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Processamento e integração do potencial cognitivo

APTIDÕES PRIMÁRIAS: CARATERIZAÇÃO DO FATOR

24. Crescer criativamente

1.13. Processamento psicomotor enquanto integrador da cognição

Estudos realizados por Harlow e Bromer (1942, cit. por Fonseca, 2001b), Wallon (1966, 1968, 1970), Luria (1972, cit. por Christensen), Piaget (2000) e Fonseca (2001b) indicaram que o desenvolvimento do córtex motor tem uma função primordial no desenvolvimento da aprendizagem em virtude da estimulação proporcionada ao sistema nervoso central pelas vias sensoriais que rececionam toda a complexidade de estímulos internos e externos (ambientais). Desta forma, o potencial de aprendizagem resulta de um complexo processo percetivo e multissensorial em associação à capacidade de integração, de retenção e de

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adequação sócio-emocional face às experiências vividas. Este desenvolvimento estrutura-se, segundo Wallon (1966, 1968, 1970), por uma organização hierarquizada do movimento, a qual passa por três formas de movimento: (1) «deslocamentos exógenos» veiculados pelas aprendizagens efetuadas a partir de estímulos internos proporcionados pela progenitora através de uma sincronização tónico-emocional, acrescida pelas experiências interativas que lhe são proporcionadas pelos indivíduos mais próximos. Este processo tem por base uma maturação do sistema nervoso central contribuindo para a adaptação do indivíduo ao meio circundante; (2) «deslocamentos autógenos ou ativos do corpo» em que as aprendizagens se encontram dependentes das informações provenientes dos estímulos externos (ambientais), captados pelos órgãos sensoriais. O alargamento do seu espaço familiar para outros espaços de natureza social e física, potencia uma maturação propriocetiva em resultado da conquista de uma regulação tónico-postural e tónico-motor e da capacidade de realizar movimentos mais coordenados e complexos, como a bipedia, a praxia global e fina e (3) «deslocamentos corporais coordenativos e construtivos» originários da independência psicomotora, do desenvolvimento psicolinguístico e do alargamento das interações sociais que induzem à tomada de uma consciência de si e do seu próprio corpo num meio mais amplo e diversificado. Daí que se afirme, que a aprendizagem subentende a tomada de consciência do corpo na sua totalidade, vivida e convivida com a realidade envolvente (Fonseca, 2001b).

O processo de aprendizagem, enquanto integrador da cognição, é temporalmente longo e passa por uma série de etapas distintas. Relativamente às fases do desenvolvimento psicomotor Ajuriaguerra (1971) definiu três: (1) «organização do alicerce motor» que consiste na organização percetiva e vestibular, estruturação do tónus muscular, entre outros elementos basilares à psicomotricidade; (2) «organização do plano motor» que consiste na integração sucessiva da plasticidade anatómica e fisiológica permitindo toda uma mobilidade espácio-temporal em associação a um progressivo crescimento cognitivo e social e (3) «automatização das aquisições com redução do tempo de execução» que consiste na eficácia obtida em termos de operações psicomotoras pelo facto de terem sido integrados, processados e automatizados todo um conjunto de operações psicomotoras finas e globais necessárias à realização das múltiplas tarefas do quotidiano.

Tendo por base as palavras de Fonseca que entende que «O nosso corpo não se revela como objeto mas como imediatividade de uma existência» (1985a, p. 47) depreende-se, por inerência e complementaridade, que o corpo «É o espaço corporal de cada um, que cria e organiza o espaço objetivo no qual sentimos, nos emocionamos e agimos» (Barros, 1999, p. 251). Por outras palavras, é «A realidade última do meu ser, é o corpo que sou, ou seja, o “eu” que ele é» (Ferreira, 1994, p. 256). Teorizar sobre processamento psicomotor ou psicomotricidade é abordar uma correlação intrínseca e indissociável: mente (psico) e corpo (motricidade). Com efeito,

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A psicomotricidade preocupa-se com o movimento mas como um meio, um suporte que auxilia a criança a adquirir o conhecimento do mundo que a rodeia. Por meio do seu corpo, das suas perceções e sensações, por intermédio da manipulação constante de materiais que a cercam, ela adquire a oportunidade de se descobrir (Oliveira 1999, p.178).

Isto equivale a afirmar que a vivência psicomotora potencia a tomada de consciência de uma realidade exterior a si (mundo) paralelamente à noção da sua própria existência, ou seja, a noção do Eu integrado num dado ambiente, num constante processo evolutivo (Athayde, 1971). Na perspetiva de Lerbert (1971), esta noção do Eu evolui por meio de um duplo processo: através de uma diferenciação progressiva de tudo o que era global, em simultaneidade com uma integração numa estrutura mais complexa destas diferentes partes. Este duplo processo complementa a distinção do corpo estabelecida por Ribeiro (2003) ao entender o corpo próprio como duas estruturas diferentes: a estrutura exterior (física, biológica) e a estrutura interior (vivida, fenomenológica), patentes na definição de Vayer (1992), um dos defensores do dualismo do corpo e do espírito.

Segundo Fonseca (1985b), Ajuriaguerra & Marcelli (1991) e Vayer (1992), o corpo deve ser perspetivado em dois aspetos: o «aspeto funcional» - em que a criança age pelo prazer de agir e o «aspeto intencional» - em que a criança age para aprender ou para comunicar com o real, exterior a si. Neste sentido, o corpo torna-se o meio pelo qual o indivíduo restaura e estabelece a adesão com o real porque integra no seu pensamento as perceções, as associações, as tendências e intenções, consequências de uma atitude ativa, adquirida através de processos motores. Por um lado, tem-se um corpo em movimento, condicionado por uma ação justificada pela finalidade desse movimento; por outro, tem-se um corpo em relação com um ambiente, capaz de influir sobre este mesmo movimento (Ajuriaguerra & Marcelli, 1991, Fonseca, 1985b e Vayer, 1992).

O ser humano tem, pois, que aprender a movimentar-se no espaço (físico e cognitivo) e só será eficiente (humano) quando o seu movimento se ajustar a esse espaço envolvente (Mendes & Fonseca, 1982). Pelo que, «Quanto mais numerosas e mais ricas forem as situações vividas pela criança, maior será o número de esquemas por ela adquiridos». (Lagrange, 1977:25). Lagrange (1977) define estas situações vividas como «o vivido corporal». As faculdades de adaptação e, simultaneamente, a construção da personalidade da criança estão dependentes das facilidades, ou não, que esta terá em adquirir, associar e desenvolver em maior ou menor número de esquemas ou experiências, para os transferir para uma nova situação, dado que é através do movimento (ação) que a criança integra os dados e as referências sensitivo-sensoriais que lhe permitem adquirir a noção do seu corpo (Fonseca, 1988).

A realização de ações psicomotoras de diversa natureza, alinhadas, estruturadas e associadas à intencionalidade de potenciar a cognição e de experimentar novas práticas,

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favorece, segundo Fonseca (1988), as seguintes competências: (1) harmoniza o comportamento motor; (2) enriquece as estruturas de integração e elaboração cognitiva e (3) contribui para uma reorganização funcional. Esta reorganização funcional compreende duas fases: (1) 1ª Fase: «Descondicionamento» – por em funcionamento, todo um potencial inativo na criança e (2) 2ª Fase: «Progressiva reestruturação dos sistemas psicomotores» - aplicar meios de ação que permitam melhorar atitudes, aumentar a plasticidade cerebral e a adaptabilidade ao meio envolvimental. Se o processamento psicomotor for desenvolvido enquanto forma de mediação corporal ele torna-se num meio por excelência, num recurso de extrema importância, enquanto resposta eficaz perante situações onde a adaptação está comprometida e onde é fundamental uma compreensão holística e interligada do funcionamento da criança nos seus vários domínios: comportamental, motor, afetivo, cognitivo, comunicacional (Fonseca & Martins, 2001).

Não obstante, Fonseca (2001a) adverte para o facto de que uma mediação corporal requerer um «mediatizador de excelência» i.e. alguém que intervenha simultaneamente nas funções emocionais e afetivas da criança utilizando, para o efeito, estratégias de intencionalidade, reciprocidade, significação, transcendência, novidade, complexidade, segurança, conforto, sentimento de competência, de busca e de satisfação de objetivos, de transferência, etc., de forma a reforçar, contribuir e acelerar a plasticidade e a modificabilidade dos potenciais psicomotores da criança.

De facto, quando uma criança se encontra em carências de possibilidades de troca com o meio, essas privações conduzem a carências de imaginação, de criação, de intuição que só através da ação pelo corpo, primeiro funcional e depois intencional, é que a criança reaprende a realidade do mundo envolvente e se apropria dele. Através do processamento psicomotor a criança age pelo prazer de agir e pelo prazer de ser, e é este prazer que exerce e desenvolve as suas aptidões neurofisiológicas (Vayer & Destrooper, 1992).

O desenvolvimento cognitivo destas aptidões só é possível, na perspetiva de Fonseca (1988) porque o corpo é o lugar de referência para a criança, sendo também o seu universo pessoal a partir do qual se inicia na conquista do seu universo extra-corporal. Este é o ponto de partida da organização do espaço exterior. Pela utilização do seu corpo, a criança atinge a discriminação do Eu e do Não-Eu, ao mesmo tempo que integra o envolvimento no seu pensamento. A noção de corpo relaciona os aspetos que opõem a singularidade da criança à universalidade da pessoa, apesar de corpo e cérebro formarem um organismo indissociável. O organismo, constituído pela parceria cérebro–corpo, interage com o ambiente como um conjunto, não sendo a interação só do corpo ou só do cérebro (Damásio, 2001a). Como forma de aglutinar a informação mais relevante apresentam-se na tabela 8 as propriedades do sistema psicomotor humano, a respetiva interdependência componencial e a sua significância neurofuncional, segundo Fonseca (1995).

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Tabela 8 – Apresentação sincrética das propriedades do Sistema Psicomotor Humano, sua Interdependência Componencial e Significância Neurofuncional, adaptado de Fonseca (2001b).

Por fim, um sublinhado especial às palavras de Fonseca (2001b, p. 33) sobre a importância do processamento psicomotor enquanto integrador da cognição. Para o autor, esse processamento, permite «estimular pelo movimento o desenvolvimento do pensamento, um paradigma da educação e da habilitação de ontem e de hoje e, certamente, do futuro».

Propriedades do Sistema

Psicomotor Humano Interdependência Componencial Psicomotora Neurofuncional Significância Totalidade A psicomotricidade é um todo único. Integração psicomotora

Interdependência A psicomotricidade envolve uma inter- relação de funções cognitivas, como:

1. Atenção 2. Memória 3. Motivação 4. Linguagem 5. Autorregulação 6. Aprendizagem Escolar 7. Desenvolvimento Social Família psicomotora

Hierarquia A psicomotricidade contém níveis de

organização e de complexidade crescente. Desenvolvimento psicomotor

Autorregulação A psicomotricidade subentende um sistema teleológico e sinergético que realiza fins por meio de feedbacks múltiplos.

Cibernética psicomotora

Intercâmbio A psicomotricidade compreende um sistema multifuncional de relações com o mundo exterior, co-activadas aferente e eferentemente entre o cérebro (psíquico) e o corpo (motor).

Reaferência psicomotora

Equilíbrio A psicomotricidade é um sistema evolutivo anti-entrópico, contendo uma filo e ontogénese que pode tornar-se disfuncional devido a diferentes causas.

Síndromas psicomotores

Adaptabilidade A psicomotricidade é um sistema plástico

ajustado às exigências ecológicas. Modificabilidade psicomotora

Equifinalidade A psicomotricidade é um sistema, por meio do qual, o pensamento se transforma em ação, recorrendo a múltiplas formas: desde a macro à sóciomotricidade, passando pelo micro, oro e grafo motricidade.

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