direito dos Estados-membros, como, por exemplo, a aplicabilidade direta do direito

comunitário sobre a ordem jurídica dos Estados-membros, ou então, a sua primazia em

relação do direito interno. Ambas priorizam, pois, em analisar as características do direito

comunitário, dedicando pouca atenção as suas características inovadoras.

Estes são os motivos pelos quais a dissertação tem o objetivo de responder à

seguinte questão: o conjunto de regras e princípios, que compõem o direito comunitário

europeu, reúne as qualidades elementares de um ordenamento jurídico: a unidade, a coerência

e a completude?

Ao responder essa questão, a dissertação possui três objetivos. O primeiro,

imediato, de verificar se a sociedade européia deu origem a um conjunto de regras e

princípios que, em decorrência de seus predicados particulares, hoje, constitui-se no em um

novo ordenamento jurídico que lhe é específico e singular. O segundo, mediato, de contribuir

para a construção de uma teoria geral sobre o direito comunitário ao estudar as suas

características inovadoras. O terceiro, também mediato, de articular os conceitos-chave de um

referencial teórico, no caso, a teoria do ordenamento jurídico, que, apesar das críticas15, revela-se mais atual do que nunca.

Definida a questão de pesquisa, devem, agora, ser esclarecidos o referencial

teórico, a metodologia e as justificativas para sua utilização na dissertação.

Fausto de Quadros adverte que “o Direito Comunitário foi buscar as suas raízes

em ramos de Direito pré-existentes”16 e, dentre eles, “o Direito Administrativo foi o ramo de

15

Karl Larenz relata que a mais significativa crítica à teoria do ordenamento jurídico é a “de que KELSEN não consegue manter ‘a disparidade absoluta entre ser e dever ser’, que toma como ponto de partida.”, (LARENZ, 1997, p. 98)

16

(18)

Direito que de modo mais intenso ajudou à construção dogmática e científica do Direito

Comunitário”17.

O direito comunitário teve, pois, como principal fonte um ramo do direito

marcadamente influenciado pela doutrina positivista. Exemplo desta influência é a

importância que se dá aos requisitos de validade material e formal do ato comunitário, a

tipologia do direito comunitário derivado e a forma de sua aplicação pelas Comunidades

Européias e pelos Estados-membros. Aliás, João Mota de Campos identifica a influência

positivista sobre o TJCE ao questionar:

Verifica-se, pois, que o Tribunal de Justiça evita cuidadosamente qualificar as Comunidades como entidades soberanas. Mas, ao procurar isolá-las de qualquer “impureza” de caráter metajurídico, encarando-as como um sistema normativo autónomo que, graças aos princípios de aplicabilidade directa e do primado da norma comunitária, age como um instrumento de unificação do direito; e ao apresentá-las, depuradas de qualquer componente política ou ideológica, como um “ordenamento jurídico” próprio e autónomo, não se terá porventura o Alto Tribunal inspirado numa concepção kelseniana que precisamente identifica a entidade soberana que é o Estado com um sistema de normas jurídicas?18

Não há dúvidas, pois, da influência da corrente jurídica positivista sobre o direito

comunitário. Nada mais adequado, portanto, que estudá-lo sob a luz da teoria do ordenamento

jurídico, a qual, nas palavras de Norberto Bobbio, é o meio de se chegar “ao coração desta

corrente jurídica.”19

Ao estudar as qualidades elementares de um ordenamento jurídico, quais sejam, a

unidade, a coerência e a completude, essa teoria obtém a conclusão de que, uma vez reunidas,

o direito configura uma entidade nova, distinta das normas singulares que o constituem.

O referencial teórico é, portanto, composto de quatro conceitos: direito

comunitário, unidade, coerência e completude. Eles serão, exaustivamente, definidos no

decorrer da dissertação, cumprindo, por ora, apenas descrevê-los.

17

QUADROS, Fausto de. Idem. p. 323

18

CAMPOS, João Mota de. Idem. p. 246

19

(19)

As definições sobre o direito comunitário variam de autor para autor, conforme o

critério eleito para melhor caracterizá-lo. Para o início da dissertação, é assaz uma definição

conceitual que considere o direito comunitário como um conjunto de regras e princípios,

desprovido de qualquer qualificação. É nesse sentido a definição de Paulo de Pitta e Cunha.

Em sua opinião (2004), o direito comunitário corresponde ao conjunto de regras e princípios

decorrentes dos tratados constitutivos das Comunidades Européias, celebrados sobre bases

convencionais, ao qual se acrescem as normas produzidas pelos órgãos comunitários.

Nada mais conveniente à definição dos demais conceitos, que as palavras de

Norberto Bobbio na obra Teoria do Ordenamento Jurídico, que, ele próprio admite, estar

ligada “à problemática de Kelsen, da qual constitui ora um comentário, ora um

desenvolvimento.”20

A unidade é o resultado da obediência das normas a uma estrutura hierárquica na

qual a validade material e formal das normas inferiores depende da sua adequação às

superiores e, por conseguinte, faz de normas espalhadas e de várias proveniências um

conjunto unitário.

A coerência, por sua vez, pressupõe que um conjunto unitário de normas não pode

conter antinomias, ou seja, incompatibilidade entre as normas de idêntica validade material e

formal. Caso se verifiquem antinomias, elas devem ser resolvidas por meio de métodos e

critérios de interpretação próprios ao conjunto de normas.

Finalmente, a completude é o postulado de que um conjunto uno e coerente de

normas aplica-se a todas as situações jurídicas por ele reguladas de modo que não se possa

afirmar a existência de uma lacuna que não possa ser resolvida por ele mesmo.

Para responder à questão de pesquisa, a dissertação se ocupará em relacionar

conceitos, submetendo-os ao confronto das evidências obtidas no decorrer da pesquisa. Deste

20

(20)

modo, a dissertação pretende “descrever com exatidão, os fatos e fenômenos de determinada

realidade”21, no caso, descrever se o direito comunitário europeu reúne as qualidades de um ordenamento jurídico, o que, de acordo com Manoel Moacir Costa Macedo, é uma das

principais características de um estudo descritivo.

Em busca deste objetivo, o estudo de caso foi escolhido como método de

investigação empírica, o qual é apropriado à investigação de “um fenômeno contemporâneo

dentro do seu contexto da vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o

contexto não estão claramente definidos”22.

A contemporaneidade é, justamente, um dos motivos pelos quais não há, ainda,

um aperfeiçoamento da aplicação do conceito de ordenamento comunitário sobre o direito

comunitário. Além disso, seu significado está diretamente relacionado ao processo de

integração europeu, após o final da Segunda Guerra Mundial. Não é possível, pois, estudar o

direito comunitário, a despeito da realidade em que se desenvolveu.

Se, por um lado, as características do objeto de pesquisa não permitem sua divisão

do seu contexto histórico, por outro, a utilização da teoria do ordenamento jurídico tampouco

permite um estudo fracionado deste fenômeno jurídico, pois, para se investigar a hipótese de

que o direito comunitário é um ordenamento jurídico, ele deve ser estudado em sua totalidade,

estreitamente vinculada à realidade das relações que busca regular.

Em função disso, o presente estudo de caso pode ser classificado como holístico.

A vantagem deste tipo de estudo é descrita por Robert K. Yin: “o projeto holístico é vantajoso

quando não é possível identificar nenhuma subunidade lógica e quando a teoria em questão

subjacente ao estudo de caso é ela própria de natureza holística”23.

21

MACÊDO, Manoel Moacir Costa. Metodologia científica aplicada. Brasília: Scala Gráfica e Editora, 2005. p. 55

22

YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: bookman, 2001. p. 32

23

(21)

Finalmente, além da revisão bibliográfica, as evidências foram colhidas dos

documentos legais que positivam o direito comunitário, especialmente, dos tratados

constitutivos das CCEE e da jurisprudência do TJCE. Assim, as técnicas de coleta de dados

mais apropriadas foram a análise de conteúdo e a pesquisa documental. Nas palavras de

Gilberto de Andrade Martins, a primeira é a mais conveniente, “quando se deseja analisar a

avaliar Regulamento, Estatutos”24, e a segunda, quando se “busca material que não foi editado”25.

Definidos, portanto, o objeto de pesquisa, a justificativa de sua escolha, o método

e as técnicas de investigação empírica, merece, agora, ser descrita a estrutura da dissertação, à

qual, além desta introdução, somam-se cinco capítulos e uma conclusão.

No primeiro capítulo, narram-se os principais fatos históricos que estão

diretamente relacionados ao processo de integração vivido pelos europeus, de 1945 à

atualidade, com o objetivo de demonstrar que a construção conceitual e judicial do direito

comunitário e a evolução das práticas da sociedade européia influenciaram-se,

reciprocamente.

O segundo trará a definição de um dos conceitos da dissertação, o direito

comunitário, críticas quanto a sua pretensa originalidade e a exposição de suas fontes.

No terceiro, serão descritas as duas principais perspectivas teóricas do direito

comunitário que o comparam com a ordem jurídica dos Estados-membros de modo a concluir

pela primazia de uma sobre a outra. Os “internacionalistas” defendem que, em decorrência de

sua soberania, a ordem jurídica dos Estados-membros deve prevalecer sobre o direito

comunitário, enquanto os “federalistas” defendem que, por já possuir características de um

direito federal, o direito comunitário é aplicável sobre o direito interno dos Estados-membros.

24

MARTINS, Gilberto de Andrade. Estudo de caso: uma estratégia de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2006. p. 33

25

(22)

Após, será descrita a teoria do ordenamento jurídico para, então, estabelecer sua distinção

destas duas perspectivas.

O quarto capítulo será dedicado à definição dos outros três conceitos da

dissertação, a unidade, a coerência e a completude, a partir da obra de Norberto Bobbio.

No quinto capítulo, será elaborado o construto26, aqui entendido como a articulação dos conceitos com as evidências colhidas durante a pesquisa e, deste modo,

responder se o conjunto de regras e princípios que compõem o direito comunitário obedece a

uma estrutura hierárquica una, que não contém antinomias, e alcança a todas as situações

jurídicas por ele reguladas.

Por fim, a conclusão se dedicará a expor que o direito comunitário é um fenômeno

que diz respeito apenas à sociedade internacional européia e, por conseqüência, seus

predicados não se estenderão aos demais agrupamentos regionais. Assim, sua verdadeira

contribuição se limita a dois aspectos: despertar na sociedade internacional a importância de

mecanismos de solução de controvérsias mais eficientes e representar um impulso às

mudanças da sociedade internacional.

26

(23)

CAPÍTULO 1 A integração da Europa: 1945-2007

Neste capítulo, pretende-se não cometer um equívoco reticente aos resumos

históricos que são reservados à parte introdutória dos trabalhos jurídicos. Ele consiste em

escrevê-los “mais para confirmar conclusões presentes do que a investigar situações concretas

pretéritas.”27, dando a falsa impressão de que “o mundo caminha para o melhor dos mundos possíveis, concretizado nos excertos legislativos de nossos tempos.”28

As Comunidades Européias que conhecemos hoje não são o resultado do que seus

criadores buscavam em 1951. Àquela época, sua pretensão era muita mais tímida, restrita à

regulação do mercado e da produção do carvão e do aço. Inicialmente, não se imaginava que

assuntos sociais, econômicos e políticos pertenceriam às competências das instituições

comunitárias. Tampouco se supunha que as CCEE representariam, em 2004, a vontade de 457

milhões de habitantes, cidadãos de 25 países29 e, ao mesmo tempo, cidadãos europeus.

O direito comunitário é resultado desse gradual processo de integração, em que os

Estados-membros transferiram parte de suas atribuições governamentais em favor das CCEE.

Os avanços e retrocessos desse processo aplicam-se igualmente à construção doutrinária e

jurisprudencial das regras e princípios de direito comunitário, de modo que a concepção atual

não representa sua concepção inicial.

Se, por um lado, é correto afirmar que o desenvolvimento do direito comunitário é

o resultado do processo de integração europeu após 1945, por outro, também é correto afirmar

que o direito comunitário contribuiu para transformação da sociedade internacional européia,

quando ela enfrentou períodos de desilusão deste novo modelo de organização social,

econômica e política, especialmente, no início das décadas de oitenta e noventa. O direito

27

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e história: uma relação equivocada. Londrina: Edições Humanidades, 2004. p. 17

28

Ibidem. p. 21

29

(24)

comunitário não se reduz, portanto, a uma simples resposta jurídica de uma realidade,

influindo, sobremaneira, na sua mudança.

Esses são apenas exemplos de determinados aspectos do direito comunitário que

fazem dele uma experiência única e permitem a compreensão do que representa, hoje, para as

partes nele envolvidas. Descrever a dimensão dessa experiência e as maneiras que influíram

no desenvolvimento do direito comunitário é o objetivo deste capítulo.

1.1 Europa: a percepção de si própria

Ao investigar a origem do nome da Europa, Heródoto se reporta à lenda de

“Zeus, apaixonado pela princesa Europa, filha de um rei da Ásia menor, se metamorfoseou

num touro branco e, surpreendendo-a à beira-mar, convidou-a para subir ao seu dorso – com

ela atravessando o Mediterrâneo até a ilha de Creta.”30. Élisabeth Guigou afirma que esta “história de amor e de violência”31 é uma metáfora precisa da história do continente europeu: “uma alternância de guerras e de paz, de obscurantismo e de abertura”32.

Esta relação dialética permitiu que, apesar da diversidade das histórias nacionais e

regionais, de idiomas, de tradições, a identidade européia se criasse mediante grandes

movimentos de civilização que uniu os povos e criou marcas culturais comuns.33

Para Guigou (2004), depois da Antiguidade, a Europa se tornou uma comunidade

espiritual e cultural comum, uma unidade baseada na diversidade.

Entretanto, somente a partir do século XVI, é que a Europa passou a tomar

consciência de si própria. Neste período, a sociedade internacional européia estabeleceu um

30

PITTA E CUNHA, Paulo de. Direito institucional da União Européia. Coimbra: Almedina, 2004. p. 13.

31

“histoire d’amour et de violence”, (GUIGOU, 2004, p. 21)

32

“une alternance de guerres et de paix, d’obscurantisme et d’ouverture”, (GUIGOU, 2004, p. 21)

33

(25)

sistema de alianças que promoveu o equilíbrio pacífico entre os Estados, consolidando,

destarte, sua legitimidade. Em meio à alternância de armistícios, desenvolveu-se um

cosmopolitismo europeu. Para Truyol y Serra (1999), nesse período generalizou-se o conceito

de que a Europa é uma entidade cultural e política, e não, apenas um espaço geográfico.

Esta concepção cosmopolita influenciou, sobremaneira, os trabalhos filosóficos

dos séculos XVIII e XIX, que “preconizavam a paz na organização da Europa”34. William Penn propôs a criação de uma assembléia européia. Rousseau defendeu a idéia de uma dieta

permanente. Kant sugeriu a criação de uma confederação geral dos Estados europeus.

Desde o século XVI, muitos europeus têm se preocupado, portanto, em descrever

a Europa a partir de uma identidade política e cultural única, cuja unidade provém da

diversidade dos seus povos e tradições. É sobre a nostalgia do sentimento de identidade

européia que “se situa o processo de integração política da Europa que hoje presenciamos.”35

1.2 Entre guerras: 1914-1945

Em que pesem os ideais cosmopolitas e o sentimento de identidade europeus, os

primeiros passos do processo de integração da sociedade internacional européia iniciaram

tão-só, após a Primeira Guerra Mundial. Nas palavras de Antonio Truyol y Serra, ela “iniciou a

aceleração do deslocamento, já perceptível anteriormente, da posição central que até então

ocupara a Europa no mundo.”36. As principais iniciativas deste período tinham, portanto, o objetivo de recuperar o prestígio da Europa na sociedade internacional.

34

GUIGOU, Élisabeth. Idem. p. 30.

35

“se sitúa el proceso de integración política de Europa que hoy presenciamos”, (TRUYOL Y SERRA, 1999, p. 20)

36

(26)

Em 1924, o economista francês Charles Gide percorreu a Europa atrás de

assinaturas para a criação de um Comitê Internacional pela União Aduaneira Européia. Em

1926, França, Alemanha, Luxemburgo, Bélgica e a região autônoma do Saar assinaram um

acordo com o objetivo de regulamentar a produção do aço e prevenir o excesso de produção.

Em 1927, em Viena, é publicado o Manifesto Pan-europeu, idealizado cinco anos

antes pelo conde Coudenhouve-Kalergi, que defendia “que os Estados europeus não podiam

intervir positivamente no novo concerto mundial sem a condição de estabelecer entre eles

uma união política permanente, Paneuropa.”37

Em 1928, influenciado pelos ideais deste manifesto, o Primeiro-ministro francês

Aristides de Briand defendeu que, superadas as rivalidades do passado, era hora dos europeus

pensarem como Europeus, falarem como Europeus e sentirem-se como Europeus38, ou seja, hora de pensar numa federação européia. Embora esta idéia tenha se dispersado com a morte

do seu autor, ela obrigou uma reflexão mais profunda sobre o “problema da soberania em

função de uma organização internacional eficiente, européia.”39. Afinal, para os federalistas, a transferência de poderes soberanos para uma entidade que pudesse tratar de assuntos de

interesse comum dos Estados europeus e conservasse as diversidades culturais dos seus povos

era a única alternativa à preservação de toda a Europa.

Nenhuma destas iniciativas teve apelo popular, o que explica sua limitada

influência sobre o atual processo de integração europeu. É o que adverte Paulo de Pitta e

Cunha:

Os planos de união europeia, estruturados desde os tempos medievais por filósofos e pensadores políticos, não influíram por forma sensível no actual movimento europeu. Por um lado, esse projectos inserem-se, na sua maioria, na problemática da união ou da federação mundial; por outro,

37

“que los Estados europeos no podrían intervenir positivamente em el nuevo concierto mundial sino a condición de establecer entre ellos un unión política permanente, Paneuropa”, (TRUYOL Y SERRA, 1999, p. 28)

38

JUDT, Tony. Postwar: a history of Europe since 1945. New York: Penguin Press, 2005. p. 153

39

(27)

representaram em muitos casos esforços isolados de idealistas, completamente desgarrados da realidade política e social e das correntes de opinião da época em que foram concebidos. As realizações mais significativas da história da união europeia raramente se inspiraram nos esquemas teóricos e abstractos elaborados ao longo dos tempos.40

Essa advertência merece ressalva. Embora a integração européia não tenha

obedecido aos esquemas teóricos dos séculos XVIII e XIX, ela se rendeu à lógica da escola

funcionalista, desenvolvida no século XX.

Um dos seus expoentes, David Mitrany, afirmava que os interesses dos Estados

não são comuns e, portanto, toda forma de ação coletiva, necessariamente, deixará de atender

parte destes interesses. A única forma de se evitar essa arbitrariedade seria selecionando e

integrando interesses comuns “onde eles o são e na medida que o são”41 para, então, criar arranjos funcionais para atendê-los. Com o sucesso dessa ação pragmática, reunir-se-iam

“esforços futuros no sentido de reproduzir a experiência num processo cada vez mais

amplo”42.

Jean Monnet, principal responsável pelo sucesso da integração da Europa, após

1945, ele próprio confessa a influência da escola funcionalista sobre sua forma de agir:

Encarava sem romantismo a fusão de dois países e a cidadania comum dos seus habitantes chamados a insurgirem-se contra o mesmo perigo. Também estava sem doutrina e não ligava este gesto a nenhum projeto federalista. Embora houvesse o esboço de uma construção institucional durável, não pensava, não tinha tempo de pensar nestes termos abstratos. Apenas a necessidade de resolver uma grave situação de fato me inspirava. No máximo, teria podido prever que, um dia, novas situações semelhantes atrairiam soluções semelhantes que iam de imediato além da cooperação.43

A bem da verdade, nenhum intelectual ou político foi capaz de conceber os rumos

da integração da Europa. Ela apenas aconteceu. O processo de integração da sociedade

40

PITTA E CUNHA, Paulo de. Integração européia. Coimbra: Almedina, 2004. p. 17

41

BRAILLARD, Philippe. Teoria das relações internacionais. Lisboa: Galouste Gulbekian, 1990. p. 573

42

GRIFFITHS, Martin. 50 grandes estrategistas das relações internacionais. São Paulo: Contexto, 2004. p. 278

43

(28)

internacional européia foi conseqüência das condições políticas, econômicas e sociais que ela

própria produziu com a Segunda Guerra Mundial. Esta é a primeira imagem que deve ficar

clara de todo este processo.

Na definição de Tony Judt (2005), a Segunda Guerra Mundial foi uma guerra

total, que envolveu tanto civis quanto militares. Ela foi uma guerra de ocupação, repressão,

humilhação e inúmeras privações. O modus operandi do exército nazista foi inovador na

história das guerras européias. Ele explorou a população e os recursos de cada Estado

dominado para financiar sua máquina de guerra.

Os prejuízos da Segunda Guerra Mundial não podem ser avaliados apenas em

função de termos econômicos, e sim, em função dos danos provocados na vida dos europeus.

Após os bombardeios de 1944 e 1945, estima-se que 25 milhões de pessoas ficaram

desabrigadas na União Soviética, enquanto outros 20 milhões ficaram em idêntica situação na

Alemanha. Das 12 mil locomotivas francesas operacionais antes da guerra, apenas 2800

tinham condições de uso. Dois terços da frota marinha francesa foi inutilizada. E,

principalmente, 36 milhões de pessoas morreram, sendo que, pelo menos 19 milhões, eram

civis. 44

Se sobreviver à guerra foi difícil, pior foi sobreviver, após o armistício. Não havia

alimento suficiente para a população sobrevivente, pois não havia mais produção agrícola. As

pessoas estavam doentes e subnutridas e, para agravar a situação de escassez de moradia,

alimentação e cuidados médicos, havia o problema dos refugiados.

Tony Judt estabelece com perfeição a diferença entre a Primeira e a Segunda

Guerra Mundial:

Ao final da Primeira Guerra Mundial foram as fronteiras inventadas e ajustadas, enquanto as pessoas eram deixadas em seus lugares. Depois de 1945, o que aconteceu foi justamente o contrário: sem nenhuma grande

44

(29)

exceção as fronteiras mantiveram-se intactas e as pessoas foram movidas através delas.45

A relocação destes refugiados dificultou, sobremaneira, o trabalho de reconstrução

européia, pois, antes de qualquer iniciativa, tinha que se definir em que Estado eles

retomariam suas vidas.

João Mota de Campos bem sintetiza as dificuldades enfrentadas pela Europa, após

seis anos de beligerância:

a Europa não é mais do que um vasto campo de ruínas: exausta espiritualmente, dividida por ódios indivisíveis, profundamente endividada e economicamente destroçada, defronta-se com a necessidade imediata de um ingente esforço de recuperação da sua capacidade de produção, destinado antes de mais a alojar, vestir e alimentar populações carecidas de meios de satisfazer necessidades elementares.

Mas o aparelho de produção, que durante seis anos fora em larga escala posto ao serviço do esforço de guerra ou destruído no decurso das hostilidades, não dispunha de equipamentos, nem de capital, nem de matérias-primas que lhe permitissem retomar a actividade normal.46

Não bastasse a quase completa destruição da sua infra-estrutura, a Europa ainda se

deparava com dois problemas iminentes: a questão alemã e a ameaça soviética.

A Segunda Guerra Mundial foi resultado dos problemas mal resolvidos da

Primeira Guerra Mundial. Ao final desta, a Alemanha foi obrigada a aceitar a plena

responsabilidade pelos prejuízos dela decorrentes. O valor das indenizações correspondia ao

dobro do Produto Nacional Bruto alemão. Os alemães se sentiram humilhados pelo Tratado

de Versalhes. Não possuindo mercados externos e desprovidos de fontes internas de recursos,

o pagamento das indenizações só foi possível mediante a depreciação da moeda alemã, o que

provocou a hiperinflação de 1923. Seus efeitos sociais foram igualmente catastróficos.47

45

“At the conclusion of the First World War it was boarders that were invented and adjusted, while people were on the road left in place”, (JUDT, 2005, p. 27)

46

CAMPOS, João Mota de. Idem. p. 31.

47

(30)

Em face das seqüelas da Primeira Guerra Mundial, era generalizada a

preocupação de que idêntica situação não se repetisse e a Alemanha não mais se sentisse

compelida a reunir novos esforços de guerra. Monnet testemunha essa preocupação, ao

afirmar que:

A ordem (...) teria em breve tendência a repetir as formas do passado e o maior risco seria o de reconstituir uma Europa de Estados soberanos tentados pela facilidade do protecionismo (...). Se os países da Europa voltarem, a proteger-se uns contra os outros, a constituição de grandes forças armadas será novamente necessária.48

Por sua vez, a União Soviética também era uma ameaça à paz da Europa ocidental

e central. Enfraquecidos do seu poderio militar e devastados pela guerra, os Estados

pertencentes à Europa ocidental e central não tinham condições de suportar uma investida

soviética sobre os seus territórios. João Mota de Campos ressalta que “os desígnios

hegemónicos da União Soviética ... faziam deste modo pesar sobre a Europa Ocidental uma

ameaça permanente...”.49

Entretanto, os resultados da Segunda Guerra Mundial não são todos negativos.

Tony Judt (2005) celebra a revolução social que ela promoveu. A ocupação dos territórios por

forças estrangeiras abalou por completo a autoridade e legitimidade dos governantes locais.

Além disso, as antigas elites políticas e econômicas foram liquidadas, sendo seu lugar

ocupado por uma elite cética, pragmática e desprovida de ideais superiores, a não ser, o ideal

de reconstrução européia. A guerra subverteu também o Estado de Direito, quebrando o

monopólio estatal sobre o uso legítimo da força. E, finalmente, a guerra promoveu uma

completa redistribuição dos fatores de produção.

Nada seria igual ao período anterior a 1939. Os europeus tinham que reconstruir

tudo e estavam preparados para o hercúleo trabalho da reconstrução. Afinal, não lhes restava

48

MONNET, Jean. Idem. pp. 196-197

49

(31)

alternativa. Não perceberam, no entanto, que a falta de esperança e o caos em que

mergulharam no pós-guerra lhe ofereceram o fator psicológico que é fundamental a toda

transformação: a vontade de mudar 50. Além disso, a relação dos povos europeus foi marcada, também, por um sentimento de “solidariedade objetivamente criada no continente pelas

condições mesmas da guerra” 51. E, principalmente, a idéia de uma Europa unida, restrita aos círculos políticos e intelectuais, ganhou o apelo popular que, até então, nunca havia

alcançado52.

1.3 A fase da cooperação: 1946-1950

Em 1945, a palavra de ordem era reconstruir. No entanto, a reconstrução dependia

de planejamento. Após a Segunda Guerra Mundial, assistiu-se a uma maior intervenção

estatal na economia, por meio de nacionalizações de setores industriais e agrícolas

estratégicos. O planejamento também tinha um aspecto político. Na medida em que o Estado

intervinha na economia, ele recobrava, gradualmente, sua legitimidade perante a população.

Em que pese a reunião de esforços e objetivos de governantes e governados em

prol da reconstrução, a verdadeira força-motriz deste processo foi o fluxo de investimentos

advindos do Plano Marshall que, de acordo com Monnet, inaugurou “um novo tipo de

relações internacionais: ajudar os outros a se ajudarem”53. Não fossem esses recursos financeiros, os europeus não teriam condições de suportar os gastos com as novas políticas

públicas, assim como os gastos com as dívidas assumidas durante a Segunda Guerra Mundial.

50

PITTA E CUNHA, Paulo de. Integração européia. Coimbra: Almedina, 2004. p. 47

51

“solidaridad objectivamente creada em el continente por las condiciones mismas de la guerra”, (TRUYOL Y SERRA, 1999, p. 37)

52

GUIGOU, Élisabeth. Idem. p. 35

53

(32)

Entrementes, a participação dos E.U.A. na reconstrução da Europa não se limitou ao auxílio

financeiro.

A preservação da paz na Alemanha forçou os E.U.A. a permanecerem

militarmente na Europa. Contudo, eles tinham consciência de que a ameaça soviética sobre a

Europa ocidental e central só seria contida mediante a remilitarização e a reconstrução da

economia alemã, a qual, em razão do tamanho do seu mercado consumidor, do seu potencial

industrial e dos insumos necessários à indústria de base54, era imprescindível à reconstrução européia.

Em 1946, Winston Churchill já havia abraçado a idéia de reconciliar Alemanha e

França, que se opunha com veemência à remilitarização da Alemanha e se ressentia, ainda, da

humilhação sofrida durante a ocupação nazista.

Em 1948, a cooperação internacional entre os Estados europeus teve,

efetivamente, início. Em janeiro, Bélgica, Holanda e Luxemburgo criaram uma pauta

aduaneira externa comum para facilitar o comércio entre eles. Em março, Bélgica, Holanda,

Luxemburgo, França e Reino Unido criaram a União da Europa Ocidental, a qual previa a

assistência mútua entre os Estados em caso de agressão. Finalmente, em abril, dezessete

Estados europeus criaram a Organização Européia de Cooperação Econômica – OECE55 - para decidir a forma de aplicação dos recursos do Plano Marshall.

Em 1949, após a realização da Conferência de Haia, foi criado o Conselho da

Europa. Embora João Mota de Campos (2000) destaque o relevante papel desta organização,

especialmente, na definição dos direitos do homem, Tony Judt adverte que o Conselho da

Europa não tinha poder, tampouco autoridade e, portanto, foi insignificante sua importância

54

Principalmente, carvão e ferro.

55

(33)

no processo de cooperação.56 Na sua opinião, relevante foi a criação da Organização Tratado do Atlântico Norte – OTAN, verdadeira tentativa de dividir informação e cooperar em matéria

de defesa, segurança, comércio, regulamentação monetária, dentre outras.

Todas as organizações eram caracterizadas pela cooperação inter-governamental,

sem transferência de soberania57, ou seja, “não implicam na delegação de faculdades soberanas por parte dos Estados membros e se baseiam no princípio de unanimidade das

decisões.”58.

Jean Monnet confessa seu desagrado com os mecanismos de cooperação, ao

afirmar que são um “método que favorece a discussão, mas não resulta em decisão. Não

permite transformar as relações entre os homens e entre os países nas circunstâncias em que a

união é necessária”59. Essa resistência influenciaria, sobremaneira, sua participação nos projetos de integração que adviriam a partir de então.

1.4 O início da integração: 1951-1956

Superadas as iniciativas de cooperação, finalmente, foi dado o primeiro passo

rumo à integração. Em 1950, Robert Schuman, Ministro dos Negócios Estrangeiros da

França, propôs a colocação da produção franco-alemã de carvão em aço sob uma autoridade

comum numa organização aberta aos demais Estados europeus60.

A declaração de Schuman tinha por fundamento a política econômica de Jean

Monnet, o Plan de Modernisation et d’Equipement, que tinha o objetivo de assegurar a

56

JUDT, Tony. Idem. p. 155

57

GUIGOU, Elisabeth. Idem. p. 39

58

“no implican delegaciones de faculdades soberanas por parte de los Estados miembros y se basan em el principio de la unanimidad de las decisiones”, (TRUYOL Y SERRA, 1999, p. 44)

59

MONNET, Jean. Idem. p. 29

60

(34)

reconstrução imediata da indústria de base e de alguns setores estratégicos da economia

francesa. No entanto, o sucesso deste plano dependia da existência de mercados consumidores

para absorver o excesso da produção, assim como de fornecedores de matéria-prima, razão

pela qual era de crucial importância o restabelecimento de relações econômicas com a

Alemanha.

Ademais, a constituição de uma organização supranacional nestes moldes

resolveria três outros problemas: reorganizaria a indústria siderúrgica européia; eliminaria as

causas de novos conflitos franco-germânicos; e, superaria fórmulas tradicionais de cooperação

que eram incapazes de promover a integração européia.61.

Aliás, a solução do conflito franco-germânico, ao lado da reconstrução e

modernização da França, eram as principais preocupações de Monnet. Temeroso de que, se

nada fosse feito, uma nova guerra se iniciaria, ele professava:

É preciso mudar o curso dos acontecimentos. Para isso é preciso mudar a mente dos homens. Não bastam palavras. Só uma ação imediata voltada para um ponto essencial pode mudar a situação estática atual. É preciso uma ação profunda, real, imediata e dramática que mude as coisas e faça entrar na realidade as esperanças em que os povos estão a ponto de não mais acreditar.62

Esta organização não solucionaria, apenas, problemas políticos e econômicos.

Antes de tudo, ela atenderia a um problema existencial, a preservação da diversidade da

sociedade européia, a qual tinha que enfrentar o “‘desafio’ de uma nova civilização

tecnológica de dimensões planetárias”63. Em razão de sua fragilidade do pós-guerra, os povos europeus precisavam de uma instituição que promovesse seu desenvolvimento interno e,

assim, preservasse-os do solapamento de modos de vidas estrangeiros, o que é consectário do

auxílio político-econômico de terceiros.

61

CAMPOS, João Mota de. Idem. p. 51

62

MONNET, Jean. Idem. p. 257

63

(35)

Em 1951, em Paris, foi, então, instituída a Comunidade Européia do Carvão e do

Aço – CECA, composta pela Alemanha, Bélgica, França, Holanda, Itália e Luxemburgo.

A grande inovação deste tratado foi a criação da Alta Autoridade que detinha

poderes para “encorajar a competição, definir políticas de preços, investimento direto e

comprar e vender em nome dos Estados participantes. Mas acima de tudo tiraria o controle do

Ruhr e de outros recursos vitais alemães das mãos alemãs.”64

A CECA foi um exemplo da integração funcional. A despeito de fórmulas

idealistas que já antecipavam a imediata criação de uma federação política, as partes

envolvidas limitaram-se a estabelecer a integração sobre um setor específico da economia. A

respeito desta forma de integração, Paulo de Pitta e Cunha ressalta que:

Na visão “funcional”, a CECA era concebida como o primeiro degrau de um esquema complexo, em que se processaria a transferência gradual para as autoridades comuns de poderes relativos aos diferentes sectores da vida económica, suscitando-se a integração total das economias, como prelúdio da federação política. 65

Em virtude da criação desta autoridade comum, com poderes de decisão sobre as

partes, o Reino Unido rejeitou, desde o início, a adesão ao Tratado de Paris. Tony Judt

ressalta que a recusa do Reino Unido não se fundamentou, exclusivamente, na questão da

supranacionalidade. Foi resultado também de um julgamento errôneo dos britânicos, uma

verdadeira arrogância de que, como saíram vitoriosos da Segunda Guerra Mundial, suas

instituições e hábitos que sobreviveram à beligerância estavam corretos e não precisavam ser

modificados.66

Ao final da Segunda Guerra Mundial, a França não lutava apenas pela

reconstrução da sua economia, mas também pela recuperação do seu prestígio no cenário

64

“encourage competition, set pricing policy, direct investment and sell on behalf of participating countries. Bu above all it would take control off the Ruhr and other vital german resources out of purely german hands.”, (JUDT, 2005, p. 156)

65

PITTA E CUNHA, Paulo de. Direito Institucional da União Européia. Coimbra: Almedina, 2004. p. 17

66

(36)

internacional, onde as decisões passaram a ser tomadas, exclusivamente, pelos E.U.A. e o

Reino Unido.

Com a ausência do Reino Unido no início do processo de integração europeu, o

poder político da Europa ocidental recaiu sobre as mãos da França, ou seja, de Paris que, “por

mais uma vez – e pela última – foi a capital da Europa.” 67

A CECA logo produziu impressionantes resultados. A produção do aço

quadruplicou em relação à década de cinqüenta. O aço era de melhor qualidade, mais barato e

menos poluente. A produção do carvão alcançou elevado desenvolvimento tecnológico, de

segurança e qualidade ambiental.68

Para Jean Monnet, o sucesso da CECA não se restringia aos aspectos materiais.

Ele, também, “significava que as fronteiras estavam definitivamente condenadas, que a

soberania podia ser delegada e que as instituições comuns funcionavam bem” e,

principalmente, criava as condições necessárias para os europeus aprenderem, “pouco a

pouco, a faculdade de viver em conjunto e associar suas forças criativas”.69

Em função do sucesso da CECA, os seis Estados-signatários pretendiam

aprofundar o processo de integração, quanto mais, diante do recrudescimento da Guerra Fria,

após o início da guerra da Coréia, em 1950. Era preciso reorganizar a defesa européia70. Em maio de 1952, em Paris, assinaram o Tratado que criava a Comunidade Européia de Defesa –

CED – e, em setembro do mesmo ano, assinaram o Tratado de instituiria a Comunidade

Política Européia – ComPE.

No entanto, estas duas iniciativas foram, desde o início, interrompidas pela

Assembléia Nacional francesa, que não ratificou a criação da CED por temer que a

67

“Once more – and for the last time – Paris was the capitol of Europe.”, (JUDT, 2005, p. 210)

68

Disponível em: < http://europa.eu.int/scadplus/treaties/ecsc_pt.htm#RESULTS> Acesso em 29 jun. 2005

69

MONNET, Jean. Idem. p. 345

70

(37)

remilitarização alemã prejudicasse a reconstrução, conduzida pela CECA. Não havendo força

militar a sustentar uma organização política, a idéia da ComPE também foi logo abandonada.

1.5 A integração em marcha: 1957-1985

O processo de integração europeu estava estagnado no meio dos anos cinqüenta.

A derrocada do poderio colonial europeu, processo que teve início ao final da Segunda Guerra

Mundial, foi o incentivo de que os Estados europeus precisavam. Não mais dispondo dos

recursos coloniais, eles voltaram suas atenções para a própria Europa e para sua integração.

Estando evidente que o processo de integração não podia avançar em outros

planos, após o fracasso da CED e da ComPE, os Estados-membros da CECA adotaram, de

novo, a lógica funcionalista, colocando em discussão setores em que não haveria resistência

das partes envolvidas por estarem em jogo apenas interesses comuns.

Após a Conferência de Messina, realizada em 1955, os Estados-membros da

CECA concordaram com a criação de um mercado comum europeu e uma comunidade para

regular a energia nuclear.

Em 1957, em Roma, são criadas duas comunidades, a Comunidade Econômica

Européia – CEE – e a Comunidade Européia de Energia Atômica – EURATOM, as quais

eram compostas, exclusivamente, pelos Estados-signatários do CECA, ou seja, Alemanha,

Bélgica, França, Holanda, Itália e Luxemburgo.

A CEE representou, então, um momento de profunda inovação. Ao invés de uma

zona de livre comércio ou de uma união aduaneira, sua pretensão era constituir um mercado

comum, baseado na livre circulação de mercadorias, pessoas e capitais. A constituição desse

(38)

pela “supressão de obstáculos às relações económicas entre os espaços nacionais”71. Embora o Tratado de Roma previsse medidas positivas de integração, ou seja, de coordenação de

políticas econômicas dos Estados-membros, a primeira alternativa foi mais utilizada.

Para Tony Judt, a criação do mercado comum europeu não foi a grande inovação

do Tratado de Roma. Em sua opinião, a criação do TJCE provou-se infinitamente mais

importante para o processo de integração, embora, à época, passasse despercebida sua

importância.72

A integração da Europa amadureceu quando os Estados não possuíam força

suficiente para competirem individualmente no cenário internacional. A idéia de que as CEE e

a EURATOM foram criadas com o objetivo de desafiar o crescente poder dos E.U.A.,

compartilhada por Paulo Pitta e Cunha73, é, na opinião de Tony Judt, um completo absurdo, porque elas “dependiam totalmente da segurança garantida pelos americanos, sem a qual seus

membros nunca teriam sido capazes de suportar a integração econômica, dividindo a sua

preocupação com a defesa comum” 74.

Ao final da década de cinqüenta, a economia dos Estados-signatários dava

mostras do seu ressurgimento, principalmente, no setor agrícola. Na França, já havia um

excesso de produção que tinha que ser comercializado, razão pela qual ela tinha especial

interesse na formação do mercado comum. Além da abertura de novos mercados

consumidores, a França também tinha interesse na regulamentação do mercado agrícola, de

modo a prevenir excessos de produção e a concorrência de produtos estrangeiros, o que foi

levado a termo pela Política Agrícola Comum.

71

PITTA E CUNHA, Paulo de. Direito Institucional da União Européia. Coimbra: Almedina, 2004. p. 17

72

JUDT, Tony. Idem. p. 303

73

“Reduzidas à condição de Estados de população média e pequenas dimensões territoriais, os principais países da Europa Ocidental não podiam, individualmente, suportar o confronto – em matéria política, econômica ou militar – com os Estados Unidos ou com a União Soviética”, (PITTA E CUNHA, 2004, p. 130)

74

(39)

A ampliação e a regulamentação do mercado agrícola é um exemplo dos efeitos

positivos da integração promovida pela Comunidade Econômica Européia. No entanto, suas

vantagens se restringiam aos Estados-membros. Pretendendo usufruir destes benefícios, novos

Estados pleitearam sua adesão. Neste momento, o Reino Unido vislumbrou o elevado preço

que pagaria por ter recusado a adesão à CECA.

Ressentida da redução do seu papel no cenário internacional, resultado de um

alinhamento das políticas externas dos E.U.A. e do Reino Unido, a França foi intransigente

quanto à adesão do Reino Unido às Comunidade Econômica Européia e a Comunidade

Européia de Energia Atômica.

Em retaliação, em 1960, em Estocolmo, o Reino Unido liderou o movimento que

resultou na criação de uma zona de livre comércio, a Associação Européia de Livre Comércio

– AELC75 – composta pela Áustria, Dinamarca, Noruega, Suécia, Suíça e Portugal. Conforme destacado por Paulo de Pitta e Cunha, a criação desta zona de livre comércio “assinalou a

divisão da Europa em dois grupos comerciais (o Grupo dos Seis-CCEE; o Grupo dos

Sete-EFTA).” 76

Essa celeuma não impediu as Comunidades Européias de produzirem seus

sucessos. Tony Judt afirma que os primeiros resultados foram impressionantes, o que impôs

aos demais Estados europeus a necessidade de fazer parte deste processo:

As tarifas intracomunitárias foram removidas em 1968, bem à frente do prazo. O comércio entre os seis Estados-membros quadruplicou no mesmo período. A força de trabalho agrícola reduziu-se constantemente, a 4 por cento ao ano, enquanto a produção agrícola por trabalhador cresceu nos anos sessenta a uma taxa anual de 8,1 por cento. Ao final da primeira década, e sem a sombra de De Gaulle, a Comunidade Econômica Européia havia adquirido uma aura de inevitabilidade, razão pela qual os Estados europeus começaram a formar filas para fazer parte dela.77

75

Na língua inglesa, European Free Trade Association – EFTA.

76

PITTA E CUNHA, Paulo de. Direito Institucional da União Européia. Coimbra: Almedina, 2004. p. 20

77

(40)

O ano de 1969 foi, então, marcado pelo primeiro aprofundamento e alargamento

das Comunidades Européias. Aprofundamento no sentido de que incluir os objetivos de

integração econômica e monetária dos Estados-membros. Alargamento no sentido de

autorizar a adesão de novos membros.

Após a renúncia de Charles de Gaulle, as posições da França a respeito da adesão

de novos membros, no caso, o Reino Unido, ficaram menos radicais e, portanto, em 1973,

Dinamarca, Irlanda e Reino Unido se juntaram às CCEE.

Durante os anos cinqüenta aos meados dos anos setenta, a Europa viveu seus anos

dourados, de intensa prosperidade. A economia européia ressurgiu integrada neste período,

em função da conjuntura político-econômica. Tony Judt (2005) ressalva, entretanto, que as

CCEE não foram as responsáveis pela integração da Europa, e sim, representaram apenas a

institucionalização de um processo que já se encontrava em caminho.

A euforia dos anos dourados foi solapada pelo pessimismo dos anos setenta. A

crise financeira internacional, provocada pela renúncia unilateral dos E.U.A. ao sistema de

câmbio fixo, em 1971. O primeiro choque provocado pela elevação dos preços dos barris de

petróleo, em 1973. O desemprego estrutural na economia européia como resultado da

modernização dos meios de produção. Todos esses elementos levaram à crença generalizada

de que os bons tempos tinham passado. Os anos setenta foram uma “era de cinismo, ilusões

perdidas e expectativas reduzidas.” 78

No entanto, também foram marcados por um novo período de expansão das

Comunidades Européias, especialmente, entre 1973 e 1986. Após a adesão de Dinamarca,

Irlanda e Reino Unido, em 1973, foi levada a termo a primeira eleição direta dos

Community had acquired an aura of inevitability, which is why other European states begun line up to join it.”, (JUDT, 2005, p. 309)

78

Referências

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