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Procedimentos e metodologias de avaliação

V. Avaliação psicobiológica da responsabilidade criminal

5.1. Procedimentos e metodologias de avaliação

No início do processo de avaliação da responsabilidade criminal, o avaliador psicoforense deve ter logo em conta várias questões éticas e práticas, nomeadamente se apresenta condições favoráveis para aceitar esta avaliação, a procura de dados colaterais, e a informação ao indivíduo avaliado sobre esta mesma avaliação.

Quanto ao facto de aceitar esta avaliação, o avaliador deve decidir se tem o requisito de conhecimento e competências para se envolver no caso, ou seja se tem um conhecimento clínico e forense para o caso em questão, e formação suficiente para realizar um trabalho com qualidade (Skeem & Golding, 1998; Packer, 2008). De igual modo, é importante compreender o tipo de população a que se propõe avaliar com base em conhecimentos clínicos e a experiência anterior (Heilbrun, Marczyk, DeMatteo & Mack-Allen, 2007).

Para além destes aspetos, o avaliador deve procurar outros profissionais de outras áreas quando a avaliação requer categorias de diagnóstico específicas, para as quais são necessárias várias áreas do saber. Por exemplo, quando um indivíduo apresenta doenças médicas que podem ter impacto no seu estado mental, é importante consultar um médico sobre estes aspetos (hipertiroidismo, hipoglicémia, etc.), ou quando um indivíduo tem um historial de traumatismos cranianos, o esclarecimento por parte de um neuropsicólogo é relevante.

Também é importante entender quais os objetivos da avaliação, ou seja se se trata de avaliar o estado mental no momento da ofensa, a capacidade diminuída, a necessidade de tratamento, ou a combinação destes. Este processo é diferente de uma avaliação clínica, tendo um impacto diferente nas informações específicas que o avaliador deve fornecer ao indivíduo e sobre os limites da confidencialidade inerentes à entrevista.

Torna-se assim importante salientar a questão da capacidade diminuída ou, como alguns autores referem, o conceito de semi-imputabilidade. Este conceito tem desencadeado muita controvérsia, existindo quem defenda que o conceito traduz as dúvidas e hesitações dos peritos e dos juízes, quem argumente que apenas se deve observar um critério simplista de total imputabilidade ou total inimputabilidade e, por

fim, há quem defenda que a semi-imputabilidade é uma realidade pericial inquestionável (Esbec & Delgado, 1994).

As áreas da saúde mental têm vindo a referir níveis de correspondência entre o transtorno mental e a conduta criminal (ver Quadro 7).

Quadro 7.

Níveis de relação entre alteração ou transtorno mental e comportamento criminal

Nível causal Tipo de defesa Descrição

Nível I Inimputável Correspondência perfeita entre perturbação e delito; A perturbação é inseparável (ou causa) do delito. Nível II Inimputável A perturbação tem impacto significativo no delito, e

medeia variáveis intervenientes actuais (e.g.: o ato criminal baseia-se numa interpretação delirante da realidade, resultado de um impulso irresistível, etc.). Nível III Imputabilidade diminuída A perturbação é um factor de influência, mas o

comportamento não está determinado decisivamente por ele (e.g.: a deficiente expressão emocional favorece a desinibição explosiva dos impulsos sob circunstâncias intra-sujeito e ambientais).

Nível IV Imputável A relação entre perturbação e delito é indireta, não influencia causalmente este. Há perturbação, mas esta determina atividades periféricas respeitantes ao delito, não ao delito em si mesmo.

Fonte: Shapiro (1986), citado por Lozano (2006).

Retomando o papel da entrevista, apesar de esta ser a parte central de qualquer avaliação na responsabilidade criminal, não pode terminar apenas com o relatório, sem que se tenha em conta o uso de múltiplas fontes de dados, ou seja, informações obtidas por terceiros – documentos formais relevantes, relatórios da polícia, declarações da vítima e testemunhas, das famílias, amigos, colegas de trabalho e vizinhos (Heilbrun, Warren & Picarello, 2003; Otto, Slobogin & Greenberg, 2007).

Estes dados fornecem informações úteis sobre o funcionamento do indivíduo em vários períodos relevantes de tempo e/ou no momento da suposta ofensa, bem como possíveis situações de tratamento (provenientes de problemas físicos ou mentais) obtido ao longo da vida desta pessoa, que possa ter um impacto importante nos seus comportamentos.

Quando se recolhe informação através dos dados existentes, deve-se selecionar criteriosamente quais destes permitem ao avaliador desenvolver uma formulação clínica que possa ser aplicada à figura de inimputabilidade, ou seja se um indivíduo sofria de alguma perturbação mental grave que teve impacto na compreensão da realidade ou na capacidade de exercer controlo sobre o seu comportamento no momento da suposta ofensa.

Mais uma vez o avaliador há que ter em conta que este processo de recolha de dados difere de uma situação clínica em que o cliente procura o profissional de saúde mental com o intuito de pedir ajuda, estabelecendo-se uma relação paciente-terapeuta desenvolvida com base na confiança e na expectativa de que o profissional vai ser solidário e agir de acordo com os seus interesses.

O próprio estado mental apresenta diferenças na sua concetualização, quer estejamos a falar de «estado mental» clínico ou de «estado mental» forense (Quadro 8), pois neste último caso vem de uma solicitação dos tribunais, pedindo uma informação pericial psicológica/psiquiátrica.

Quadro 8.

Dados diferenciais entre o conceito “estado mental” clínico e forense

«Estado mental» clínico «Estado mental» forense

Finalidade diagnóstica, prognóstica e terapêutica Finalidade fundamentalmente valorativa, sem excluir um diagnóstico

Não está vinculado a nenhum ato em concreto Vinculado a atos que motivam a avaliação Referido ao momento da avaliação clínica Referido ao momento em que sucedeu o ato Para ajustar a diagnósticos das nosografias usadas Para ajustar aos requisitos legais e jurisprudenciais

atuais

Pauta descritiva para delimitar critérios

diagnósticos Pauta interpretativa para delimitar critérioscomportamentais

Fonte: Micó (1996), citado por Lozano (2006).

Deste modo, o avaliador não começa com uma suposição de que o réu vai ser completamente acessível no presente processo, devendo-se observar algumas considerações específicas na obtenção das informações históricas (relevantes para a formação de uma opinião sobre perturbação/doença mental), das informações do estado mental atual (que pode estar relacionado com o estado mental do indivíduo no momento da suposta ofensa) e das próprias observações do indivíduo sobre o seu estado mental no momento do alegado crime. Neste último ponto é importante ter em conta que o indivíduo pode maximizar ou minimizar o seu nível de psicopatologia, dependendo das suas próprias motivações.

Quanto às informações sobre o historial do indivíduo, a maioria dos elementos de anamnese necessários para a avaliação da responsabilidade criminal são semelhantes aos utilizados nas avaliações clínicas: desenvolvimento, família e educação; aspetos sócio-culturais; emprego; saúde mental e aspetos religiosos. No entanto existem algumas áreas que requerem uma atenção especial: histórico de uso de álcool e/ou uso de substâncias e antecedentes criminais (Giorgui-Guarnieri et al., 2002).

As informações sobre a família de origem e o seu historial de desenvolvimento devem incluir dados sobre o histórico de doença mental na família e abuso de substâncias, o nível de ajuste inicial do indivíduo nos seus primeiros anos de vida, incluindo as relações com os seus pais, ou outras figuras parentais e irmãos, bem como histórias de separações, de abuso físico e sexual ou exposição a outros eventos traumáticos. Nesta sequência, também o historial académico deve ser obtido, não apenas do indivíduo mas também da sua família, quanto ao desempenho, ajustamento social e comportamental. É relevante saber qual o grau de escolaridade obtido, o rendimento, se frequentou educação especial e de que tipo, se era recorrente ser expulso e em que circunstâncias, a presença de limitações cognitivas e/ou de aprendizagem.

A nível sócio-cultural é relevante compreender a quantidade e qualidade das relações sociais e íntimas do indivíduo (número e duração dos relacionamentos) desde a sua infância, o número de amigos, se se trata de uma pessoa solitária, se as suas amizades são duradouras, em que cultura se insere, aspetos de violência e questões ligadas à sua sexualidade. A questão social também se interliga às questões do trabalho, sendo importante compreender a capacidade do indivíduo para obter e manter um emprego, qual o tipo de trabalho desenvolvidos ao longo da sua vida e qual a sua duração, os motivos de rescisão ou despedimento, caso estes tenham existido.

Adicionalmente, o historial de saúde mental é uma das componentes essenciais em toda esta avaliação, especificamente saber se um indivíduo tem doença/perturbação mental ou défices no seu desenvolvimento, quais os tratamentos a que foi sujeito e quais os sintomas registados. A nível médico, também é importante compreender históricos de traumatismo craniano (perdas prolongadas de consciência), crises convulsivas, défices cognitivos/comportamentais/alterações de humor após a lesão se nestes casos observaram-se mudanças significativas no funcionamento geral no período de tempo em que decorreu a alegada ofensa.

Em determinados casos, pode também ser particularmente importante o historial religioso, ajudando na diferenciação e na compreensão de delírios ou crenças incomuns de natureza religiosa de um possível caso de radicalismo. Neste caso deve-se procurar saber qual a afiliação religiosa e o empenho da família neste ponto, bem como se esta identificação persiste ao longo do tempo, ou surge apenas em alguns momentos. Uma situação análoga observa-se nas questões politicamente motivadas.

Muito importante neste tipo de avaliações é as informações sobre o consumo de álcool ou abuso de substâncias. Grande parte dos estudos com população criminosa indica uma prevalência alta na taxa de abuso de substâncias/álcool e esta taxa tem implicações bastante significativas sobre o comportamento no momento da suposta ofensa. Torna-se importante questionar em que idade começou os consumos e o grau de utilização; se já houve algum tratamento ou se existem défices funcionais associados a estes consumos e quais os efeitos da abstinência.

Este fator relaciona-se com sintomas de doença mental, sendo importante obter dados referentes a episódios psicóticos, depressão, mania e paranoia, que tenham ocorrido no contexto de utilização de substâncias. É assim pertinente avaliar se o

agressor apresenta tais sintomas, independentemente do uso de substâncias; se os sintomas se agravam com o uso de álcool ou drogas; se ocorreram episódios psicóticos induzidos pelo álcool/uso de substâncias e se estes persistiram após o período de intoxicação. Também é importante saber se o indivíduo estava sobre o efeito de álcool ou drogas no momento da ofensa; qual a última vez que este ingeriu substâncias antes desse momento; e, se no momento da avaliação o indivíduo continua a consumir.

Quanto à história criminal, deve-se procurar informações ao longo da vida do indivíduo, não apenas de condenações judiciais, mas também de comportamentos delinquentes/desviantes. Neste processo torna-se relevante saber se ao longo da história criminal do indivíduo os crimes têm sido semelhantes à atual alegada ofensa; se se trata apenas de um crime específico ou de vários crimes ao mesmo tempo; se o incidente foi racionalmente motivado; se foi cometido em grupo ou individualmente e, caso tenha sido em grupo, se o indivíduo era o líder desse grupo.

Adicionalmente deve-se considerar se os indivíduos que se envolveram em comportamentos violentos também foram vítimas de violência e se essa experiência de vitimização os motivou a praticar tais atos. Este ponto pode ter influenciado o estado mental do sujeito. Assim, a avaliação atual do estado mental deve ser compreensiva e completa de forma a avaliar ajustadamente a condição mental do indivíduo no momento da avaliação. Deve-se referir que o atual estado mental pode ser diferente quando comparado com o momento da suposta ofensa. Porém, ao observar-se os sintomas atuais, obtêm-se informações que ajudam no desenvolvimento de hipóteses e extração de dados relevantes para a reconstrução do estado mental de uma pessoa no momento da prática criminosa.

Uma avaliação do estado mental deve ter em conta o comportamento/atitude do sujeito em relação a essa mesma avaliação; analisar a sua orientação temporal e o seu nível de consciência; as suas capacidades de concentração e atenção; questões relacionadas com a memória, perceção, humor, afeto e o processo/conteúdo do pensamento; caso o indivíduo apresente doença mental, se ele reconhece os sintomas atuais e passados; avaliar o seu funcionamento intelectual e a possível presença de danos no funcionamento cognitivo; e, se o indivíduo toma ou tomou medicação ao longo da sua vida, e quais os efeitos que esta lhe causa.

A própria visão do agressor sobre os acontecimentos que ocorreram, pode estar distorcida devido ao possível espaço temporal existente entre a atual avaliação e o momento da alegada ofensa, ou pode o próprio indivíduo apresentar uma visão distorcida dos seus comportamentos, pensamentos ou emoções no passado. Um exemplo evidente destes casos é quando uma determinada pessoa apresenta um estado mental muito dissemelhante no momento do crime em relação ao momento da entrevista (Vitacco & Packer, 2004).

Outras informações interessantes devem decorrer de explicações por parte do agressor, para explicar as circunstâncias e o funcionamento deste nos tempos que antecederam o comportamento criminoso – problemas no trabalho, condições de vida, padrões relacionados com o sono, comida e bebida, discussões com outras pessoas, entre outras.

Para além destes aspetos, a análise volitiva recai sobre perguntas ao indivíduo: se este conseguiu escolher o seu comportamento no momento da ofensa; se esse mesmo comportamento foi planeado e se previu alternativas ao desfecho obtido; se assim foi, o porquê de não seguir essas alternativas ao invés da realização do crime; se achou que este comportamento era a única opção possível; durante quanto tempo antes o indivíduo pensou em cometer este ato e se realizou atos preparatórios; e, se procurou algum modo de evitar a deteção e apreensão.

Outra situação recorrente surge quando os indivíduos alegam amnésia. Também neste ponto deve-se procurar saber qual a última coisa que o indivíduo se lembra antes do suposto crime e a primeira coisa que se lembra depois deste; se esta situação ocorreu devido à presença de substâncias, ou se existem outras condições clínicas presentes que poderiam explicar este fato.

Para além de todo o procedimento de recolha de informação atrás referido e depois de recolhidos os dados, o avaliador deve interpretá-los para lhes dar significado no âmbito da responsabilidade criminal. O processo interpretativo deve basear-se num raciocínio científico de avaliação da conexão causal entre os dados e as conclusões psicolegais – através do levantamento de hipóteses em termos clínico-forenses (ver Figura 1).

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