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1. INTRODUÇÃO

1.5. Problemática e objetivos da investigação

O objeto de estudo é a organização da manutenção de aeronaves militares na FAP em ambiente de Paz. Esta Organização é um sistema que pode ser observado como um conjunto de entidades ou elementos interrelacionados (Reason & Hobbs, 2003), ou seja, é um sistema aberto que incorpora entradas, processos de transformação e saídas

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(McDonald, 2006). Não havendo uma definição única para sistema, recorre-se à tradução livre de Saúde (2007, p. 17):

“Sistema é um conjunto de dois ou mais elementos que satisfazem as três condições seguintes:

i) o comportamento de cada elemento afeta o comportamento do todo;

ii) o comportamento dos elementos e dos seus efeitos no todo são interdependentes; iii) quaisquer que sejam os subgrupos de elementos que se formem, cada um deles afecta o comportamento do todo e nenhum tem um efeito independente sobre ele”.

Warring (1996) acrescenta, entre outros pontos, que os sistemas têm um “dono”, possuem algumas caraterísticas imprevisíveis e têm fronteiras onde no seu exterior há outros sistemas aos quais são permeáveis.

A aviação é assim um sistema complexo onde o homem e a máquina (em alguns casos com tecnologia de ponta) se interrelacionam constantemente, onde se exige que, entre outras coisas, se opere com segurança (flight safety11), fiabilidade, economicidade

e respeitando o ambiente, e onde o ser humano é peça fundamental.

Nos últimos anos tem-se presenciado exemplos de como as organizações, como um todo, estão sujeitas ao erro, e em algumas situações esses erros levaram a desastres catastróficos que se tornaram objeto de estudo (p. ex. Chernobyl12, Challenger13, Nimrod14). Segundo Reason (1997) os acidentes organizacionais – acidentes resultantes

de fatores a montante do acontecimento (fatores organizacionais, situacionais e atos inseguros) – são eventos difíceis de entender e de controlar. Mais tarde Reason (1998) explicava que os acidentes organizacionais eram resultado de tecnologia moderna, eram

11 Termo associado à segurança de voo e não à segurança de pessoas e/ou bens transportados (uma componente da segurança associada a security).

12Maior acidente nuclear de que há registo e que aconteceu em 26 de abril de 1986 na central eléctrica da

Central Nuclear na então República Socialista Soviética da Ucrânia, actual Ucrânia.

13 Segundo foguetão construído pela National Aeronautics and Space Administration (NASA) que a 28 de janeiro de 1986 explodiu após o seu lançamento matando os sete tripulante entre os quais uma professora primária. Uma das causas está associada a erro organizacional.

14Acidente com um avião Nimrod XV230 onde, em 26 de setembro de 2006, morreram os 14 tripulantes.

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raros, com consequências diversas, com várias defesas e múltiplas causas e contavam uma história.

A presente Tese de doutoramento estuda o erro de forma holística, ou seja, o erro não só na vertente do ser humano, mas também na vertente organizacional. Para Reason (2003) dizer apenas que o humano erra é demasiado evidente e até classifica como uma observação sem interesse. O que importará, nas palavras do mesmo autor, é perceber como é que o ser humano recupera dos erros, em particular, nos casos em que implica inovar.

No entanto a inovação na prática da manutenção aeronáutica é questionável e merece uma reflexão consciente sobre o que é legítimo/legal fazer (i.e. seguir os procedimentos validados por entidades competentes). Eventualmente no passado, antes da existência de normas aéreas, a inovação estaria presente no dia a dia dos mecânicos de manutenção aeronáutica. Atualmente existirá menos margem para inovar em ações de manutenção de aeronaves modernas. A inovação, na maior parte dos casos, a acontecer deverá passar por um processo de validação (conceitos de aeronavegabilidade). Olhar para a inovação como um resultado positivo, é olhar para a face da moeda correspondente às “consequências positivas do erro”. Ao longo da investigação vai ficar percetível que todo o erro tem duas faces: a negativa e a positiva.

Relativamente à face positiva, através da análise de diferentes relatórios, de

entrevistas individuais e dos Focus Group15 (FG), percebe-se que não se tem dado o

devido valor nas investigações de incidentes/acidentes, porque há uma concentração de

15 Como se explicará no capítulo sobre a metodologia, o FG é um método de recolha de dados

recorrentemente utilizado em investigações na área das ciências sociais. Este método permite obter, entre outros, informação relativa às atitudes e às crenças dos entrevistados.

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esforços na abordagem negativa que tem a ver essencialmente com identificação de responsabilidades e compreensão do que aconteceu.

Nos trabalhos científicos, no essencial também têm sido estudados os efeitos negativos dos erros (incidentes e acidentes) e não os efeitos positivos dos mesmos (van Dyck et al., 2005; Guchait et al., 2015), ou seja, de certa forma procura-se o conceito de

prevenção16 do erro (Reason, 1990) em que o principal objetivo é garantir que o erro não

ocorre.

Quando se trata de analisar os acidentes (as ditas investigações de incidentes/acidentes), as abordagens aparentam ser muito vocacionadas para a prática, ou seja, para a resolução de problemas concretos (processos reativos): investigar a causa do acidente (o que é que deu origem e não o que criou as condições para o problema). Os próprios modelos de investigação de acidentes têm essa conotação (p. ex. o modelo de Reason, o modelo de Human Factors Analysis and Classification System), associando-se ao conceito de prevenção. Kletz (2001) esclarece que mais do que conhecer as causas, é importante perceber o que fazer para que o acidente não ocorra (processos retroativos ou proativos). Para a Federal Aviation Administration (Avers et al., 2014) o desafio continua a estar na capacidade de encontrar as causas primárias para que, dessa forma, se lide proactivamente com aquelas.

O potencial, a longo prazo, das consequências positivas do erro (p. ex. aprendizagem, inovação, desempenho e resiliência) é menos óbvio e carece de validações empíricas (van Dyck et al., 2005; Guchait et al., 2015). Uma forma de reter as consequências negativas dos erros e promover as consequências positivas, é através da gestão do erro. Esta aproximação pressupõe que se trabalhe com o erro (ou com a sua

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probabilidade) e com as suas consequências depois deste ter acontecido, que se comunique rapidamente a ocorrência e que se aprenda com ele.

Como se explicou no início do capítulo, o empenho pelo estudo dos erros na manutenção prende-se, essencialmente, no facto da investigadora ter experiência profissional na área da engenheira aeronáutica, estando, por isso, envolvida diretamente com o tema. Acresce o facto de que a manutenção de aeronaves é, como já mencionado, essencial para a segurança das mesmas e dos que delas fazem parte (McDonald et al., 2000).

O interesse na relação entre ações de manutenção e segurança traduz-se numa ambição prática: criar um modelo teórico capaz de explicar as consequências positivas dos erros na manutenção de aeronaves (i.e. aviões e helicópteros). Por sua vez, essa explicação deverá conduzir à possibilidade de encontrar um caminho (processos) que potenciem o resultado dessas mesmas consequências.

De facto, a manutenção intervém consideravelmente nos processos associados à aviação, estimando-se que por cada hora de voo existam 12 horas de manutenção (Hobbs, 2008). Este facto contribui para que se compreenda que a manutenção de aeronaves é uma componente importante da segurança de voo (Hampson, Junor & Gregson, 2012). Grande parte dos estudos são atribuídos à Federal Aviation Administration (FAA), à NASA, aos projetistas de aeronaves e às empresas de manutenção (Gramopadhye & Drury, 2000).

Estudar os erros na manutenção, depois de terem ocorrido, é como se estivesse a contar uma história onde, segundo Woods & Shattuck (2000) existem vários contribuintes que juntos criam as condições para a falha começando no fim (acontecimento) e indo para o princípio (diversas razões que levaram ao acontecimento).

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Os factos dessa história podem ser materializados através de entrevistas, recolha de dados técnicos (p. ex. recolhas de óleo, análises ao material, aos sistemas de gravação das aeronaves), recolha de dados registados nos diferentes sistemas de informação.

As explicações causais dos incidentes/acidentes deverão ter implicações no controlo organizacional na medida em que algo falhou e, em última instância, a Organização deveria ter dado condições para que tal não acontecesse

Assim o presente estudo centra-se na necessidade de obtenção de dados que contribuam para a explicação do que já aconteceu e para a definição de indicadores que ajudem a antecipar as potenciais ocorrências iguais ou diferentes das já ocorridas. Em suma não se pretende apenas ser reativo mas também proativo apresentando um modelo, associado à gestão de segurança, que permita à Organização prever e controlar, mas, e segundo Reiman& Rollenhagen (2011, p. 1269), ser ao mesmo tempo “flexible enough to adapt, innovate and learn”.

Um dos resultados finais da Tese será a caraterização do erro de manutenção no setor da defesa e na perspetiva dos mecânicos. O erro como se verificará no capítulo da análise de dados “(...) pode ser várias coisas”, ou seja, pode ter diversas dimensões associadas à forma como se o quer abordar. Por exemplo, o erro pode ser visto numa perspetiva jurídica em que se houver intenção não se considera aquela ação um erro mas um ato deliberado de não cumprir de forma correta. Numa perspetiva psicológica, tendo em consideração os estudos de Reason, também o erro terá que ser não intencional pois caso contrário designa-se de violação.

Ainda no que diz respeito ao erro de manutenção espera-se conseguir explicar de que forma é que este pode ser visto por um prisma positivo e, com isso, conseguir ter algum tipo de ganho numa situação que à partida só teria aspetos negativos.

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Todo o trabalho de investigação levará a que a pergunta colocada inicialmente Como é que (através de que processos) a manutenção de aeronaves (Organização) gere os erros latentes (desempenho) de forma a potenciar as suas consequências positivas?

evolua para

Através de que metodologia a Organização poderá potenciar o que é positivo nos erros de manutenção a fim de contribuir para a segurança organizacional?. Por aqui se percebe a importância que o conceito de segurança organizacional passou a ter e que é explicado nos capítulos 5 e 6.