os últimos anos, palavras antes restritas ao mundo acadêmico ou a profissionais de áreas específicas passaram a fazer parte do cotidiano de todos e, na maioria dos casos, sem entender muito de onde vieram, porque vieram e
para que vieram. Esse é o caso por, exemplo, das palavras: gestão, bacias hidrográficas, recursos hídricos, entre outras. Em um passado recente esses termos eram mais conhecidos da população em geral por administração ou gerenciamento, vales e, simplesmente, água. O porquê das mudanças, cabe uma explicação. Gerenciamento e gestão significam a mesma coisa? Para a língua portuguesa, sim, na prática atual, não. O gerenciamento está mais ligado a um
procedimento administrativo, verticalizado, que busca otimizar um processo, dentro de um sistema hierarquizado. O topo do sistema normamente é ocupado pelo gerente ou administrador
que conta, a seu favor, com a relação de
subordinação e, conseqüentemente, de poder. A
gestão é um processo horizontal, menos
hierarquizado em que a maioria dos envolvidos não está ligada por uma relação de subordinação ou dependência social, política ou econômica. Neste caso, a convergência de ações só pode ser feita através da negociação. O gestor de hoje é, portanto, um grande negociador, com capacitação técnica específica em sua área mas, também, com a visão econômica, social e ambiental que os princípios da sustentabilidade exigem. Passa a atuar, então como um importante mediador de conflitos de interesses diversos na busca de objetivos comuns e
necessários à melhoria da qualidade de vida de todos.
O segundo conceito a ser aqui discutido é o de bacias hidrográficas, ou bacias de drenagem, ou bacias fluviais, antes restrito a geógrafos, cartógrafos e hidrólogos, que significa “o conjunto das terras drenadas por um rio e por seus afluentes” ( Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2ª
Edição, Editora Nova Fronteira ). Na linguagem
popular, esse conceito geográfico era mais conhecido como vale; vale do Paraíba, vale do Itabapoana, ou seja, uma região baixa, plana, que serve de reservatório para as águas que vertem das áreas próximas mais elevadas.
A gestão é um processo horizontal, menos hierarquizado em que a
maioria dos envolvidos não está ligada por uma relação de subordinação ou dependência social, política ou econômica.
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Isso era então suficiente para designar
geograficamente essas regiões, mas a partir do momento em que a bacia hidrográfica passa a ter o status de unidade de planejamento para efeito da Política Nacional de Recursos Hídricos, definida na lei 9.433/97, o conceito de vale não é mais suficiente. Essa nova regionalidade passa a ter uma relação direta com as questões econômicas, sociais e ambientais da população que a integra. Essa é a grande mudança cultural e estrutural que a quase totalidade da população e uma grande maioria de técnicos governamentais ainda não compreendeu, ou em alguns casos, por interesses políticos ou
corporativos, se recusa a aceitar.
Dentro do nosso sistema federativo atual, os cidadãos são identificados com os municípios e estados de origem e, por esse critério, passam a ser
divididos em grupos sociais de tal forma
diferenciados, que chegam ao limite de competir entre si. Esse é o grande risco de um sistema federativo, quando os estados levam ao máximo o princípio da autonomia a ponto de perder a noção de que fazem parte de uma nação que deve ter
interesses unitários. O passo seguinte, a ser evitado, é o de classificar os cidadãos do país por ordem de desenvolvimento econômico e social do estado a que pertence. É preciso ter em conta, que os interesses de um município não podem estar acima dos interesses do estado e os interesses do estado não podem se sobrepor aos interesses da nação. O primeiro princípio básico é o de que somos todos brasileiros e como tal temos todos direito a
o gestor de hoje é um grande negociador, com capacitação técnica específica em sua área mas também, com a visão econômica,
social e ambiental que os princípios da sustentabilidade exigem
oportunidades iguais em todo o território nacional. A gestão por bacias hidrográficas implica em
estabelecer mais um critério na identificação dos cidadãos quanto à sua regionalidade, ou seja, a qual bacia hidrográfica ele pertence.
Diretamente associado às bacias
hidrográficas está o conceito de recursos hídricos, este considerando os corpos de água, tais como rios, lagoas, lagos, etc., dentro de um contexto de
durabilidade finita, e portanto, dotado de valor econômico no que concerne à exploração de um recurso mineral agora considerado precioso, como por exemplo, ouro ou petróleo.
Portanto, organismos de bacias, associações de usuários de água, consórcios intermunicipais de bacias hidrográficas ou qualquer outra forma de organização política-social com eixo em recursos hídricos, nada mais são do que um ente gestor constituído para mediar conflitos de interesses diversos e difusos de forma descentralizada e participativa.
A complexidade dessa gestão não se estabelece no aparente foco de sua atividade, ou seja, os recursos hídricos ou a gestão da água. No seu aspecto hidrológico, a tecnologia disponível e os recursos humanos qualificados em nosso país, atendem as nossas necessidades. A dificuldade se encontra exatamente no aspecto da organização social e da estrutura político-administrativa. Da organização social melhor seria dizer, da sua desorganização enquanto capital social, pouco consciente da importância do seu papel no processo, pouco qualificada para embates no campo da argumentação técnica de interesse público e social. É preciso lembrar que o Brasil nasceu como colônia de um país europeu e mesmo após a independência continuou sob um regime imperial, fortemente centralizado; após a república, passou por longos períodos de ditadura e, portanto, a nossa exeperiência de democracia é
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ainda muito incipiente. A cultura no país é a da centralização do poder, da crença de que o povo é, e por longo tempo ainda estará, despreparado para participar das grandes tomadas de decisões. Esse é um grande problema na gestão de águas no Brasil; todos aqueles que têm participado desse processo sabem da grande dificuldade em colocar no palco da discussão, representantes da sociedade civil, qualificados, representativos, legítimos e que possam confrontar os outros dois poderes, político e econômico, com argumentação própria e consistente na defesa dos seus interesses e da própria sociedade. É preciso que todos entendam que o equilíbrio entre esses três
segmentos é que determinará o sucesso de todo o sistema. Embora legítimos e representativos, tanto os defensores dos interesses governamentais quanto aqueles do setor econômico, estão, hoje, ocupando essa posição, mas serão sempre, cidadãos.
Outro grande problema é o pacto federativo brasileiro. A federação brasileira tomou um rumo diferente daquela praticada nos Estados Unidos ou na Alemanha em que, apesar da autonomia dos entes federados, estes países não perderam a noção de nação, muito pelo contrário, utilizam o
conhecimento e recursos gerados nas áreas mais desenvolvidas para, rapidamente resgatar aquelas que, por qualquer motivo, ficaram para trás. Vê-se, hoje, claramente, o esforço que a República Federal da Alemanha vem fazendo para nivelar em qualidade de vida, a região antes ocupada pela Alemanha Oriental com o restante do país.
A federação brasileira se comporta como um somatório de pequenos estados independentes, cada um preocupado com o seu resultado individual, estabelecendo uma competição desde os índices de criminalidade, medida por números de seqüestros/ mês até a utilização de incentivos fiscais com a finalidade de atrair multinacionais para os seus territórios. Essa competição é fratricida e
os governos estaduais têm se comportado como se não existissem influências diretas
e indiretas nessas regiões por conta dos seus vizinhos; e simplesmente ignoram mesmo esse problema na elaboração dos
seus planejamentos para essas regiões
atende muito mais aos interesses dessas empresas que do próprio estado brasileiro que não pode definir e decidir em que região esse investimento seria mais rentável para o país, tanto no aspecto econômico quanto na busca de um maior equilíbrio social. Essa prática de federalismo, para nós brasileiros, não tem vencedores, todos perdem.
É preciso retomar, com urgência, o princípio de que antes de sermos paulistas, fluminenses, mineiros, capixabas, etc., somos todos brasileiros e certamente será melhor estar na média de um país rico e equilibrado, do que rico isolado e refém de miseráveis. O bem estar de cada um está diretamente dependente do bem-estar de todos.
Dentro dessa realidade, considerar a bacia hidrográfica como unidade de planejamento tem o grande mérito de fortalecer a idéia de nação, estimulando o desenvolvimento local dentro do contexto regional. As bacias não respeitam os limites municipais ou estaduais e obrigam o estabelecimento de uma política única para determinada região, independente do estado, ou estados, no qual está inserida.
Um grande problema para a implementação dessa política no Brasil, é o fato que a base legal que a instituiu é originária da França, um país unitário, não federativo. A ausência de estados
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centenária cultura democrática e participativa da França, facilitam enormemente esse modelo de gestão naquele país europeu.
Também não temos a disciplina e o nível de organização do povo alemão, que embora federativo, consegue obter uma convergência dos interesses nacionais acima dos regionais, o que permitiu, por duas vezes, a reconstrução daquele país após derrotas em duas grandes guerras, ressurgindo sempre como uma grande nação.
A idéia deste artigo é discutir problemas e
soluções e por enquanto só falamos de problemas.
Vamos agora às propostas de soluções. É preciso deixar claro que se as soluções fossem fáceis ou mesmo evidentes, esses problemas não mais existiriam, portanto, estamos falando de propostas. Primeiro, é preciso continuar com a
implementação de políticas, programas, projetos ou qualquer outra ação que objetivem a eliminação da miséria no país. A pobreza é indesejável é deverá ser, ao longo do tempo, reduzida ou eliminada, mas a
miséria é inaceitável em um país com os nossos
indicadores econômicos. Existe um vácuo no modelo administrativo brasileiro entre municípios e estados e entre estados e união; essa é a razão do surgimento espontâneo dos Consórcios
intermunicipais e dos Consórcios Trans-estaduais criados com diferentes objetivos. Em todos os casos, o que se verifica é que as três instâncias de poder executivo não atendem a todas as
necessidades da expectativa de vida atual brasileira. Hoje, os estados brasileiros enfrentam uma situação política-administrativa bem diferente daquela existente na primeira metade do século passado. Com o surgimento das áreas
metropolitanas de forma não planejada e, portanto, não desejada, houve um inchaço das capitais com conseqüente esvaziamento do interior do estado. Isso estabeleceu o primeiro recorte administrativo entre capital e interior. E, hoje, sabemos quão
diferentes são os problemas e necessidades de cada um, exigindo um tratamento político-administrativo bastante diferenciado. A outra divisão que poucos perceberam, é o segundo recorte entre os municípios do interior interno ao estado e aqueles que se situam em áreas de fronteira com outros estados ou mesmo países vizinhos. Os governos estaduais têm se comportado como se não existissem influências diretas e indiretas nessas regiões por conta dos seus vizinhos; e simplesmente ignoram mesmo esse problema na elaboração dos seus planejamentos para essas regiões.
a cultura no país é a da centralização do poder, da crença de que o povo é, e
por longo tempo ainda estará, despreparado para participar das
grandes tomadas de decisões
A proposta que apresentamos é a de que sejam estabelecidas três políticas de planejamento para cada estado brasileiro. Integrar a política para a capital com a dos municípios do interior com o foco de atender a redução do desequilíbrio entre
municípios do próprio estado e integrar a sua política para as regiões de fronteira com a( s ) política( s ) do( s ) estado( s ) vizinho( s ) para uma mesma região. Esta teria a finalidade de reduzir o desequilíbrio entre estados, e portanto, buscar reduzir as diferenças no plano nacional. Áreas de fronteira entre estados, deverão ter políticas próprias e diferenciadas das outras regiões internas do próprio estado e mesmo das capitais. Não estamos falando em criar novos estados, ou mesmo tirar a responsabilidade
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contrário, aumentar o envolvimento dos estados e eficácia na gestão dessas áreas, que muitas vezes, fazem parte apenas das preocupações do governo federal.
Portanto, o que estamos propondo, é a criação de Comissões Gestoras para essas regiões com a participação dos representantes da área de planejamento dos estados envolvidos, do governo federal e de representações dos municípios através de consórcios ou associações intermunicipais a fim de estabelecer uma política única para essas regiões. Esse procedimento é puramente administrativo, não ferindo em nada o pacto federativo e garantindo aos estados ampla
participação e decisão sobre as políticas aplicadas aos municípios integrantes dos seus territórios. A diferença é que se fará de forma discutida e
acordada com os outros estados, municípios e união, também interessados no desenvolvimento local. Cabe, portanto, apenas definir os limites dessas regionalidades de fronteiras. Uma das possibilidades, já previstas em lei, é adotar o princípio da gestão por Bacias Hidrográficas quando a divisão for um rio federal; outra é o estabelecimento de Regiões Administrativas Integradas de
Desenvolvimento, conforme previsto
nos arts. 21, inciso IX e 43 e 48, inciso IV da Constituição Federal.
Finalizando, gostaríamos de lembrar que a jovialidade do Brasil como nação, se por um lado nos dificulta pela falta de experiência ou maturidade em alguns aspectos, por outro não está compromissada com a perpetuação de leis ou princípios seculares, muitas vezes não mais justificáveis na realidade atual. Como bem disse o ex-ministro e senador Jarbas Passarinho, em recente artigo publicado, no final dos anos 40, a missão americana Abinck, concluiu que o melhor para o Brasil era continuar a ser um país agrícola, exportando bens primários face a nossa incapacidade de concorrer com os países mais desenvolvidos. Hoje, os produtos primários não ultrapassam 25% da nossa pauta de exportações. Essa foi a grande demonstração da nossa
capacidade de mudanças rápidas e que atendam melhor aos interesses do país. Se os nossos pais e avós, em situação muito mais adversa, tiveram a coragem e a determinação de mudar em pouco tempo a base produtiva do país, não creio que teremos grandes dificuldades em alterar
procedimentos administrativos tão necessários ao desenvolvimento nacional por puras vaidades corporativas ou interesses políticos individuais.
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Leila Heizer Santos
Diretora da Serla ( até 03/02 )