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“outras Arqueologias”

1.5. Enquadramento metodológico: Tecnologias

2.2.3. Principais alterações em época romana

A ocupação efectiva do Noroeste na época de Augusto não supôs o fim dos oppida e dos castros. Todavia, a partir de meados do século I d.C. as formas pré-romanas de ocupação da paisagem foram dando progressivamente lugar à instalação de outros tipos de assentamentos tipologicamente romanos (Pérez-Losada, 2002). A par do estabelecimento destes novos assentamentos romanos, que emergem em redor da capital de civitas, está a construção de uma complexa rede viária e também o aproveitamento intensivo dos recursos naturais.

O povoamento romano, particularmente aquele relacionado com os núcleos urbanos e os aglomerados secundários (ibid.), situa-se sintomaticamente em lugares preferenciais de controlo das vias terrestres e das rotas marítimo-fluviais, visando o controlo dos nós estratégicos de comunicação, materializando, desta forma, uma nova lógica de economia de mercado, visando a organização, controlo e exploração intensiva do território e dos recursos (Güimil-Fariña, 2015). Assim, há uma correlação bastante evidente entre as novas formas de povoamento romano e a estrutura viária, pelo que “podemos estabelecer que la situación de las ciudades y vias de comunicación en el noroeste intentan compaginar, del mejor modo posible, los intereses políticos de una zona recién pacificada después de largas confrontaciones com intereses económicos y de explotación del territorio” (Soto, 2013: 206). Muitos povoados fortificados mantêm-se ocupados até finais do século I d.C. devido ao facto de a sua localização geoestratégica ter servido necessidades no âmbito da nova matriz de povoamento e de organização territorial, em particular de controlo da rede viária (Carvalho, 2008; Martins, Lemos, & Pérez-Losada, 2005). Alguns destes povoados fortificados transformam-se em meados do século I d.C. em aglomerados secundários romanos (vici), como, por exemplo, o Castro de Alvarelhos (Trofa) (Moreira, 2009), Monte Mozinho (Penafiel) (Soeiro, 1984) ou o Monte Padrão (Santo Tirso) (Moreira, 2008), enquanto outros se transfiguram mesmo em cidades romanas, como Tongobriga (Marco de Canavezes) (Dias, 1997), que previamente teve uma ocupação da Idade do Ferro, claramente atestada pela presença de cultura material indígena, muralhas, estruturas domésticas circulares e de um balneário pré-romano, que foram quase inteiramente arrasados pela ulterior instalação da cidade romana (Urbanus, 2013). Os povoados fortificados que se encontram mais afastados destas novas dinâmicas, vão sendo paulatinamente abandonados e substituídos por povoados romanos de nova fundação, dando lugar à criação de novas centralidades e a uma nova organização da paisagem (Carvalho, 2008).

Significativamente, esta situação é acompanhada pelo desaparecimento na epigrafia do C invertido, tradicionalmente interpretado como símbolo de castellum ou castro, na transição do século I para o II d.C. (Pereira-Menaut, 1982). A interpretação mais amplamente aceite destes elementos define-as como entidades de povoamento, agrupadas ou dispersas, que articulavam o espaço rural, embora na dependência das civitates (Orejas & Ruiz del Árbol, 2010). As civitates, que se situavam logo abaixo do nível administrativo conventual, correspondiam-se com um sistema de administração descentralizado, entregue às comunidades indígenas, formado por unidades territoriais que agregavam as populações indígenas, possuindo dimensão variável e uma sede, que tanto poderia ser um povoado de origem pré-romana como um novo aglomerado romano (Martins et al., 2005; Martins, 2009a), tendo uma clara relevância no esquema da nova administração imperial, designadamente ao nível da tributação (Sastre, 2001). Todavia, os castella parecem ter gozado de alguma autonomia: “The appearance of castella (present in Africa, Gaul and Italy) is interesting; the impression is of settlements with significant autonomy, able to respond, for instance, independently to Rome’s approach, yet linked nonetheless to larger communities owing to their small size. This fits well with the characterisation of the loyal Paemeiobrigenses from the Bronze of Bembibre, who chose an alternative course to their rebellious compatriots. Essentially Rome appears to have utilised existing ethnic and tribal boundaries, providing them with an institutional character in order to integrate and legally bind them to her rule. So the traditionally self-sufficient castros, the pre-Roman hillforts, were manipulated to form castella subdivisions within the civitates” (Griffiths, 2013: 136). López-Melero (2001) considera que a acção de Augusto poderá ter seguido aqui um padrão de sinecismo já em curso em época pré-romana, pelo que Roma terá reconhecido e fomentado esse processo, institucionalizando-o e integrando-o, assim, numa primeira organização provincial, sendo que esta situação se terá mantido pelo menos até finais do século I d.C., altura em que o C invertido parece desaparecer da epigrafia (Pereira- Menaut, 1982).

A expansão do poder imperial forneceu novas oportunidades para as comunidades indígenas e, sobretudo, para as elites. O império romano acarretou uma considerável expansão na produção, consumo e intercâmbio de matérias-primas, o que fomentou novas oportunidades e formas de vida. As populações adaptaram-se ao processo de expansão territorial aproveitando as novas oportunidades e vantagens decorrentes deste novo contexto, desenvolvendo aspectos das suas identidades e tradições pré-existentes enquanto forma de reprodução social, e adaptando outras, além de promoverem o aproveitamento dos recursos naturais dos seus territórios (Hingley, 2005).

A rede viária e as cidades, bem como os aglomerados secundários (Pérez-Losada, 2002), eram pontos fulcrais de comunicação e de conectividade entre as comunidades locais e o império. Era nas cidades e nestes aglomerados secundários onde as pessoas se encontravam e se estabeleciam novas relações sociais e onde novas formas de identidade eram construídas e negociadas, pelo que a cultura romana era assim adaptada de uma forma flexível e dinâmica. A comunicação e o urbanismo podem ter sido meios através dos quais se criou uma unidade imperial, oferecendo novas oportunidades às comunidades locais, inserindo-as na nova estrutura de relações imperiais (Hingley, 2005; Woolf, 1998).

Descreveremos, de seguida, um dos locais onde essas mudanças ocorridas em época romana se tornam mais evidentes e são também melhor conhecidas arqueologicamente:

Bracara Augusta.

2.2.4. Bracara Augusta

Iremos abordar Bracara Augusta, enquanto cidade principal e capital do conventus

Bracarensis, de forma comparativa em relação a Aquae Flaviae (6.2.), capital regional da

parte Oriental do conventus Bracarensis, no sentido de que ambas têm diversos pontos de semelhança e diferença, que serão devidamente sinalizados e analisados.

Bracara Augusta terá sido uma fundação civil de época augustana (Martins &

Carvalho, 2010; Martins & Fontes, 2010; Martins et al., 2005; Martins, 1999, 2006, 2009a, 2009b). A sua localização, segundo alguns autores (Lemos 1999; Lemos 2002; Morais 2005; Martins 2006; Martins 2009a; Martins & Carvalho 2010), possui uma óbvia centralidade, quer no contexto mais alargado do conventus Bracarensis, particularmente da sua metade Ocidental, quer no contexto mais restrito da região controlada pelos Bracari, em particular entre os vales do Cávado e Ave, surgindo como epicentro natural de comunicações para Norte, Sul, Este e Oeste (Lemos, 2003).

Coloca-se, para Bracara Augusta, a hipótese de a colina do Alto da Cividade, a zona mais elevada da colina onde se implantou a cidade romana, ter sido em época pré-romana um local “neutral”, comunitário e simbólico, de mercado e de negociação, de agregação e de interacção entre diferentes comunidades, particularmente os Bracari, ao qual a sua localização geoestratégica também não terá sido alheia, tal como não o foi a implantação da posterior cidade romana (Lemos et al., 2011; Lemos, 1999, 2007, 2010; Morais, 2005; Tranoy, 1981: 194).

Depois de mais de 30 anos de escavações arqueológicas sistemáticas em contexto urbano em Bracara Augusta (Martins & Fontes, 2010), existem ainda poucas evidências que suportem de forma clara a existência de um povoado fortificado da Idade do Ferro na colina onde se veio a instalar a cidade romana, apesar de alguns autores afirmarem peremptoriamente o contrário (Almeida, 2003a; Silva, 2007). Existem cidades romanas que foram erigidas sobre anteriores povoados proto-históricos, tais como Tongobriga (Urbanus, 2013) e Cale (Silva, 2010), tendo sido descobertas estruturas, ou pelo menos os alicerces, de construções da Idade do Ferro, embora no caso de Bracara Augusta tal não tenha ainda acontecido. Assim, não será de todo credível que a total ausência de contextos edificados proto-históricos em Bracara Augusta se deva ao intensivo programa de edificação da cidade romana que arrasou por completo os vestígios pré-existentes.

Todavia, apareceu em Bracara Augusta, sobretudo na Colina da Cividade, a cota mais alta da cidade, e na sua envolvente próxima, quantidades significativas de cerâmica de tradição indígena, que aparecem normalmente associadas a terra sigillata itálica e a ânforas Haltern 70 (Morais, 2005: 132). Apareceu também uma estátua sedente e uma cabeça de guerreiro galaico, ambas encontradas em contexto secundário, podendo ser provenientes de algum “dos oppida que circundavam a cidade” (Bettencourt & Carvalho, 1993: 283), um balneário pré-romano localizado nas obras de construção da nova estação de caminhos-de-ferro de Braga (Lemos et al., 2002), bem como algumas moedas ibéricas, tardo-republicanas e, sobretudo, as da caetra, que se poderão relacionar com a presença de contingentes militares numa fase inicial da ocupação da cidade (Zabaleta-Estévez, 2000).

Estes elementos, por si só, não pressupõem uma ocupação prévia da Idade do Ferro, mas tampouco a invalidam liminarmente, comprovando sim que a cidade possuía nas primeiras décadas de vida um forte núcleo populacional constituído por populações indígenas, o que também é corroborado pela epigrafia, tendo-se verificado uma escassa representação de cidadãos de direito romano, que, ou são imigrantes ou indígenas promovidos, sendo dominante a presença de peregrinos, libertos e escravos (Tranoy & Le- Roux, 1989).

Os elementos supracitados poderão antes indiciar a existência de um outro tipo de ocupação numa fase pré-urbana, não estritamente de âmbito habitacional, além de os dados arqueológicos e epigráficos corroborarem a existência de uma forte componente indígena no processo de povoamento da cidade.

No caso específico do balneário pré-romano (Lemos et al., 2002), foi já sugerida uma possível conexão entre este monumento e o Castro Máximo, associação extensível à estátua-sedente e à cabeça de guerreiro previamente referidas (Bettencourt, 2003: 148). Este povoado fica a cerca de 1500 metros para Nordeste do balneário, o que, à priori, poderá parecer uma distância algo excessiva, embora os limites do Castro Máximo sejam ainda bastante mal conhecidos, supondo-se, todavia, que tenha sido um povoado relativamente extenso (Carvalho, 2008; Castro, Correia, & Oliveira, 1980; Martins, 1990; Teixeira, 1936) (Figura 10).

Este povoado foi quase integralmente destruído pelas obras de construção no novo estádio municipal de Braga, pouco se sabendo sobre as intervenções de salvaguarda aí realizadas, a não ser que revelou “(…) importantes vestígios de estruturas habitacionais, das quais se destaca parte de um pavimento em argila ornamentado com motivos de tipo geométrico, e um conjunto valioso de cerâmicas maioritariamente de tradição indígena, genericamente datáveis entre o séc. I a. C. e os meados do séc. I da nossa era.” (Morais, 2005: 127). Desta forma, segue ainda em aberta a discussão de se este balneário estaria directamente relacionado com o referido castro ou antes com uma estrutura de apoio a um eventual espaço de reunião, de possível carácter sagrado, dos Bracari localizado na colina do Alto da Cividade (Lemos, 2007; Morais, 2005).

Figura 10: Imagem aérea de Braga com a localização do Castro Máximo (A) e do balneário pré-

romano (B). Adaptado de http://avenidacentral.blogspot.com/2008/07/o-castro-mximo-sms-este- caracterstico.html.

A existência de um acampamento militar em Bracara Augusta que, segundo a hipótese de Schülten (1943: 176-177), seria o do próprio Publius Carisius, e apesar de hoje se saber que as duas outras capitais do Noroeste, Lucus Augusti (Rodríguez-Colmenero, 1996) e Asturica Augusta (García-Marcos & Vidal-Encinas, 1999), tiveram origem em acampamentos militares (Morillo-Cerdán, 2014), conta ainda com poucas evidências arqueológicas que permitam suportar a referida hipótese. Todavia, tal como já referimos anteriormente, foram encontrados vários numismas potencialmente relacionáveis com a presença de forças militares, nomeadamente várias moedas caetra (Zabaleta-Estévez, 2000: 395-399).

Além disso, Sande Lemos (2007: 207) não deixa de chamar a atenção para outros indícios que poderão ser, teoricamente, relacionáveis com equipamentos de tipo militar, nomeadamente as referências a um fosso em V na Quinta do Fujacal, do qual não adianta qualquer detalhe, e a estrutura de um possível horreum na zona do Alto da Cividade, eventualmente relacionado com o abastecimento militar, datado de finais do século I a.C., ou seja, anterior à primeira fase das termas do Alto da Cividade, que data dos inícios do século II d.C., embora a interpretação das ruínas do designado edifício pré-termal seja deixada em aberto, podendo mesmo comportar diferentes funcionalidades (Martins, 2005: 10-18).

Foi recentemente exumada nas proximidades da Fonte do Ídolo, interpretado como um santuário rupestre de tradição indígena dedicado à deusa Nabia (Garrido-Elena, Mar, & Martins, 2008), uma quantidade significativa de cerâmica de tradição indígena genericamente enquadrável no século I a.C., bem como um nível de solo escuro, rasgado por regos, aparentemente associados a estruturas perecíveis, pelo que esta zona estaria aparentemente já em uso pelas comunidades indígenas da região (Martins, 2011).

Posto isto, consideramos que a interpretação do contexto fundacional de Bracara

Augusta está ainda aberta a discussão, apesar de a hipótese mais estendida e mais bem

fundamentada ser a de uma fundação civil ex novo (Martins & Fontes, 2010; Martins et al., 2012; Martins, 2006, 2009a, 2009b, 2011) (Figura 11).

Capítulo 3 – Material e métodos