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Privações objetivas e vivências subjetivas da pobreza

trAjEtórIAs nA POBrEZA:

5.2 Privações objetivas e vivências subjetivas da pobreza

Conforme descrito no item anterior, as privações objetivas observadas em campo e destaca- das nos depoimentos referem-se, de forma sintética, aos seguintes aspectos:

• moradia inadequada por situações de: risco físico, insalubridade e desconfor- to extremo216; segregação territorial;

• insuficiência e instabilidade dos recursos monetários;

• trabalho com baixos rendimentos, descontínuo e sem garantia de direitos. • dependência de transferências monetárias e em espécie (cesta de alimentos)

por programas públicos;

• comprometimento dos vínculos de convivência familiar por precariedade das condições de vida

• escolaridade insuficiente e ausência de qualificação profissional e de vínculo empregatício;

215 Aqui vale lembrar a referência destacada no primeiro capítulo, conforme Lima (2010), acerca da dimensão da busca por formas de emancipação como componente da identidade concomitantemente à reposição dos papeis sociais, pressupostos.

216 Todas as famílias entrevistadas residiam ou em moradias sem infraestrutura básica (água, esgotamento sanitário, rede elétrica); ou com cômodos insuficientes às denominadas quatro funções básicas (repouso, alimentação, higiene e convívio/estar).

• acesso deficitário ou insuficiente aos benefícios e serviços públicos, funda- mentalmente na saúde, assistência social e educação infantil;

As referências acima, mais do que privações objetivas e ameaças à reprodução da vida, configuram vivências que se repetem cotidianamente provocando afetos, que reite- rados se transformam em sentimentos, compondo o universo subjetivo dos sujeitos, do qual se ocupa o presente item.

Assim, este item apresenta ou retoma depoimentos que evidenciam a cristaliza- ção de sentimentos suscitados pelas experiências de privação, seu teor “informativo” para a constituição da identidade, traduzindo parte do universo intangível das privações da pobreza como trajetória de vida. Sua apresentação se dá por um conjunto de aspectos que organiza e recupera os depoimentos coletados, analisados a luz dos conceitos que orientam esta tese.

Iniciamos por três entrevistadas: Silvania (31 anos - nome fictício); Josina (44 anos - nome fictício) e Tatiana (28 anos - nome fictício) e prosseguimos com as demais, opor- tunamente identificadas quanto às características básicas e os aspectos destacados.

5.2.1 Constituindo identidades

Nossa entrevistada, Silvania, 31 anos de idade (nome fictício), nascida no interior de São Paulo, reside na região, desde os sete anos de idade. Moradora há quinze anos em uma área pública de ocupação irregular, em um cômodo de blocos construído no patamar de cima da alvenaria na qual residem os pais. A energia elétrica do domicilio é fruto de ligação clandestina, enquanto o córrego próximo serve de “coletor” do esgoto doméstico. Mãe de duas meninas (quatro e 11 anos de idade), solteira, beneficiária do Programa Bolsa Família há mais de seis meses, recebendo na época da entrevista, 64 reais mensais. Bastante tímida e monossilábica, a entrevistada demonstra resignação às privações atuais e nos conta, de forma reiterada, que suas experiências de trabalho sempre foram como faxineira, segundo ela “apesar de ter o ensino médio”. Há mais de seis meses desempregada, aguarda resposta de uma família onde iria trabalhar de empregada doméstica, por indicação de uma colega.

Questionada quanto às suas maiores preocupações, ela rapidamente se refere às filhas. A filha mais velha (11 anos) busca independência e tem os “bailes funks” como objeto

de desejo, enquanto a filha menor (quatro anos) reitera pedidos à mãe por danoninhos. Silvania (nome fictício) enfrenta a cada uma das preocupações da maneira como pode, segundo ela, respectivamente:

(...) eu ‘prendo’ ela em casa, tranco a porta e não deixo sair [em referência à filha mais velha]. Ela não entende, acha que eu não quero o bem dela.” [Quanto à filha mais nova]: eu compro (danoninho) uma vez, e depois falo para ela, vai para creche que lá você vai comer. Não é danoninho, mas tem outras coisas né?” Complemen- ta: “aqui, o que está dando para comprar é arroz, feijão, salsicha, às vezes ovo... e meus pais me ajudam um pouco também, né?! Pagam o gás.

Mas, não foram as atuais privações materiais e monetárias que, de fato, mobiliza- ram suas emoções durante a entrevista. Embora, nos conte que enfrenta essas privações, por exemplo, se alimentando apenas uma vez por dia, ou no almoço, ou no jantar, que não toma condução, fazendo diversos percursos a pé, não enfatiza esses eventos, mas sim o fato de não conseguir se colocar em outras funções, que não sejam nas atividades de limpeza. Nossa entrevistada reforça sua percepção, segundo a qual, se tivesse realizado cursos de informáti- ca ou de inglês, estaria em melhor situação. Mas, quando estudava, nos conta que não havia “nada disso” e que “o que havia” custava muito (dinheiro). Ela completa, reiterando falas anteriores, dizendo que a dona do prédio onde ela trabalhou como faxineira lhe falava: “isso não é pra você. Você poderia estar fazendo coisa melhor! Você tem segundo grau [referindo- -se ao ensino médio]. Mas, eu não tenho experiência de nada”, complementa Silvania (nome fictício).

Diante de suas insistentes explicações “inconformadas” quanto à própria ausên- cia de formação profissional, retomo a pergunta sobre o que ela acredita que havia lhe falta- do. Ela inicia dizendo que acha que havia faltado vontade e interesse da parte dela. Pergunto então, se na juventude ela havia pensado sobre seu futuro, por exemplo, “o que você queria ser?” Se havia feito planos? Monossilábica, responde que não, diz que: queria casar, ter sua casa, seus filhos e trabalhar. Prossigo: mas, o que havia lhe faltado para que ela pudesse pensar e planejar seu futuro. Então, pela primeira vez, ela se emociona e surpreende com a resposta e a intensidade dos sentimentos relativos à infância na pobreza, até então ausentes na entrevista:

[Sobre o que havia lhe feito falta] Acho que foi a ausência da minha mãe. Eles [mãe e pai] saíam cedo para trabalhar e quando chegavam à noite, era só jantar e dormir. Não tinha conversa. Faltou conversa. Você tem mãe e pai pra te dar de comer, mas não pra te dar (...) atenção. Não tinha conversa, não tinha jeito, era assim ou a gente não sobrevivia! Foi assim a vida toda. Reunião na escola, minha mãe nunca foi. Não podia faltar no trabalho. Eu sei que eles não podiam fazer diferente [chora...], não tinha jeito... Mas, fez falta! Eu, com sete anos de idade ficava sozinha; levava meu irmão para a creche; voltava; cuidava da casa: arrumava tudo, fazia comida e ia para a escola. No fim da tarde, eu buscava ele (sic) na creche e voltava sozinha [para casa].

Pergunto à entrevistada, como ela se sentia diante daquela situação, ela diz muito emocionada: “eu ficava feliz de ajudar minha mãe; meu prazer era arrumar tudo (casa), para quando ela chegar, ela gostar de ver que tava arrumada (sic)”. Mas, prossegue em sua des- crição emocionada, sinalizando que o que permanecera foram os sentimentos de dor e medo, por ter feito provavelmente mais do que se sentia em condições de fazer à época:

Meu irmão, quando estava com 12 anos, caiu na escola, teve quatro traumatismo craniano. Eu que fiquei todo o tempo com ele no hospital, sozinha, mas não tinha jeito. Minha mãe não podia perder o emprego, eu sei... (chora) mas isso era mui- to... era muito pra mim! Até hoje meu irmão me tem como mãe... No dia das mães é uma lembrancinha para mãe e outra para mim. (Silvania, 31 anos - nome fictício). Embora, os sentimentos vivenciados pela entrevistada possam não ser de exclu- sividade da pobreza, essa por reiteradas experiências de privações objetivas parece torná- -los “quase” inevitáveis. Trata-se de afetos (desamparo, impotência, medo e solidão) que ultrapassam a condição de emoções momentâneas, “transformam-se” em sentimento, porque perduram e integram a subjetividade de quem os vivencia precocemente, de forma cotidia- na e solitariamente. São afetos que não são fortuitos, ou acidentais, uma vez que inscritos em trajetórias relacionadas a privações objetivas (e recorrentes) da pobreza. Nesse sentido, caracterizam um aspecto do sofrimento cotidiano face à pobreza, onde as privações são da ordem do intangível, de difícil identificação em parcela das investigações destinadas ao tema, mas decisivas ao conhecimento da pobreza, por meio das limitações impostas ao sujeito e à conformação de sua identidade.

Contribui para a compreensão dos conteúdos acima as abordagens voltadas à inves- tigação dos afetos, seu papel na constituição da identidade e, possivelmente, nas trajetórias do sujeito. Os afetos nos falam das concepções já destacadas, em referência a diferentes autores, com destaque para Damásio (1997), Lima (2010) e Sawaia (2007). Conforme os autores, o que nos afeta217 positiva ou negativamente participa em nossa identidade, conforma e nos informa (correta ou incorretamente) sobre nós mesmos, nossas eventuais possibilidades e limitações, referenciadas aos nossos contextos.

Em campo analítico complementar, Sen (2000) compreende a condição de pobreza como mais ampla do que a evidência de privações materiais, sendo a privação da multiplicidade dos recursos humanos (capacidades) bloqueados em seu desenvolvimento. Trata-se de aleijar a vasta e diversificada condição de desenvolvimento humano. Por essa razão, Sen conside- ra que se trata de compreender a pobreza “como privação da vida que as pessoas realmente podem levar e das liberdades que elas realmente têm. A expansão das capacidades humanas enquadra-se diretamente nessas considerações básicas” (SEN, 2000, p. 114). Assim, segundo Sen, pode-se dizer que estar na condição de pobreza é ainda mais do que enfrentar carências, tais como: a fome; a falta de cuidados com a saúde; a moradia precária e insegura; a escassez monetária; e seus rebatimentos nas diferentes fases da vida humana. É ter a multiplicidade dos recursos humanos (capacidades) bloqueados em seu desenvolvimento. Entendemos que, entre esses recursos se coloca, de forma primordial, aqueles do âmbito da subjetividade, associados à formação da identidade.

217 Conforme mencionado no primeiro capítulo, entendemos por afeto, tal qual propõe Sawaia (2007), tudo o que nos toca: experiências da ordem física (frio, fome etc) ou das emoções (medo, humilhação, raiva, etc), dado que somos corpo e mente, mas sem que haja cisão. Atribuímos sentido às experiências físicas e das emoções, porque somos subjetividade, e por essa razão, os sentidos não são decorrência do plano das ideias, mas da experiência dos afetos. Assim, o que se vive no corpo e na mente necessariamente adquire sentido (interpretação) subjetivo, porque é experimentando na dimensão particular, mas radicado no contexto histórico e social. As experiências de ordem física não o são stricto-sensu, porque não são vivenciadas sem que adquiram sentido, sem que sejam interpretadas e integradas à subjetividade. Assim, o frio, a exposição ao relento, a fome eminente não são somente experiências que afetam ao corpo, mas adquirem sentidos, tal como de impedimentos, constrangimentos, imposições limitadoras ao sujeito. Essas noções concebem o sujeito como “potencia de agir para manter a própria substância – que é de homem livre e alegre” segundo Sawaia, em referência à Espinosa. Por essa razão, os afetos cujos sentidos funcionam restringindo as possibilidades e capacidades humanas, assim como o medo, a humilhação, o rechaço social, impedindo a conformação das identidades são aqui tratados como: afetos restritivos ao exercício do Ser.

Assim, supomos que, no caso de nossa entrevistada acima (Silvania - nome fictí- cio), o não desenvolvimento de capacidades, como os requisitos à formação profissional – al- mejada por ela – foram antecedidos por sentidos e significados subjetivamente atribuídos às privações da pobreza, na forma de sentimentos de impedimento à vida, privação de atenção, convivência amorosa e orientação da parte das relações familiares, comprometidas (objetiva e simbolicamente) por rotinas desgastantes destinadas fundamentalmente à manutenção da so- brevivência familiar. Sentidos e significados que passam a integrar a conformação da identi- dade da entrevistada, muito mais na forma de “falta sentida” do que de projeto a ser realizado, ao que sugere seu depoimento, influenciando percepções acerca de si mesma, da realidade vivenciada em suas possibilidades e limitações.

Assim, de forma apropriada, Dierterlen (1991) em referência a Nussbaum, des- taca o sentido atribuído à realização ampla de dimensões humanas em complementação ao atendimento às necessidades associadas à sobrevivência. Entre as dez orientações propostas pela autora como referenciais de bem estar humano lembramos218:

(...) poder vivir con y para otros, reconocer y mostrar preocupación por otros seres humanos, comprometerse en varias formas de interacción familiar y so- cial; poder usar los cinco sentidos, imaginar, pensar y razonar; poder formase una concepción de bien y comprometerse a una reflexión crítica acerca de la planificación de la propia vida. (DIERTERLEN, 2006; p. 66-67).

No cenário de ausências e privações, traduzido pela entrevistada acima (Silvania - nome fictício), pode-se dizer que sua trajetória e de sua família coloca a questão da pobreza como processo de impedimento às possibilidades humanas fundamentais, sobretudo a pos- sibilidade da constituição de identidades relativamente autônomas, nos termos formulados por Lima (2004). Nesse sentido, incluem a capacidade de se constituir e atuar conforme os papeis sociais que nos reservados mas a esses acrescentar projetos que reflitam necessidades identificadas menos com expectativas socialmente definidas e mais com desejos do próprio

self, conforme primeiro capítulo.No caso de Silvania (nome fictício), os sentidos atribuídos

subjetivamente às privações da pobreza incluem a dor do desamparado, sem que houvesse a 218 Destacado no primeiro capítulo desta tese.