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Capítulo II O movimento operário e sindical nas três últimas décadas: estratégias antagônicas e

2.1 CUT: a aparente homogeneidade diante de estratégias irreconciliáveis

2.1.1 Problematizando as divergências no interior da CUT

Até o III ConCUT (1988) as divergências entre dois projetos, ao nosso ver, antagônicos desde a origem, não se traduziram em rupturas no interior da central. Até ali, ao menos nas instâncias de deliberação (congressos, principalmente), os esforços, no plano político-organizacional, se concentraram na busca de algum nível de convergência para criar uma alternativa à estrutura sindical vigente naquele momento, tendo como pilares a liberdade e autonomia sindicais, embora cada uma das correntes se apropriasse dessas bandeiras de formas diversas e tentassem encontrar até então um denominador comum. Portanto, existiam diferentes concepções políticas e ideológicas, irreconciliáveis, mas que permaneceram latentes até então devido à busca de algum nível diálogo.

Assim, em julho de 1986, na ocasião do II ConCUT, foi aprovada a proposta de uma nova estrutura, demonstrando a disposição da maioria dos congressistas em superar a legislação sindical até então em vigor. Tal proposta foi composta por quatro parágrafos que dispõem sobre: princípios da liberdade e autonomia sindical; normas básicas sobre as instâncias sindicais, as funções, os órgãos de decisão, as eleições e a duração do mandato; normas básicas sobre a sustentação financeira; normas básicas sobre o Estatuto sindical.

Em linhas gerais, as resoluções fazem a defesa de um sindicato independente do Estado, dos patrões e dos partidos em todos os aspectos (político e financeiro, principalmente). Porém, malgrado o esforço de criar uma nova estrutura sindical, nestes moldes, independente, as resoluções deixavam a desejar na busca de uma estrutura horizontalizada, apesar de considerar as assembleias e os congressos as principais instâncias de deliberação18. Isso porque previa que os organismos de base, definidos como

18 Assim o Congresso definiu as instâncias de decisão das comissões sindicais: “§ 3. Os órgãos de decisão da comissão sindical de base serão os seguintes: a) Assembleia dos trabalhadores do local de trabalho; b) Direção: coordenador, vice-coordenador e secretário, podendo a direção criar outros cargos que achar convenientes.” (Caderno de Resoluções do II Concut, p.45, 1986).

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comissões sindicais de base, atuassem como uma extensão dos sindicatos nos locais de

trabalho19. Isto fica claro no seguinte parágrafo das resoluções do congresso:

[...] § 2. As funções da comissão sindical de base serão as seguintes: a) representar os trabalhadores no local de trabalho; b) levar a política sindical do sindicato de base dentro da empresa, garantindo as resoluções dos congressos, assembleias e plenárias; c) promover a sindicalização; d) garantir o cumprimento dos acordos coletivos celebrados; e) levar para dentro da empresa todo o material de propaganda do sindicato, de suas campanhas e do seu plano de ação; f) Participar da plenária do sindicato de base (Caderno de Resoluções do II Concut, p.45, 1986 – grifos nossos).

Além disso, somente os sindicalizados teriam o direito de votar, restringindo a participação dos demais trabalhadores, vejamos:

[...] § 4. As eleições sindicais para a comissão de base serão realizadas da seguinte forma: a) Votam os sindicalizados maiores de 16 anos, em dia com as suas obrigações e que tenham se associado até a publicação do edital que convoca as eleições; b) podem ser votados os sindicalizados maiores de 16 anos, em dia com suas obrigações e com, pelo menos, seis meses de sócios (Caderno de Resoluções do II Concut, p.45, 1986).

É possível notar a partir disso que, desde a sua concepção, os organismos de base previstos pelos congressistas cutistas teriam fortes laços com o sindicato, já que tanto os eleitores (sindicalizados), quanto a sua atuação política passariam pelo crivo dos sindicatos, transformando aqueles organismos em uma espécie de correias de transmissão destes.

19 Outra resolução falava sobre a implantação das comissões de fábrica ou de empresa fora da estrutura sindical que deveriam ser implantadas para representar o conjunto dos trabalhadores sindicalizados ou não. Ainda segundo essa resolução as tarefas dessas comissões iam “além do trabalho sindical na fábrica ou empresa” e por isso deveriam ser “independentes da estrutura sindical, buscando-se constituir como uma verdadeira escola de poder operário”. Elas seriam concebidas para fazer avançar a auto-organização e a luta cotidiana dos trabalhadores nas fábricas ou empresas através dos elementos da democracia operária, tais como as assembleias de fábrica. A relação das comissões de fábricas com os sindicatos deveria ser “política, ou seja, com as direções combativas e comprometidas com a luta a relação deve ser de apoio e reforço mútuo, já com as direções conciliadoras a relação deve ser de combate”. Por fim, a resolução dizia que os sindicatos e oposições sindicais da CUT teriam a tarefa fundamental de “lutar pela criação das comissões de fábrica ou empresa” (Caderno de Resoluções do II Concut, p. 53, 1986). Muito embora presente nas resoluções, a aprovação das criações de comissões de fábrica ou empresa parece peça solta na engrenagem da estrutura sindical proposta pela CUT, uma vez que ela não deixa claro, como vemos, qual seria o seu papel real no interior da central, uma vez que não estavam previstas as participações de seus membros em seus congressos e em plenárias sindicais e nem mesmo qual deveria ser sua relação com as comissões sindicais de base. As comissões de fábrica ou empresa pareceram estar presentes nas Resoluções muito mais pela realidade que já representavam há alguns anos em importantes bases cutistas (fossem elas reconhecidas pelos sindicatos e/ou empresas ou apenas atuando como grupos de fábrica clandestinos) do que pela necessidade da central em se apoiar nesses órgãos.

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Esse, no entanto, seria somente um dos graus da estrutura sindical piramidal proposta pelos congressistas. Pois além dessa relação hierarquizada com os organismos de base, os sindicatos de base, substitutos dos sindicatos oficiais, estariam subordinados às instâncias superiores da central, os departamentos profissionais, que substituiriam as federações e confederações. Estes, por sua vez, estariam subordinados à política da Direção Nacional da CUT20.

Tendo em vista esses aspectos políticos-organizacionais das resoluções de uma nova estrutura cutista, Martins Rodrigues (1990) considerou a proposta detalhada, porém ambiciosa, ingênua e com boa dose de autoritarismo. Comparando-a com a CLT, o autor afirma que a proposta padecia de ingenuidade por fazer tabula rasa da legislação trabalhista e não levar em conta a resistência patronal, do governo e do próprio sindicalismo oficial, presente inclusive no interior da central:

[...] ocorre que a nova estrutura imaginada pela CUT, se concretizada, abalaria profundamente o funcionamento de poderosos sindicatos cutistas. Na verdade, a Executiva da CUT, que apresentou a proposta da nova estrutura, e os delegados que a aprovaram no II CONCUT subestimaram a força do sindicalismo corporativo no país e o apoio, explícito ou implícito, que ponderáveis parcelas das classes trabalhadoras e dirigentes sindicais (inclusive os da CUT) lhe outorgaram. Por outro lado, o irrealismo da resolução (...) não deixa de ser indicativo da imaturidade de uma organização em processo de formação (Martins Rodrigues, 1990, p. 14).

A estrutura sindical oficial, portanto, era o principal entrave à consolidação daquelas resoluções no que diz respeito à criação de uma nova estrutura, em que pese o fato dos congressistas apostarem, para que fossem consolidadas, na mobilização das bases sindicais e oposições, bem como na aprovação, na Assembleia Nacional, de medidas favoráveis. Desse modo, entendemos que não se tratava de uma proposta irrealista como diz o autor, já que, a partir da leitura do que foi proposto pelos congressistas, a alternativa à estrutura dependia da correlação de forças estabelecidas (e da mobilização) no cotidiano das fábricas, estabelecimentos comerciais, agências bancárias, escolas, no campo etc. Evidentemente, dependia igualmente do papel que a CUT desempenharia diante das mobilizações, ou seja, dependia do impacto que o “novo sindicalismo” e suas estratégias causariam no âmbito

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político, na Constituinte, mas sobretudo na capacidade dos sindicalistas cutistas fazerem a autocrítica das suas próprias formas de organização. Em outras palavras, o momento de efervescência política que vivia o país em meados da década de 1980 abria possibilidades para a alternativa à estrutura sindical e os congressistas levaram isso em conta ao propô-la. As diversas formas de mobilização e, em especial, as que emergiam dos locais de trabalho eram a pedra de toque que viabilizaria, ou não, a ambição de romper com a velha estrutura. E os obstáculos estavam colocados inclusive no interior da própria central, como bem observa o autor.

Tendo isso em vista os congressistas traçaram um plano de implantação o qual tinha como pilar a pressão dos movimentos operário e sindical no interior da Constituinte para que fossem ratificadas as Convenções 87 e 151 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), garantindo a liberdade e autonomia sindicais, além de um conjunto de normas que garantisse maior segurança à militância na base, dando a ela estabilidade e liberdade de atuação. Seguem essas normas um conjunto de outros planos, tais como implantação das comissões sindicais de base, implantação das delegacias sindicais rurais, implantação do sindicato de base, implantação da sustentação financeira e implantação de um novo enquadramento sindical (Resoluções do II Concut, pp. 51-53, 1986). A análise dos planos de implantação revela que cada um deles exigiria uma ampla, intensa e permanente mobilização das bases, sem a qual não seria possível vislumbrar qualquer mudança.

Ou seja, a proposta era na verdade um projeto a ser construído em médio prazo e dependia da disposição do conjunto de trabalhadores mobilizados, bem como dos sindicalistas cutistas em pressionar a Constituinte e suas bases para tornar-se viável. Para o movimento operário em particular era fundamental a manutenção, bem como a ampliação da mobilização no interior das fábricas, afinal, apesar dos limites apresentados pela proposta (sendo a verticalidade o principal deles), ela não deixava de ser um passo importante para além da estrutura corporativista, atrelada jurídica e financeiramente ao Estado.

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