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2 SOBRE O TRABALHO E SUA ORGANIZAÇÃO

2.1 O PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE

Dentre os setores que constituem a economia, o trabalho em saúde insere-se no setor terciário, ou seja, aquele em que o trabalho humano é mais distante da relação direta com a natureza. Desta forma, “o trabalho em saúde configura-se como um trabalho reflexivo destinado à prevenção, manutenção ou restauração de algo (a saúde) que é imprescindível ao conjunto da sociedade” (PEDUZZI, 1998, p. 42). Essa configuração ocorre devido à forma como são apreendidas e interpretadas as necessidades de saúde pelos sujeitos/agentes, trazidas pelos sujeitos/usuários, os quais as sentem e as levam ao serviço.

Para Pires (2008), o trabalho em saúde é essencial para a vida humana, estando na esfera da produção não-material, e se completando no ato da sua realização. A prestação desse serviço, ou seja, o ato assistencial, em si, envolve o trabalho de diferentes profissionais, detentores de conhecimentos e técnicas especiais para assistir a indivíduos ou grupos. Peduzzi (1998, p. 48) afirma que o envolvimento desses diferentes profissionais, cada qual realizando atividades próprias de sua especialidade, constituem processos que se complementam, ampliando as possibilidades de “reconhecimento e atenção às necessidades de saúde dos usuários, em eficiência e eficácia”.

Desta forma, as diferentes categorias profissionais, como, por exemplo, o médico, trabalhadoras em enfermagem, a fisioterapeuta, a nutricionista, o odontólogo, o farmacêutico, dentre outras, executam o seu trabalho aplicando características da divisão parcelar do trabalho, nas quais se encontra a fragmentação de tarefas, de modo que, através da articulação dessas ações, o usuário possa ter suas necessidades de saúde atendidas.

Considerando-se a sociabilidade e a historicidade do trabalho em saúde, Nogueira (1997) apresenta três dimensões inter-complementares desse trabalho, a saber: que é um processo de trabalho geral, compartilhando das características dos processos que se dão na indústria e em outros setores da economia; que toda assistência prestada é um serviço; e que esse serviço se funda numa inter-relação pessoal profunda.

Assim, considera-se que o trabalho em saúde compartilha das características de todo trabalho humano como a intencionalidade, a subjetividade, a intelectualidade, o potencial de socialização e seu processo sistemático. Peduzzi (1998, p. 24) afirma que “a dinâmica intrínseca do trabalho entre objetos, saberes e instrumentos materiais e atividades só é possível pela ação do agente”. A autora apresenta uma distinção entre duas formas de trabalho em saúde. A primeira como atividade genérico-assistencial, “quando resulta útil a outras pessoas, quando em uma dada sociedade cumpre uma função necessária ou satisfaz uma necessidade social”; e outra como atividade cotidiana, justificada pelo fato de a vida cotidiana ser considerada como a reprodução do ser particular.

Para Peduzzi (1998, p.47), “ao se falar em trabalho em saúde contemporâneo fala-se de trabalhos peculiares a uma dada conformação social, o capitalismo, inerentes às práticas de saúde na modernidade e articulados às demais práticas sociais da época”. Pode-se, portanto, considerar como objeto de estudo do campo da saúde as necessidades demandadas pelas populações nas dimensões individuais e coletivas, por entendermos que essas necessidades são decorrentes do processo social emergente dos meios de produção.

Desta forma, torna-se importante destacar que o trabalho em saúde não é realizado sobre coisas, sobre objetos, e sim sobre pessoas, ocorrendo uma inter-relação entre quem presta o serviço e quem o consome. Assim, o usuário é tido como co-participante de todo o processo de trabalho, fornecendo os valores de uso necessários a esse processo. Pelo fato de os objetos de trabalho, no âmbito do trabalho em saúde, sempre se referirem ao ser humano, faz-se importante apreendê-los na objetividade e subjetividade que lhes são inerentes, assim como a aplicação dos vários instrumentos (saberes ou materiais) são sempre permeados pelas relações interpessoais entre o usuário e o agente (NOGUEIRA, 1997; PEDUZZI, 1998).

Rocha e Almeida (2000) afirmam que o setor saúde é responsável por dar resposta a uma pluralidade de necessidades, seja por intervenções tecnológicas de alta complexidade e especialidade, seja nos espaços da vida cotidiana. Desta forma, apenas a intervenção e recuperação do corpo biológico não tem respondido de forma plena às necessidades de saúde, pois estas vão além, tornando-se, para isto, necessária uma abordagem integral ao ser humano, promovendo, assim, qualidade de vida e saúde.

Assim, os profissionais de saúde devem ter a compreensão de que as necessidades de saúde não se resumem às necessidades fisiológicas, sanadas por procedimentos técnicos. É preciso que se leve em consideração que estas necessidades estão permeadas por um amplo

conjunto de aspectos históricos, sociais, culturais e econômicos, que repercutem diretamente na vida individual e coletiva das pessoas. Portanto, o trabalho deve estar pautado em ações que prezem pela integralidade, respeitando as características individuais de cada um.

Nesse sentido, Rocha (1990) resgata o conhecimento como um dos momentos importantes do processo de trabalho, sendo determinado historicamente pelas características do objeto e pela finalidade do trabalho. E isto nos permite afirmar que nem sempre as finalidades do trabalho em saúde são atingidas através do arsenal tecnológico do qual é dotado, mas através do conhecimento que se processa nas relações subjetivas entre os profissionais e os usuários dos serviços de saúde.

A esse respeito, Merhy et al. (2006, p. 120-121) elucidam que

O trabalho em saúde não pode ser globalmente capturado pela lógica do trabalho morto, expresso nos equipamentos e saberes tecnológicos estruturados, pois o seu objeto não é plenamente estruturado e suas tecnologias de ação mais estratégicas se configuram em processos de intervenção em ato, operando como tecnologias de relações, de encontros de subjetividades.

Abordando essa discussão das tecnologias do trabalho em saúde, Mendes-Gonçalves (1994) amplia a concepção de tecnologia, não a restringindo ao conjunto de instrumentos materiais do trabalho, mas constituída pelos saberes e por seus desdobramentos materiais e não materiais na produção dos serviços de saúde. As tecnologias expressam, portanto, relações entre os homens e entre os objetos sobre os quais trabalham, que não se ligam só a eficácia útil dos instrumentos, mas dizem respeito às relações sociais que os homens estabelecem e modificam na sua relação com a natureza e a história.

Para Merhy (2005, p. 46), o termo tecnologia refere-se diretamente à temática do trabalho, e desta forma, à sua “ação intencional demarcada pela busca da produção de “coisas” (bens/produtos) que funcionam como objetos, mas que não necessariamente são materiais, duros, pois podem ser bens/produtos simbólicos (que também portam valores de uso) que satisfaçam necessidades”.

Ampliando essa discussão, Merhy et al. (2006, p. 121) propõem a possibilidade de mudanças no processo de trabalho em saúde, a partir da mudança na intersubjetividade, ou seja, nas relações intersubjetivas entre os sujeitos que trabalham e entre estes e os que utilizam os serviços de saúde. Com isso, classifica as tecnologias envolvidas no trabalho em saúde como:

[...] leve (como no caso das tecnologias de relações do tipo produção de vínculo, autonomização, acolhimento, gestão como uma forma de governar processos de trabalho), leve-dura (como no caso de saberes bem estruturados que operam no processo de trabalho em saúde, como a clínica médica, a clínica psicanalítica, a epidemiologia, o taylorismo, o fayolismo) e dura (como no caso de equipamentos tecnológicos do tipo máquinas, normas, estruturas organizacionais).

Assim, a utilização das tecnologias leves pelos profissionais de saúde, que são as tecnologias relacionais, possibilita a criação de espaços de fala, de escuta, vínculo e acolhimento, por meio de uma relação de intercessão com o mundo subjetivo do usuário e o modo como ele constrói suas necessidades de saúde.

Essas tecnologias possibilitam ainda a criação de espaços de cooperação e partilha de saberes entre os diferentes profissionais da saúde, permitindo o desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar, articulado e coletivo dentro da própria equipe, objetivando, sobretudo, a partilha de conhecimentos e experiência de cada indivíduo envolvido no processo de assistência à saúde da população.

Entretanto, Ayres (2000, p. 118) contesta a classificação supracitada, trazendo o conceito de tecnologia proposto por Lalande (1993) como um termo que substitui o termo técnica, o qual designa o "conjunto dos procedimentos bem definidos e transmissíveis,

destinados a produzir certos resultados considerados úteis...”. Assim, Ayres (2000) põe em

questão se a ideia de "procedimentos bem definidos" e "destinados a produzir certos resultados" não implica em um impedimento para a criação de espaços em que se expressem as relações de subjetividade entre os indivíduos envolvidos no processo de assistência à saúde e os usuários.

De acordo com Nogueira (1997), outra característica inerente ao processo de trabalho em saúde é a fragmentação dos atos, pois a saúde não se configura como uma área que opera na lógica da substituição de tecnologia por trabalho. Então, na maioria das vezes é necessário ao usuário dos serviços de saúde passar pela intervenção de diferentes profissionais, de modo a alcançar a resolução de seu problema, o que caracteriza uma desarticulação de ações, contribuindo para a realização de atos isolados, levando a não concretização dos cuidados em saúde.

Assim, é esperado pelos profissionais da saúde que o usuário vivencie essa experiência da fragmentação como algo inerente à prestação dos serviços de saúde, onde o usuário vê-se, na maioria das vezes, obrigado a deslocar-se fisicamente de um setor a outro, ou até mesmo

entre serviços, sem muitas vezes saber o porquê de tudo isto, implicando em uma fragmentação tanto na prestação quanto no consumo destes serviços, prejudicando a efetivação da integralidade.

Para Nogueira (1994, p. 88), essa fragmentação é resultado da própria estrutura organizacional dos serviços, que trazem consigo essa decomposição extrema de tarefas, como no Brasil, onde “grande parte dos serviços privados de exames complementares que mantêm contratos com o setor público são bastante especializados em certos tipos de exame, o que obriga o usuário a transitar entre um grande número deles e a se submeter a rituais fatigantes”. O autor complementa citando o caso dos Estados Unidos, onde, ao contrário do Brasil, esses serviços são proporcionados de forma integrada ao atendimento ambulatorial, e frequentemente um único profissional de nível médio, como um assistente médico, realiza diferentes procedimentos, como a coleta de amostras de sangue e a realização de um eletrocardiograma.

No entanto, Nogueira (1994) afirma que ao mesmo tempo em que a reintegração física e funcional dos serviços de saúde implica na aplicação de princípios organizacionais que resguardam o conforto do usuário, implica também, por outro lado, na centralização de atribuições em um único profissional, mais qualificado. Vale questionar, nesse sentido, se a reintegração de tarefas parcelares é o melhor caminho, visto que viabiliza a hierarquização das ações, no sentido taylorista, com a repartição dos atos entre os de destreza manual e os que envolvem maior capacidade de raciocínio.

Essa herança de Taylor ainda é visível na organização do trabalho em saúde, principalmente na estruturação do trabalho médico e no trabalho em enfermagem. Peduzzi (1998, p. 28), referindo-se à divisão do trabalho no setor saúde, ressalta que esta se dá de forma processual e complexa, onde

Cada trabalho que se individualiza assim o faz pela necessidade histórica de sua peculiar atuação especializada, configurando saberes e ações que lhe são próprios e singulares. Reflete, dessa maneira, não apenas o desenvolvimento científico- tecnológico, mas a própria dinâmica social das práticas de saúde que engendra subdivisões sistemáticas dos trabalhos, assim como parcelamentos das tarefas interiores a cada área de atuação, desdobrando núcleos com recortes cada vez “mais manuais” que vão sendo delegados sucessivamente.

Peduzzi (1998) ressalta ainda que este processo reproduz uma divisão técnica do trabalho, com uma valoração social desigual deste, quer sejam de médicos e demais

profissionais universitários, quer sejam dos profissionais de nível médio ou sem formação específica para atuar no setor saúde. Assim, por razões históricas, há uma distinção e elitização do profissional médico, considerado como o executor do trabalho intelectual no setor saúde, sendo dado a este trabalhador maior valor social. A este são agregados os trabalhos parcelares dos demais profissionais, repercutindo negativamente na realização do trabalho na perspectiva da integralidade, já que cada profissional isoladamente não consegue atender às necessidades de saúde dos usuários.

Nesse sentido, Matos e Pires (2006), referindo-se ao trabalho médico e em enfermagem, afirmam que o modo de operar médico, dotado de autonomia e detentor do controle do processo assistencial em si, é resistente às mudanças organizacionais no trabalho, o que ocasiona, cotidianamente, conflitos entre este e os profissionais em enfermagem, com quem disputa o projeto assistencial dos usuários. Referindo-se a este aspecto, Peduzzi (2001) afirma que os profissionais devem realizar intervenções próprias de suas respectivas áreas, e também executarem ações comuns, nas quais são integrados saberes provenientes de distintos campos como: recepção, acolhimento, grupos educativos e grupos operativos.

Podemos também afirmar que, por sua própria natureza, o trabalho em saúde não ocorre isoladamente, mas no coletivo institucional, se desenvolvendo com características do trabalho profissional e da divisão parcelar do trabalho. Assim, cada profissional isoladamente não consegue atender às necessidades de saúde dos usuários. Desta forma, é preciso criar condições para se evidenciar e processar as articulações entre as ações dos diferentes agentes, configurando um trabalho interdependente e complementar, que possibilite melhoria na qualidade de vida dos indivíduos e das coletividades.

Desta forma, considera-se a importância do reconhecimento, por cada profissional da saúde, dos limites da sua atuação, saberes peculiares e características inerentes ao seu trabalho, de modo que esse trabalho não se processe de forma individual, mas coletiva, estando permeado por diálogo, acolhimento, escuta qualificada, criação de vínculos, ou seja, por tecnologias leves, independentemente da necessidade da utilização de outras tecnologias.

Considerando-se as características referidas para o trabalho em saúde, veremos no próximo item que as que se referem à divisão do trabalho, à inserção de trabalhadoras com formação média, dentre outras características, são as que mais se acentuam nas profissões em enfermagem. Assim, procuraremos explicitar como e porque esses fatos ocorrem.