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O conceito restrito de alfabetização a limita a um dado período e a determinadas aquisições, esquecendo-se da permanência da aprendizagem ao longo da vida. Por outro lado, o conceito amplo negligencia a etapa importante da aquisição, valorizando o permanente desenvolvimento neste processo. Nesse sentido, Soares (2003, p. 104) nos orienta que "[...] é preciso diferenciar um processo de aquisição da língua  oral e escrita  de um processo de desenvolvimento da língua.”

A aquisição diz respeito à construção de competências voltadas para as especificidades da alfabetização (princípios do sistema de notação alfabética, codificação, decodificação, compreensão, dentre outras). Com base em documentos da política educacional brasileira, há a expectativa de que no 3º ano do ensino fundamental, por volta dos 8 anos de idade, o sujeito tenha, ali, a ‘idade própria limite’ para a consolidação dessas competências, no âmbito das especificidades da alfabetização.

A exclusão do direito subjetivo à alfabetização tem se consolidado como um problema social de difícil solução. Sobre esse tema, destacamos as contribuições de Emília Ferreiro (2001), Ana Teberosky (1995), Magda Soares (2005) e Paulo Freire (2006). São pesquisas que têm nos mostrado que não se trata de ensinar somente a

decompor os códigos linguísticos, mas de interpretar, fazer relações, interrogar-se sobre os significados do sistema de escrita e ser suficientemente competente para se inserir nas práticas sociais que envolvem o referido sistema.

Neste sentido, as contribuições da psicogênese devem ser consideradas como marco teórico para a mudança de paradigma. Baseada nos trabalhos piagetianos que, por sua vez, partem da crítica aos inatistas e empiristas, a psicogênese da língua escrita explica que o processo de alfabetização implica diretamente na compreensão do significado da leitura/escrita, que se desenvolve por meio de diversas experiências e construção de hipóteses pelo sujeito cognoscente.

Tendo como objeto de estudo a gênese psicológica da compreensão da língua escrita, as investigações que resultaram na psicogênese demonstraram a existência de mecanismos psicológicos existentes no sujeito, no processo de apropriação da língua escrita.

Ao compreender a concepção psicogenética, entendemos também que o aluno (criança ou adulto alfabetizando) é um sujeito epistêmico, que, por meio da relação com o objeto do conhecimento  a língua escrita  transforma esse objeto pela assimilação. Depois de assimilado esse conhecimento, o sujeito é transformado pelo objeto – acomodação  porque construiu novos conhecimentos e, consequentemente, reconstruiu os já existentes. Entre a assimilação e a acomodação acontece um movimento dinâmico e contínuo que é a adaptação, processo que se refere ao reestabelecimento do equilíbrio.

A alfabetização é um processo de natureza rica, dinâmica e complexa. A psicogênese da língua escrita tem respondido, satisfatoriamente, a essas características, tornando-se, para a área, uma das produções científicas, mais significativas dos últimos tempos.

Para Ferreiro (2001), não existe um conceito de alfabetização que seja válido para qualquer lugar ou época. Este depende, dentre

outros fatores, do contexto, da realidade social, do significado que atribuem à leitura e à escrita.

Não desejamos alfabetizar para que os alunos sejam capazes de, apenas, escrever bilhetes simples ou reproduzirem textos, mas, muitas vezes, esse é o sentido inicial para quem deseja se manifestar por meio da escrita, mesmo que só possa, simplesmente, decodificar signos gráficos. Não resta dúvida de que os aportes teóricos sobre alfabetização são úteis para alunos, seja qual for sua idade, na medida em que focalizem a compreensão acerca de como os alunos pensam sobre a escrita.

No entanto, conforme nos ensina Paulo Freire (2006), há outros aspectos que não devem ser negligenciadas: as características singulares de cada alfabetizando jovem e adulto, as condições materiais de existência, seu entorno social, suas histórias escolares, dentre outras. As singulares histórias tecidas nas salas de aula fortalecem a ideia de que é preciso conhecer para entender as reais situações daqueles sujeitos. Exemplo disso pode ser percebido na fala de professora Delta (2012): “Eles ficam brincando com a caneta fazendo de agulha. Aí um se vira pro outro e fala bem alto ‘Isso é a falta da droga, da maconha, do crack’. Falam isso como quem fala ‘Isso é a falta de um caderno, de um lápis!’.”

Cadernos e lápis, infelizmente, não têm protagonismo em suas histórias, abrindo espaços para indevidas experiências, que os afastam, ainda mais, das aprendizagens básicas de todo e qualquer indivíduo. Contrariamente, a difícil realidade desses alunos pode ser transformada em situações de aprendizagem, como relata professora Psi:

Essa semana, o tio de um aluno foi assassinado e os outros eram amigos, né?!... Na quarta-feira, esse aluno estava muito triste, porque todos eram amigos dele. Então, dois alunos meus que moravam em frente não vieram. E isso suscita, realmente, uma realidade. Aí eu trouxe o jornal que falava sobre essa situação e a partir daí elaborei e executei com eles

várias atividades em que eles tiveram a possibilidade de expor suas opiniões. (PSI, 2012).

Gostaríamos que os alunos das escolas brasileiras fossem capazes não somente de manifestar suas ideias, mas que pudessem realizar leituras críticas, e assim usufruir do seu direito à educação, além de resolver questões práticas, terem acesso às informações, à literatura, ao universo letrado, à cultura. Sobre o uso social da leitura/escrita, Teberosky e Tolchinsky (1985, p. 9) afirmam: “A escrita tem uma longa história social de mais de cinco mil anos de uso. Tem sido utilizada em múltiplas circunstâncias: nas transações comerciais, nos registros de fatos ou ideias, na expressão poética.” Deste modo, o domínio da escrita permite a sensação no indivíduo de aumento de prestígio junto aos seus semelhantes. Esta, muitas vezes, é a motivação para o jovem/adulto tentar vencer os desafios, embora muitos temam não conseguir, trazendo o fantasma do fracasso para junto de si.

Tais aspectos foram pensados por Paulo Freire (2005), ao consolidar o “Método Paulo Freire”, que ultrapassa a mera alfabetização, por se tratar de uma proposta com vistas à liberdade dos oprimidos, priorizando a conscientização. As pesquisas sobre o universo vocabular dos alunos eram realizadas com bastante antecedência, pois, como nos alertou o teórico durante sua vida, a leitura do mundo precede a leitura da palavra. Pensemos no contexto dos alunos, de forma crítica.

Como vimos, a nossa sociedade é grafocêntrica e tem justificado a necessidade do aprendizado da leitura e da escrita, de diferentes formas e intensidades, pois os significados são atribuídos de acordo com os contextos de vida em que os indivíduos estão inseridos. Portanto, a alfabetização é um processo cultural e socialmente construído. Para Soares (2003), é um fenômeno multifacetado com duas dimensões: uma individual, caracterizada pela construção da capacidade do indivíduo para ler e escrever e outra social, relativa aos

usos da leitura e da escrita. Nesse sentido, atribuir às pessoas a culpa pelo analfabetismo na falta de inteligência é reduzir o processo de alfabetização a um mero treinamento e limitar o aluno a alguém que pode ser domesticado.

Nessa discussão, não podemos esquecer os princípios da educação libertadora de Paulo Freire que nos oferece o exemplo da prática alicerçada num projeto histórico e problematizador de alfabetização. Sabemos que quanto maiores forem as interações dos alunos e mais ricas e variadas as experiências de uso social da leitura e da escrita como material letrado, o alfabetizando se apropriará com mais facilidade dos códigos linguísticos. Portanto, a prática pedagógica deve apoiar-se em estratégias que possibilitem ao sujeito, por meio de relações mediadas com a língua escrita como objeto do conhecimento, construir seus próprios conhecimentos. Sendo assim, o sujeito é orientado a apropriar-se do sistema de notação alfabética por intermédio de sua imersão na cultura escrita.

4.2 Alfabetização e letramento: construindo espaços de interlocução