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Fazzalari é o autor que trabalha, com originalidade, a idéia de que o processo não é uma relação jurídica222, com a autoridade e o reconhecimento de haver consolidado a teoria de processo como procedimento em contraditório.

A concepção vetusta, por assim dizer, teimava em absorver o conteúdo do processo no procedimento em si, que representava a soma os atos processuais que compunham o rito de aplicação do direito (e.g. processo judicial conduzido pelo juiz, processo legislativo conduzido pela direção da casa legislativa).223

Aroldo Plínio Gonçalves explica em sua monografia que o tratamento dado ao processo como relação jurídica processual é problemático porque arraigado às concepções científicas vigentes individualistas e privatísticas típicas do século XIX. As categorias e institutos ínsitos ao direito privado (faculdades, poderes, deveres, direitos subjetivos) logicamente não correspondem às relações entre as partes e Estado-juiz na condução do processo. Assim, “quando se fala em dever e na posição subjetiva a ele concernente, não se está referindo a uma conduta subjugada a outrem, mas a uma conduta que deve ser observada porque qualificada, pelos cânones normativos, como devida.”224

222 Concepção pandectística e oitocentista do processo, inaugurada na obra mais conhecida de Oskar von Bullow, de

1838, que goza de prestígio até os dias atuais, mas que não explica convincentemente a plêiade de relações entre as diversas partes que atuam no processo, nem explica as relações de mútua implicação entre cada um dos atos e suas consequências a partir de institutos presentes na teoria geral do direito (ato jurídico, poder, sujeição, faculdade, direito subjetivo, etc). O primeiro volume da sua obra data de 1976, e Fazzalari cita que Chiovenda e Liebman jamais abandonaram a idéia de relação jurídica, enquanto que Carnelutti reserva ao vocábulo “processo” o fenômeno da mera sucessão de procedimentos. Cf. FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual (Trad. da 8ª edição por Elaine Nassif). 1ª edição. São Paulo: Bookseller, 2006, p. 111. Abandonada essa concepção, que é tratada como clichê por Fazzalari e abraçada pela doutrina contemporânea, resta repensar os institutos processuais, a exemplo das técnicas de prestação de tutela, como o ponto culminante de um procedimento em contraditório. Ver, em trabalho de escol no direito nacional, MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 3 ª ed., rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

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GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: AIDE, 1992, pp. 63-64. O autor mineiro aponta os estudos de Barbosa Moreira como sistematizadores do tema, e invoca o pioneirismo de Enrico Redenti já em 1936, consolidando-se os estudos naturalmente em Elio Fazzalari.

87 Dessa forma, “faculdades e poderes não significam faculdades e poderes de um titular de direito sobre atos de outras pessoas, mas são prerrogativas que derivam da própria norma e que qualificam o ato do próprio agente em relação à sua própria conduta.”225

Sem que se perca a solução com as colocações do capítulo anterior, é importante registrar o arsenal conceitual abraçado por Fazzalari

O procedimento se verifica quando se está frente a uma série de normas, cada uma das quais reguladores de uma determinada conduta (qualificando-se como lícita ou obrigatórias), mas que enunciam como condição da sua incidência o cumprimento de uma atividade regulada por outra norma da série, e assim por diante, até a norma reguladora do ato final.226

Assim, a estrutura do procedimento se obtém quando se está diante de uma série de normas, reguladoras e tendentes a atingir um provimento final, valoradas consoante critérios previstos e valorados nas outras normas.227

Assim, a finalidade geográfica do procedimento, ou seja, o seu final é a prestação da tutela jurisdicional. Em Fredie Didier Junior tem-se que “o procedimento é o ato-complexo de formação sucessiva, porque é um conjunto de atos jurídicos (atos processuais), relacionados entre si, que possuem como objetivo comum, no caso do processo judicial, a tutela jurisdicional.”228

Em curtas palavras, resume Guilherme Marinoni “o procedimento, além de conferir oportunidade à adequada participação das partes e possibilidade de controle da atuação do juiz,

225

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: AIDE, 1992, p. 95. O tema foi abordado no item 4 supra, nos quais se compreende a consequência normativa das posições jurídicas ativa e passiva dentre do processo e sua distinção para as categorias básicas do direito privado. Os capítulos V e VI da obra indicada destrincham explicam a evolução da concepção do processo e seus reflexos sobre as posições jurídicas que refletem para as partes e para o Estado-juiz.

226 FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual (Trad. da 8ª edição por Elaine Nassif). 1ª edição. São Paulo:

Bookseller, 2006, p. 93.

227 A tarefa de valoração, definição, criação e construção da norma jurídica, como já visto aportes anteriores sobre

filosofia do direito e teoria geral, é de indiscutível dificuldade. Sua concretização dependerá de influxos interpretativos que estão não necessariamente no texto abstrato da norma (programa da norma em Friedrich Muller), mas sim no âmbito da norma. Daí o papel do intérprete diante do sistema jurídico.

228 DIDIER JR, Fredie. O direito de ação como complexo de situações jurídicas. Revista de Processo. São Paulo: RT,

88 deve viabilizar a proteção do direito material. Em outros termos, deve abrir ensejo à efetiva tutela dos direitos.”229

A doutrina processual do século 19 havia abandonado as preocupações acerca da tutela jurisdicional, que repercutiam em época vinculada ao caráter imanentista dos direitos, para consagrar o polo metodológico do direito de ação ou do processo em si.

O atual momento metodológico da ciência e da praxe processual autoriza o retorno às preocupações humanistas voltadas à prestação útil da tutela processual às pessoas que fazem parte do processo. Nesse sentido, e somente nesse sentido, faz sentido falar em instrumentalidade do processo230, ou ainda em instrumentalidade técnica do processo, que significa dotar o processo de meios aptos para a consecução de seus fins, ou seja, garantir a tutela às pessoas que dele participam.231

Daí porque se repugna a centralidade do processo na ação, a qual apenas privilegia as posições jurídicas do autor, olvidando-se do réu. O processo vale pelos resultados que proporciona na vida das pessoas ou grupos, e a valorização da ação não é capaz de explicar a vocação tutelar do sistema processual, nem de conduzir efetividade às vantagens desejadas.

No entanto, e sem desperdício da condução levada a reboque no item anterior, o enfoque exclusivo nos resultados do processo faz o aplicador esquecer que o processo conjuga o regramento do exercício de diversas posições jurídicas (rectius: formas de exercício de poder), e.g. poderes, deveres, ônus, faculdades, na síntese da jurisdição, da ação e da defesa, devendo ser lembrado que o processo justo é o fim, mas também o é o procedimento e o respeito a todas as posições jurídicas surgidas ao longo das fases do procedimento.232

229 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 3ª ed. revista e atualizada. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2010, p. 112.

230 DINAMARCO, Cândido Rangel. Tutela jurisdicional. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.

21, n. 81, pp. 54 - 81, 1996.

231

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: AIDE, 1992, pp. 187-188.

232 CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades no processo moderno: contraditório, proteção da confiança e validade

89 Assim, o excessivo enfoque no instrumentalismo do processo e na efetividade conduzia a resultados empíricos enjeitáveis. A mutilação do processo, o qual parecia ser o grande vilão do romance processual, era a tônica233, desperdiçando-se toda a dialética e as situações jurídicas de vantagem das partes no contexto do procedimento.

Alvaro de Oliveira, em ensaio recente, põe em xeque a intrínseca relação do instrumentalismo com a teoria dos escopos do processo.

Afirma ele que, além de outras finalidades do processo jurisdicional, satisfaz-se o processo, principalmente, em garantir o direito subjetivo, escopo subestimado pela doutrina brasileira instrumentalista.234

É justamente em função da assecuração do direito substancial que se revela a instrumentalidade do processo na medida, e nos limites semânticos, que a palavra instrumentalidade deve ter: garantir à parte vitoriosa a tutela jurídica do direito material lesado235. É a instrumentalidade, portanto, o fundamento remoto do escopo jurídico do processo, logo, relevando-se a intensa proximidade entre o direito material e o direito processual, sobre a qual muitos trabalhos festejados já lograram acolhida no cenário mundial236 e pátrio237. Mas a instrumentalidade, como tal, é limitada pelas formas e pelos diversos valores e vetores que povoam o ordenamento, como visto.

233 CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades no processo moderno: contraditório, proteção da confiança e validade

prima facie dos atos processuais. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 172.

234 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Escopo jurídico do processo. Revista de Processo. São Paulo: RT, v.37,

n.203, p.305-317, 2012.

235 Id. Ibid., 2012.

236 FAZZALARI, Elio. Note in tema di diritto e processo. Milano: Giuffrè, 1957, passim. Fazzalari, na monografia,

aborda de maneira absolutamente profunda e inovadora a relação entre o direito subjetivo deduzido em juízo – fatos e fundamentos jurídicos – e o instituto da ação, do processo e do procedimento, terminando por concluir, entre outros tópicos, que as alegações, in status assertionis, vinculam os poderes e deveres do juiz e orientam as situações das partes. E, embora o juiz não componha diretamente o direito subjetivo, ele rege toda sua atividade em função de buscar uma posição de superioridade imposta numa norma substancial no processo. Essa característica de orientação de todas as posições e situações endêmicas ao processo são denominadas, por Alvaro Oliveira, de topos argumentativo do processo, no final servindo de base, se for o caso, para o cumprimento da decisão. Cf. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Escopo jurídico do processo. Revista de Processo. São Paulo: RT, v. 37, n. 203, pp. 305- 317, 2012.

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Entre outros, BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. 6a ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2011; DIDIER Jr., Fredie (Org.) ; MAZZEI, R. (Org.) . Processo e direito material. Salvador: Editora Jus Podivm, 2009. O tema é amplo e de rico manancial, podendo ser analisado sob o prisma de diversos institutos processuais e materiais.

90 Aliás, o próprio procedimento deixa de ser visto como um iter necessário, porém negativo, dados os gastos de tempo e dinheiro na realização dos seus atos, e passa a ser a denominada “espinha dorsal do formalismo”, não sendo um “pobre esqueleto sem alma”. O modelo procedimental é visto como uma série intercalada de normas, da qual a anterior é suporte fático da posterior, porém sem perder de perspectiva que cada um dos atos processuais acarreta a produção de situações jurídicas complexas, trazendo diversos influxos valorativos sobre a situação das partes (atividade, poderes e faculdades do órgão judicial e das partes).238

O debate, que precede à prestação de tutela, é medido não só como meio, mas também como um dos fins do processo, um valor a ser preservado239. E esse debate decorre de posições jurídicas que não podem ser sacrificadas em função de resultados úteis ou efetivos.