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Quem são esses sujeitos, alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA)?

Os jovens e adultos que não conseguiram concluir seus estudos em idade própria e lutam para não mais integrar a estatística apresentada no PNE (BRASIL, 2011), que aponta mais de 14,4 milhões de pessoas, acima dos 15 anos, analfabetos em todo o país, poderiam

sintetizar o complexo perfil daqueles que participam do programa escolar para jovens e adultos. Segundo o Parecer CEB nº 11/2000, a matrícula facultativa no Ensino Fundamental pode ocorrer até os quatorze anos. (BRASIL, 2000). No entanto, há muito mais a ser acrescentado. Por isso, nesse estudo, nos propomos, dentre outros aspectos, a refletir sobre os conceitos e preconceitos atribuídos a esse grupo social, numa perspectiva histórico-crítica.

População que viveu à margem do conhecimento formal, sendo estigmatizada como analfabeta e como pessoas que não conseguem aprender; de fato, na maioria de suas histórias, constam evasões escolares e reprovações que resultam numa percepção negativa de si mesmas, como revela a fala de J42 (2011): “Porque a pessoa sem leitura não é nada... É como um cego que tá vendo o negócio ali, mas não sabe o que é que é...” A fala expressa uma percepção autodepreciativa, ao afirmar que “[...] a pessoa [...] não é nada”, desconsiderando outros aspectos que o constituem como cidadão, “[...] dando legitimidade ao consenso social que traz a alfabetização como única via de ascensão social e de aquisição de direitos.” (COSTA; OLIVEIRA, 2011, p. 140). No entanto, esses alunos são, em geral, educandos com vasta experiência de vida, aprendizes que têm capacidades cognitivas e já desenvolveram diversas leituras da realidade do mundo próximo.

Considerar as particularidades da EJA implica reconhecer que não há como caracterizar os sujeitos que dela fazem parte, de forma homogênea, ponderando que as semelhanças que caracterizam aqueles que pertencem a essa modalidade, não excluem as subjetividades e as culturas dos indivíduos. Entretanto, sabemos que esses sujeitos vivenciaram situações de desigualdades sociais, trazendo consigo histórias em que, as oportunidades de aproximação com o conhecimento foram, de algum modo, subtraídas. Assim, a maioria do alunado que compõe a EJA vivencia o fantasma da exclusão e carrega sentimentos de não pertencimento à sociedade.

Desse modo, o jovem e o adulto que voltam a estudar, enfrentam preconceitos e rótulos, que dificultam o reconhecimento de suas potencialidades, como sinaliza D42 (2011): “A gente tem vergonha de dizer que vem pra EJA, porque é o mesmo que dizer que é burro, que não aprendeu.” Essa sensação de menos valia que acompanha o jovem e adulto em fase de alfabetização pode ser explicada pelo prestígio conferido a quem domina a leitura e a escrita e ao consequente desprestígio daqueles que não têm essa habilidade, levando-os a se sentirem incapazes e envergonhados, revelados também nas falas: “Eu me sinto a mais burra de todas as criaturas, cansada e com a mente fraca.” (V19, 2011). “Eu me sinto muito envergonhado, como um cego, que olha, mas não vê.” (P39, 2011). Esses aspectos nos direcionam a um compromisso que deve ser assumido por todos que compõem a EJA: a busca pela superação de diferentes formas de exclusão e discriminação presentes em nossa sociedade.

Nesse sentido, as professoras reconhecem que o sentimento depreciativo é fruto de experiências negativas ainda na infância, muitas vezes na própria família, como nos adverte a professora Psi (2012): “[...] o próprio pai, os próprios amigos, quando a criança não consegue ler rápido, dizem logo que é burrice, é preguiça.” Eis mais um desafio para os educadores da EJA: “[...] a gente tem que mostrar que é o contrário, que eles são os verdadeiros heróis. Eu penso isso dos meus alunos. Às vezes, eu pensava, não externava, mas pensava “poxa! Esse aluno não quer nada [...], até que vim conhecer a realidade de um. Basta de um.” (BETA, 2012).

Do mesmo modo, ensina-nos a professora Zeta (2012): “Porque ele se sente envergonhado e é uma sensação muito ruim, muito negativa. Mas essa vergonha pode vir a ser motivadora. Ninguém quer viver numa situação dessas. Tal sentimento pode apontar, sutilmente, para a perspectiva, o desejo de mudar.”

A aproximação com a realidade dos alunos e de suas demandas nos indica a necessidade de adentrar nas funções da EJA. De acordo com Campelo (2009), com base no Parecer do CNE/CEB n. 11/2000, existem três funções atribuídas à EJA: a função qualificadora, que dá maior amplitude a essa modalidade de ensino, com perspectiva de educação permanente; a função equalizadora que, apesar de significar um reconhecimento da dívida social com esse grupo de sujeitos, discrimina os demais das classes mais favorecidas; a função reparadora, que focaliza a alfabetização, até pelas demandas nacionais, sendo esta última articulada às duas primeiras e que também auxilia no processo de percepção do potencial de tais sujeitos.

Insegurança, descrença, medo de novos fracassos, estão presentes nos alunos da EJA que, embora apresentem demandas e realidades diversificadas, encontram-se mergulhados em inúmeras características que os identificam. Esses alunos têm experiências de vida que formam seu próprio legado cultural, que inclui o saber popular, o cotidiano de suas relações sociais, vivências em diversos contextos. Nesse sentido, a professora Alfa (2012) orienta: “[...] a gente tem que trabalhar com a autoestima também, para mostrar que eles têm conhecimento, que eles são capazes. É constante essa fala de que eles querem mostrar que possuem saberes. ‘Eu tenho um conhecimento, eu tenho um saber!’. É uma constante! Essa consciência de não ser nulo.”

Freire (2006) conceitua esses conhecimentos de saber de experiência feita e sugere que esses sejam reconhecidos como fonte para a educação emancipatória. A experiência social construída, historicamente, por esses sujeitos, deve ser levada em consideração, quando se pretende formar indivíduos autônomos e capazes de interpretar, criticamente, as condições históricas e sociais em que vivem os jovens. Berger e Luckmann (1983, p.35) lembram que “[...] a vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens e, subjetivamente, é dotada de sentido para eles, na medida em que forma um mundo coerente.” Preocupam-nos as condições de

interpretação que alguns jovens possuem diante da ineficiência educacional ao longo de suas vidas, como bem reflete E18 (2011): “Eu nasci assim. Sou limitado mesmo, só dei pro trabalho, que não precisa de estudo.”

Sabemos que os significados e sentidos atribuídos a si mesmo são relacionados às suas trajetórias e vivências e não necessariamente todos os jovens e adultos sentem-se “limitados”, ainda que participem de processos socioeconômicos semelhantes. No entanto, os alunos da EJA estão inseridos em processos culturais e históricos que os constituem como grupo, até pelas suas semelhanças e particularidades. Uma delas é a não compreensão de que sua condição atual é fruto de múltiplos fatores, ao invés do determinismo genético autoatribuído por E18, (2011).

Meninos de rua, vendedores ambulantes, limpadores de vidros estão entre algumas das atribuições que o aluno da EJA tem ou, pelo menos, já teve. Distantes no período próprio da Escola, os jovens, em geral, não entendem que não usufruíram dos proclamados direitos da infância, embora o Artigo 227 da Constituição afirme que

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à saúde, à alimentação, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, crueldade e opressão. (BRASIL, 2005).

Quando as obrigações legais não são cumpridas, as consequências vivenciadas pela população fortalecem o imaginário coletivo de que o ensino formal é a chance que têm, ou tinham, para a ascensão social. Assim, por meio da Escola, entendem que teriam mais possibilidades de conseguir melhores situações de vida, o que pode ser exemplificado na fala de A47 (2011): “Se eu tivesse estudado, minha vida era outra.”

Em uma pesquisa realizada por Leal, Albuquerque e Amorim (2010, p. 74), ao questionar o motivo de os jovens voltarem a estudar, eles constatam que: “Uma das principais razões para o retorno às atividades escolares era o desejo de aprender a ler.” De acordo com o estudo, ficou evidenciado que os jovens e adultos demostraram muito claramente seus interesses pela leitura por essa ser a via de acesso a situações variadas.

Certamente esse acesso propiciaria novas possibilidades e experiências aos sujeitos, pois é evidente que uma criança e um adolescente que não usufruem de seus direitos estão expostos ao ciclo vicioso da pobreza e das demandas que esta acarreta, aumentando os índices que envergonham o Brasil. Segundo dados da Unicef, publicados na Folha Online “[...] mais de 27 milhões de crianças vivem abaixo da linha da pobreza no Brasil e fazem parte de famílias que têm renda mensal de até meio salário mínimo.” (UNICEF, 2004). Esse fato também se dá pela falta de escolaridade desses indivíduos, por não haver programas mais amplos que privilegiem a ascensão educacional dos sujeitos, pois, para Gentili (2007, p.38), “[...] programas com um alvo específico, não importa quão bem projetados e cheios de vitalidade, têm pouca perspectiva de obter maiores efeitos a menos que sejam parte de uma agenda mais ampla visando justiça social na educação.” Com efeito, trata-se de um problema social complexo que não será resolvido por programas isolados.

Do mesmo modo, não podemos simplificar o problema, compreendendo-o como uma simples equação: educação escolar x mobilidade social. No entanto, é imprescindível reconhecer que a educação é necessária para constituição de uma cidadania plena. As práticas e os usos da leitura, por exemplo, são elementos importantes de participação social.

Além dos fortes estigmas sociais, os indivíduos analfabetos ou pouco letrados não têm o devido acesso às informações, sendo alvos, com mais facilidade, das diversas manipulações. Desse modo, cabe à

escola oferecer-lhes confiança em seus propósitos, como aponta a Professora Psi (2012): “Eles precisam ter consciência e segurança do que querem. Eles sabem que a gente cuida, não os manipula, e isso traz segurança. Aqui eles sentem segurança, se sentem acolhidos, sabem da atenção e o respeito que temos às suas necessidades.” Nesse sentido, entendemos o motivo das turmas da EJA estarem, em sua maioria, repletas de jovens analfabetos ou dos que não se sentem seguros com práticas letradas. Soares (2003) afirma que

Socialmente e culturalmente, a pessoa letrada já não é a mesma que era quando analfabeta ou iletrada, pois ela passa a ter uma outra condição social e cultural – não se trata propriamente de mudar de nível ou de classe social, cultural, mas de mudar seu lugar social, seu modo de viver na sociedade, sua inserção na cultura – sua relação com os outros, com o contexto, com os bens culturais torna-se diferente. (SOARES, 2003, p. 37).

Desse modo, entendemos que a aproximação com a cultura escrita é uma das principais chaves para o êxito escolar, como também o fato de que sua distância traz bloqueios condicionantes à falta de continuidade nos estudos, visto que essa ausência dificulta a aproximação com o conhecimento, bem como desencoraja atitudes de investimento pessoal, para sanar as dificuldades que acontecem no percurso escolar.

3.2 A escola que se tem e a escola que os jovens e adultos querem