• Nenhum resultado encontrado

O problema do analfabetismo funcional entre adolescentes para a

4 A ADOLESCÊNCIA, ESCOLA, LINGUAGEM E ESCRITA A PARTIR DA

4.3 A ADOLESCÊNCIA PARA A PSICANÁLISE

4.3.2 O problema do analfabetismo funcional entre adolescentes para a

Quando discutimos sobre a aquisição da escrita pela a criança e pelo adolescente a partir do enfoque histórico-cultural, foi possível perceber que ele se referia a uma passagem clássica da adolescência e seu respectivo desenvolvimento cognitivo, que será potencializado na escola, pela qualidade das mediações das linguagens e do outro, por experiências ricas em que possam utilizar a língua e o texto de maneira significativa e nos diferentes contextos socioculturais do universo letrado. Assim, a adolescência significaria a fase em que o sujeito cognitivo é capaz de realizar as operações formais e construir os conceitos científicos, sendo mais autônomos na construção de conhecimentos.

No "Seminário XII - Os problemas cruciais da psicanálise”, em sua Lição XIX, Lacan (1964-1965/2006) se refere a Vygotsky e suas teorias sobre a aprendizagem e a formação dos conceitos na adolescência. Conforme já discutido no capítulo anterior, é na adolescência que se manifestaria uma nova maneira de se relacionar com o objeto do conhecimento, uma tomada de consciência, desencadeada pelo desenvolvimento das funções mentais superiores. E Lacan (1964-1965/2006) concorda com Vygotsky de que o verdadeiro manejo do conceito só é atingido na puberdade. Por sua vez, Vygotsky (1930/1999) também propôs que o próprio

desenvolvimento da escrita criativa, ou da criação verbal ou literária, é um advento que aparece, sobretudo, no período de amadurecimento sexual do adolescente.

Como vimos, com a ajuda de Lacan, é o Outro que traz o universo do discurso, o lugar da linguagem, lugar onde o ser humano encontra as marcas, os significantes que o tornam um ser falante, que o possibilitam se identificar. Mas, em psicanálise, essa passagem da adolescência clássica não se dá sem conflitos.

Do problema da construção dos conceitos, discutidos por Vygotsky, pela teoria do conhecimento e pelo discurso da ciência, Lacan, no entanto, vai mais adiante e propõe a relação entre os termos ─ sujeito – saber – sexo. Essas são questões que aparecem fortemente na puberdade. E podem trazer entraves e problemas a essa passagem, mesmo para uma adolescência considerada normal.

Lacan defende a ideia de que a apreensão do conhecimento é estrutural. Porém, diante do sexo, o sujeito se indetermina no saber, o que lhe confere o seu lugar de sujeito do Inconsciente. Se ele era determinado pela experiência do cogito, com a descoberta do Inconsciente, pela natureza radical e fundamentalmente sexual de todo desejo humano, “o sujeito toma sua nova certeza, aquela de tomar sua morada na pura falha do sexo” (LACAN, 1964-1965/2006:349). O autor lembra que a relação entre saber e sexo é um dos pontos cruciais do ensino de Freud, e que o “sexo, em sua essência de diferença radical, permanece intocado e se recusa ao saber” (LACAN, 1964-1965/2006:). “É nisso que a pulsão epistemológica esbarra. O real que se apresenta na puberdade é esse impossível da relação sexual” (LACAN, 1964-1965/2006::349). Lembrando Foucault (1976), Lacadée reflete que “o adolescente torna visível a importância da sexualidade” (LACADÉE, 2011:17).

De maneira geral, em uma passagem clássica da adolescência, o sujeito deve deixar paulatinamente a língua de sua infância, aquela transmitida por seus pais, para encontrar outra língua para se identificar, reconhecer-se e inserir-se no laço social. Há uma necessidade inerente ao adolescente de encontrar um lugar social, de encontrar a sua própria língua, fora da língua de sua infância (TEIXEIRA, 2008; LACADÉE, 2011). Em outras palavras, esse seria o dilema pelo qual passa todo adolescente: encontrar um lugar onde possa se reconhecer e ser reconhecido, como sujeito e possa se representar socialmente. (PEREIRA; GURSKI, 2013).

Além das mudanças físicas que marcam esse momento, são destacadas aquelas psicológicas que levam o adolescente a uma nova maneira de relacionar-se

com as figuras parentais e com o mundo social, bem como a vivência de alguns em relação à perda do corpo, da identidade infantil e da relação com os pais da infância.

Assim, o adolescente, ao mesmo tempo que não pode mais se perceber como criança, também, não encontra palavras para traduzir o que sente em relação a esse novo corpo em transformação. E, sobre tudo isso, o adolescente não pode falar aos pais, seja porque ele sente vergonha, seja porque se encontra em uma espécie de exílio em relação à língua materna (TEIXEIRA, 2008).

Nesse processo, devido aos encontros do adolescente com o Outro sexo, com as transformações da puberdade e com os lutos vivenciados, é comum haver o que Rosenthal e Knobel (1981) denominam “fracasso na simbolização”, que produz um “curto-circuito” do pensamento, no qual o conceito lógico perde lugar à expressão mediante a ação.

Esse fracasso na simbolização se dá em torno de um sofrimento causado de seu corpo ou de seu pensamento, de algo que, segundo Lacan (1973), ele não consegue nomear, “que ao fazer furo no real, reenvia-o a um vazio”, com o qual o adolescente se confronta (LACADÉE, 2011:18). O autor chama esse real inassimilável pela função simbólica de “mancha negra”, cuja parte indizível é justamente onde se sustenta a causa do desejo do sujeito ou o que está em jogo em seu gozo (LACADÉE, 2011:19).

O fracasso na simbolização também está relacionado com o aparecimento nas patologias que podem ocorrer nessa transição, instituindo o que Lacadée denomina “dimensão do ato”, como tentativas de se inscrever, nas crises de identidade que se tornam crises de desejo, “a parte real ligada ao objeto a” (LACADÉE, 2011: 19).

Nesse sentido, a tarefa de encontrar sua língua própria lhe remete ao encontro com o seu lugar social, fora do abrigo da família. Lacadée lembra o quanto o “sonhar com outro lugar” aparece então como um dos nomes desse lugar inominável e que alguns jovens conseguem fixar, por algum tempo, na escrita.

Assim, alguns adolescentes que dispõem desse recurso podem lançar mão da escrita em diário, por exemplo (em caderno ou páginas virtuais, como nos blogs, muito utilizados atualmente), que lhe servirá, entre outras coisas, para externalizar os objetos internos e de seus vínculos, permitindo certo controle no mundo exterior e facilitando a elaboração das relações objetais perdidas (ABERASTURY; KNOBEL,

1981), assim como certo encobrimento, com palavras, desse real inominável. A poesia, a seguir, escrita por um jovem de 16 anos, pode ilustrar o que seria esse encontro do sujeito com sua língua:

Nessa minha canção sua

Não vivo em um sótão, meu telhado abriga minha carne, Meu espírito no céu.

Vivo em variações, no todo e na parte, Na Ave-Maria, no ruar dos anjos de Deus, No interior da Terra, que gira o tempo e mudo, É de mundo que renasce,

Rogo (ALEX FONSECA, 2015).

Podemos inferir (ainda que superficialmente), a partir dessa poesia, que o autor consegue colocar, pelo viés do simbólico, sua relação com o Outro (nessa

minha canção sua), suas dualidades (a carne e o espírito) e sua relação com um

mundo novo que lhe abre as portas.

Outros podem ser os exemplos, como é o caso da inserção de crianças e de adolescentes nos movimentos de arte nas periferias, como é o caso do Rap e do

Hip-Hop. Quanto a isso, mais uma vez encontramos um ponto de contato com a

teoria do desenvolvimento e aprendizagem segundo a psicologia histórico-cultural: no seu livro “Imaginação e criação na infância” (1930/1999), Vygotsky afirma que a escrita ou a criação verbal teria seu verdadeiro sentido na adolescência, pois, para ele, para criar algo próprio com a palavra, de maneira nova, é necessária uma reserva suficiente de vivências pessoais e interações mediadas pelo Outro e pela linguagem. Ou como nos diria Lacan, pelas mediações pelo Outro da linguagem. Isso implica em se ter experiência de vida, habilidade de analisar as relações entre as pessoas, em diferentes ambientes.

Outros adolescentes e jovens, contudo, como veremos adiante, não contam com a escrita (linguagem simbólica) para tal. Isso porque, em seu processo de desenvolvimento e aprendizagem escolar, não conseguiram desenvolvê-la adequadamente, conforme "normalmente" é esperado.

Todas as reflexões apontadas em relação à passagem clássica da adolescência e seu manejo com a linguagem escrita remetem-nos ao nosso problema de pesquisa: analfabetismo funcional entre adolescentes. Teixeira (2008) assevera que enfrentar a infância e chegar à adolescência se torna muito mais difícil quando não se tem o abrigo da língua materna. Será mais difícil, ainda, abandonar o

imediatismo, sem o aporte do Outro, que lhe ensinará gradativamente a usar a palavra no lugar do ato, a sair do real do tempo, experimentar a diferença dos sexos, atribuindo significação a seus discursos, gradualmente saindo da regulação do princípio do prazer que dará lugar ao princípio da realidade e sendo acolhida em sua singularidade.

Eles se encontram assim em uma posição de exílio da língua. Tal posição é muito frequente entre os jovens provenientes de camadas desfavorecidas, em que as instituições sociais falham em seu acolhimento e proteção, conforme já vimos, trazendo sérios impasses e nas quais as condutas de risco e as provocações linguageiras (injúrias, ataques verbais, insultos e provocações) são utilizadas pelos adolescentes como demanda de respeito (veremos essa questão na análise das rodas de conversa), utilizando-se da própria língua do Outro que não compreende.

Mas, no caso de nossa investigação, tal posição de exílio pode ser entendida, também, pela dificuldade desses adolescentes (e mesmo recusa) de fazer uso da palavra escrita nas diferentes situações sociais em que se inserem, o que pode intensificar ainda mais sua situação de exílio e de exclusão social. Segundo Teixeira (2008), muitas vezes, por falta de encontrar uma língua (que lhe possibilitaria encontrar seu lugar social), o adolescente encontra a passagem ao ato em forma de toxicomania, automutilação, criminalidade, ou mesmo no suicídio. Para a autora, a imposição das leis do mercado de seus objetos de consumo pode produzir um "curto-circuito" na relação ao Outro da palavra e os adolescentes podem perder o gosto pelas palavras e pela conversação.

Para aprofundar essa questão, passaremos à análise dos discursos escritos e falados a partir da pesquisa de campo com os sujeitos investigados, que veremos nos próximos capítulos.