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O PROCESSO DE “DEMOCRATIZAÇÃO” DO ENSINO SUPERIOR: UM UNIVERSO DE CONTRADIÇÕES E PROJETOS ANTAGÔNICOS

CAPÍTULO 2 A CONTRARREFORMA DO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL E AS CONTRADIÇÕES DO PROCESSO DE “DEMOCRATIZAÇÃO” DO ACESSO

2.2 O PROCESSO DE “DEMOCRATIZAÇÃO” DO ENSINO SUPERIOR: UM UNIVERSO DE CONTRADIÇÕES E PROJETOS ANTAGÔNICOS

A reflexão sobre o processo de democratização no ensino superior está interligada a um universo de contradições e à presença de disputas entre projetos antagônicos de educação. Tal

47 O governo petista de Dilma Rousseff (2011-2016) se caracterizou pela manutenção do programa de expansão

do ensino superior empreendido durante o governo Lula, além da ampliação de políticas sociais compensatórias. Diante de um cenário de protestos pelo país desde 2013, a referida presidenta se reelege em 2014 sob o cenário tensionado. Em 2016, Dilma sofre um processo de impeachment e seu vice Michel Temer assume a presidência (MANCEBO, 2017). Cabe salientar que não pretendemos neste estudo adentrar na análise do governo de Dilma Rousseff, tendo em vista que nosso foco se centra na análise da política educacional efetuada durante o governo de Lula, que abarcou o recorte temporal de realização da presente pesquisa, compreendido entre 2007-2012, período que representou o processo de implantação do REUNI e o desenvolvimento da Política de Assistência Estudantil no Brasil.

48 Cabe esclarecer que o Programa Nacional de Assistência Estudantil – PNAES, instituído pela Portaria Normativa

nº 39, de 12 de dezembro de 2007, e pelo Decreto nº 7.234, de 19 de julho de 2010, constitui-se num importante marco ao garantir a obrigatoriedade da formulação e operacionalização da assistência estudantil com o objetivo de reduzir a evasão e garantir a permanência dos estudantes nas Instituições Federais de Ensino Superior e Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (BRASIL, 2010).

processo, portanto, orbita pela manifestação das lutas dos movimentos sociais e estudantil em prol da democratização do ensino superior (e defesa de uma educação gratuita e de qualidade), que vai de encontro aos interesses dos empresários e organismos internacionais em realizar um aprofundamento da mercantilização do ensino superior e ampliação do financiamento para os diferentes segmentos do setor privado.

Cabe resgatar que, em suas análises sobre a reforma universitária durante a década de 1960, Fernandes (1975b) já sinalizava a existência de projetos antagônicos de universidade. Com a presença dos interesses da burguesia nacional e internacional que defendia a manutenção e preservação do padrão dependente de ensino superior. E, por outro lado, a existência dos movimentos sociais, estudantil, dos docentes que lutavam pela possibilidade de construção de um ensino superior balizado pela universalidade e democratização do acesso. Conforme vimos na discussão do tópico 1.3 (capítulo 1). De acordo com o referido autor:

Como expectativa universal, todos os círculos sociais mencionados querem universidades que concorram para diminuir ou para eliminar a dependência cultural extrema, em relação ao exterior, em que nos achamos. A essa expectativa junta-se à exigência específica dos jovens e dos professores, educadores e intelectuais radicais, em prol da democratização interna da universidade. Para eles, reforma universitária é indissociável da destruição da monopolização do poder pelos estratos conservadores das classes altas e médias. Por isso, quando falam ou lutam pela reforma universitária não querem apenas “reorganizar” formalmente o ensino superior. Visam construir uma universidade totalmente nova – educacionalmente criadora, intelectualmente crítica e socialmente atuante, aberta ao povo e capaz de exprimir politicamente os seus anseios mais profundos (FERNANDES, 1975b, p. 64).

Este autor defende a bandeira de luta dos movimentos estudantis, sindicais e sociais em prol de uma educação universal e sinaliza como caminho para este processo o incentivo à educação criadora intelectual e à pesquisa crítica, com vistas à superação do padrão dependente de educação. Contudo, durante a Ditadura Militar o governo empreende uma contrarrevolução conservadora, com a manutenção dos interesses do capital (FERNANDES, 1975b).

O pensamento de Fernandes (1975b) traz elementos fundamentais para o processo de compreensão da história do ensino superior, o qual está envolvido pelas disputas de projetos antagônicos. Nesse sentido, o itinerário teórico sobre o processo de contrarreforma do ensino superior a partir dos anos 1990, abordado em linhas anteriores deste capítulo, indica-nos uma intensificação desse cenário de disputas, em que fortalece a concepção de educação como mercadoria. Tal tendência se mostra como uma ofensiva à luta pela educação pública, gratuita e de qualidade, pautada na democratização de seu acesso.

Esta discussão, por sua vez, nos traz inquietudes acerca da efetivação da democratização do ensino superior no Brasil, país de capitalismo dependente, constituído por uma burguesia

interna que se alia aos interesses dos organismos internacionais e reforça a concepção de um padrão dependente de educação.

Cabe salientar, por sua vez, que durante os governos Lula e Dilma Rousseff, entre os anos de 2003 e 2016, houve um processo significativo de expansão do ensino superior, aliado a incentivos estatais ao setor privado, com a criação de programas como PROUNI e o FIES. Sendo assim, pode-se perceber que a expansão ocorreu majoritariamente via setor privado (PEREIRA, 2018). Deste modo:

Assim, ainda que o acesso ao ensino superior brasileiro faça parte das bandeiras e lutas históricas de setores da classe trabalhadora que estiveram, por décadas, alijados de tal direito, a forma e o conteúdo de tal expansão – com matrículas concentradas em IES com finalidades lucrativas – vêm respondendo mais a frações da burguesia, que precisam ampliar seus mercados, do que efetivamente à democratização do conhecimento, visto o perfil dessa expansão estar associado ao acesso via compra do serviço educacional, acompanhado da fragilidade do processo formativo no quesito qualidade acadêmica (PEREIRA, 2018, p. 190).

Contudo, é fundamental tecer que neste período não houve somente retrocessos, tivemos também alguns avanços que de certa forma trouxeram impactos ao processo de democratização no ensino superior. Primeiramente, destaca-se o processo de uma expansão do ensino superior público, embora em menor proporção que no setor privado. Conforme se pode verificar nas tabelas abaixo:

TABELA 2 – NÚMERO DE INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR, POR ORGANIZAÇÃO ACADÊMICA – 2003-2006 (GOVERNO LUÍS INÁCIO LULA DA

SILVA)

TABELA 3 – NÚMERO DE INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR, POR ORGANIZAÇÃO ACADÊMICA – 2007-2010 (GOVERNO LUÍS INÁCIO LULA DA

SILVA)

Fonte: Queiroz (2014, p. 72) / Dados do INEP.

TABELA 4 – NÚMERO DE INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR, POR ORGANIZAÇÃO ACADÊMICA – 2011-2012 (GOVERNO DILMA ROUSSEFF)

Fonte: Queiroz (2014, p. 73) / Dados do INEP.

Um outro aspecto é a percepção que a expansão ocorrida mediante o REUNI, durante os governos Lula e Dilma, representou, ainda que parcialmente, uma resposta às lutas empreendidas pelos movimentos sociais e estudantis que demandaram acesso à universidade pública, Políticas de Assistência Estudantil, vagas em cursos noturnos de graduação, cotas para estudantes de escolas públicas e cotas raciais (PEREIRA, 2018).

A referida autora alerta, por sua vez, que este processo de expansão esteve acompanhado por um processo de precarização, diante dos insuficientes recursos dispendidos (PEREIRA,

2018), debate este que desenvolveremos no tópico seguinte. Diante destes elementos, é notório perceber a permanência de uma contrarreforma do ensino superior efetivada desde FHC, mas com a presença de algumas especificidades.

Com base nestes apontamentos, vale assinalar que o fenômeno da expansão do ensino superior, bem como os eixos que permeiam a democratização do acesso e permanência dos estudantes, orbitam por uma complexa dinâmica. Tal processo, por sua vez, é determinado pelo cenário neoliberal, o qual desencadeia impactos diretos para a Política de ensino superior no Brasil (PRESTES; JEZINE; SCOCUGLIA; 2012).

É notório, a nosso ver, destacar que as mudanças ocorridas nas instituições de ensino superior, em especial nas universidades públicas brasileiras, se entrelaçam por movimentos contraditórios manifestados em meio ao cenário neoliberal pelos interesses e orientações dos organismos internacionais que imbricam com os interesses políticos governamentais para aumentar a escolaridade da população e, por outro lado, as pressões sociais nacionais por mais educação e democratização do acesso ao ensino. Essa conjugação de interesses convergem o ensino superior num espaço complexo de disputas, elencadas por duas forças propulsoras – exigências do mercado e as exigências políticas e sociais em prol do direito à educação. Neste processo de disputas, o Estado se reafirma, ao aproveitar para fortalecer suas estatísticas educacionais e o seu modelo de desenvolvimento (PRESTES; JEZINE; SCOCUGLIA, 2012).

Gomes e Moraes (2009) abordam sobre o processo de expansão do ensino superior no Brasil, e destacam que este fato se reflete em um movimento de metamorfoses empreendidas ao longo do curso histórico de sua constituição. Sendo assim, estes autores questionam se esta expansão do ensino superior, manifestada com o aumento das matrículas de estudantes, significou realmente um processo de democratização do acesso ao ensino.

De acordo com Gomes (2008, p. 28-29), durante o governo FHC a expansão do ensino superior no Brasil:

[...] foi realizada mediante financiamento privado, doméstico, com a participação ativa do “consumidor de serviços educacionais”, numa clara definição da educação superior como mercadoria, o que cristaliza a marca da política liberal-conservadora deste governo, com a tentativa de apagamento, na memória discursiva da população, da ideia de educação como direito. Para o sucesso desse processo, teve papel fundamental a implementação de mecanismos de avaliação que estabeleceram a competitividade como motor de dinamização do moderno mercado da educação superior por meio da ampla divulgação que o governo e a mídia davam aos resultados do Exame Nacional de Cursos, o Provão (GOMES, 2008, p. 28-29).

A partir de 2003 com o governo Lula, o processo de expansão manteve continuidade, assumindo nova tônica. Aliado a um discurso de democratização do acesso ao ensino superior,

este governo implementa um conjunto de políticas e programas voltadas à ampliação do acesso (GOMES; MORAES, 2009), conforme foi discutido no tópico anterior. Todavia, os referidos autores argumentam que esta expansão se efetivou mediante um processo de ensino massificado, cuja discussão deve envolver diferentes fatores, tais como:

[...] a função atribuída a esse nível de ensino no contexto do sistema de massa, as condições da infra-estrutura física, os critérios de acesso, os programas de assistência e apoio aos estudantes, a relação professor/aluno, a herança cultural e escolar dos estudantes matriculados, as características sociais, culturais e econômicas da população matriculada. Todos esses fatores têm implicações para a definição da qualidade da educação em universidades e instituições não universitárias, tanto públicas como privadas. Portanto, é importante que a agenda de pesquisa na educação superior explore as relações entre sistema de massa e qualidade da educação. Considere-se, por exemplo, que parte considerável da população estudantil no Brasil se constitui de estudantes trabalhadores (ou trabalhadores estudantes?), os quais não possuem tempo físico para dedicar-se aos estudos e muitos dos quais também não adquiriram um habitus de estudo ao longo de sua trajetória escolar (GOMES; MORAES, 2009, p. 14).

A argumentação desenvolvida por estes autores traz importantes determinações para o presente estudo, cujo eixo central é a concepção de Política de Assistência Estudantil no ensino superior que se efetiva na atualidade, a qual aponta para uma inserção que não está descolada das contradições presentes no processo de democratização do ensino superior. Nesse quadro, considera-se que a universidade brasileira, que historicamente guardou as marcas do privilégio social, nos últimos anos tem estendido seu acesso aos demais segmentos sociais da classe trabalhadora. Contudo, a abertura dos canais de acesso ao ensino superior, não foi suficiente para desconstruir o processo de segmentação e diferença de classes sociais, presente no acesso de estudantes a cursos de graduação mais concorridos (PRESTES; JEZINE; SCOCUGLIA, 2012), bem como, a permanência dos estudantes nos cursos diante das dificuldades socioeconômicas vivenciadas.

Em meio ao cenário de controvérsias no qual se insere o ensino superior, sofrendo os impactos e dilemas da conjuntura social, política e econômica, é fundamental perceber também que os projetos expansionistas e de democratização do acesso enfrentam ameaças e retrocessos (PRESTES; JEZINE; SCOCUGLIA, 2012).

Neste quadro, o processo de expansão, evidenciado com o projeto REUNI, esteve acompanhado por adesões, mas também por profundas críticas concernentes “[...] ao rebaixamento da qualidade acadêmica, à precarização do trabalho docente, ao desmonte da estrutura universitária e, sobretudo ao descompasso entre as verbas prometidas e altas metas de expansão de matrículas prometidas” (PRESTES; JEZINE; SCOCUGLIA, 2012, p. 209). Sendo assim, no tópico seguinte problematizaremos sobre o REUNI e seus contradições.

2.3 O REUNI E O PROCESSO DE REESTRUTURAÇÃO DAS UNIVERSIDADES