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CAPÍTULO 1 CAMINHOS TEÓRICOS POR MEIO DAS FRONTEIRAS DA SOLIDARIEDADE

1.4. O processo da transculturação narrativa

O mundo global e contemporâneo desenvolve-se em um intenso processo de transculturação. Uma mudança se estabelece em toda a sociedade global: um novo modo de vida, novas maneiras de interação com o meio social, assim, as transformações nas condições de vida das pessoas impulsionam o surgimento de mudanças de ordem social e cultural, que modifica inclusive a identidade cultural das pessoas.

Abordaremos a transculturação e o dilema entre o universal e o regional partindo das teorias de dois dos mais representativos intelectuais latino-americanos do século XX: Antonio Candido (2002) e Ángel Rama (2001), empenhados na mesma perspectiva latino-americana a qual incorporam aos seus estudos: a experiência crítica e a reflexão sobre questões relacionadas às culturas da América Latina. Desse modo, investigaremos as práticas transculturadoras de José Luandino Vieira e João Ubaldo Ribeiro nas obras ficcionais Nosso musseque e Viva o povo brasileiro.

As primeiras linhas do ensaio intitulado Literatura e cultura de 1900 a

1945, de Candido (2002, p. 109): ―Se fosse possível estabelecer uma lei de evolução da

nossa vida espiritual, poderíamos talvez dizer que toda ela se rege pela dialética do localismo e do cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos”. O autor nos

remete às vias dialéticas do local e do universal, do erudito e do popular, da tradição e da vanguarda que transitam nas literaturas marcadas tão fortemente por seu passado colonial e sob o ápice de tensões e conflitos em busca de uma projeção identitária nacional tecida na diferença.

A dualidade entre o localismo e o cosmopolitismo é um aspecto essencial, a chave para a compreensão das obras literárias e do processo de formação cultural tanto brasileiro quanto angolano, segundo salienta Candido (2002, p.109),―a obra resulta

Paralelamente, pioneiro de estudos dessa natureza ao lado do brasileiro Antonio Candido, o crítico uruguaio Ángel Rama também aponta uma espécie de zona de conflito entre o local e o universal. Na apresentação do livro Ángel Rama: Literatura

e cultura na América Latina, Aguiar e Vasconcelos (2001), ao sintetizar a teoria de

Rama, afirmam que se pode dizer que as inovações europeias tidas como modernas, vanguardistas, entram em choque com a herança cultural local, que procura preservar os valores tradicionais, ainda que não tenham sido gerados aqui. Essa tensão é superada por meio do processo denominado transculturação.

Aguiar e Vasconcelos (2001, p.19), ao comentarem sobre a obra de Rama, registram que os pressupostos metodológicos de A Formação da Literatura Brasileira embasaram o desenvolvimento das reflexões desse crítico no caso de culturas e literaturas emergentes, tanto pela acepção do sistema literário, como por um triângulo integrado entre autores, obras e público. Sustentam, ainda, que esses sistemas se constroem sobre uma dialética entre busca da universalidade e da manifestação da particularidade, destacando:

Com base nesses conceitos, [...] Rama viu, de um e de outro lado da linha demarcatória de Tordesilhas, um ritmo comum. Esse ritmo era o da dialética entre sucessivos processos de modernização e o deslocamento ou recuperação daquilo que se considerava então o arcaico, o primevo, o local e o regional.

Ao desenvolver seu conceito de transculturação narrativa, Rama (apud Aguiar & Vasconcelos, 2004, p. 87) utilizou-se do conceito elaborado pelo sociólogo cubano Fernando Ortiz que propôs esse neologismo para designar os processos de contato entre culturas diferentes colocadas no jogo da dominação imposto, sobretudo pelo empreendimento colonial.

A partir desse conceito, Rama (apud Aguiar & Vasconcelos, 2004, p. 87) postula que o aspecto mais interessante do processo de transculturação por oposição ao da aculturação seria, simplesmente, o de absorção residual de uma cultura por outra e o da criatividade explicitada numa dialética em que o resultado exprime e, ao mesmo tempo, supera os pontos de partida. Neste sentido, Rama situa o conceito de transculturação como parte de um processo de formação nacional e de um projeto revolucionário e libertador para a América Latina.

Como processo de incorporação e transformação interculturais, que opera nos contatos de diferentes culturas a partir da colonização, a transculturação constitui-se em uma proposta de estudo estético e temático nas narrativas literárias em que se traduzem os conflitos e encontros entre a cultura popular e o erudito, entre o regionalismo e o universalismo, resultando em modificações e dando origem a algo novo, original e independente. Logo, Rama (apud Aguiar & Vasconcelos, 2001, p.265) corrobora o que compreende por transculturação:

Haveria, pois, perdas, seleções, redescobertas e incorporações. Estas quatro operações são concomitantes e se resolvem todas dentro de uma reestruturação geral do sistema cultural, que é a função criadora mais alta desenvolvida dentro de um processo transculturador. Utensílios, normas, objetos, crenças e costumes só existem em uma articulação viva e dinâmica, que é determinada pela estrutura funcional de uma cultura.

Para Rama (apud Aguiar & Vasconcelos, 2004, p.88), a transculturação narrativa seria a ―busca de soluções artísticas que não sejam contraditórias com a

herança que devem transmitir”. Assevera que ―a contribuição original dos transculturadores consiste na unificação”. E, ainda segundo o autor, o processo de

transculturação se efetua em três níveis divergentes e complementares: o linguístico, o da estruturação narrativa e o da cosmovisão.

Como explica Rama (apud Aguiar & Vasconcelos, 2004, p.89), de acordo com a perspectiva cultural que assume, o escritor transculturador decidirá o peso que a língua, a estrutura literária e a cosmovisão das culturas interiores e exteriores vão ter sobre a sua obra. Somente se estudam estes fatores para poder explicar a representação das duas culturas regionais e cosmopolitas nas obras transculturadoras.

Com base nas reflexões teóricas, ao transitar entre duas sendas, - entre o local e o universal, entre a tradição e a modernidade - José Luandino Vieira e João Ubaldo Ribeiro são escritores que irão proceder como transculturadores e criadores literários que constroem as pontes indispensáveis para resgatar as culturas regionais.

Embora os processos transculturadores sejam tão remotos quanto a existência dos contatos entre culturas – isto é, desde as grandes viagens marítimas do final do século XV, o Iluminismo, o Mercantilismo, o Nacionalismo, o Colonialismo, o Imperialismo, as guerras e revoluções, as lutas pela independência e descolonização até os atos de terrorismo e de violência atuais – os processos transculturadores são histórias

de intercâmbios, de trocas culturais, de batalhas, de sentimentos, de conquistas, de destruições e de transformações.

A transculturação é processo e produto resultante das migrações transacionais, dos movimentos das pessoas, das famílias, dos grupos, das coletividades, sempre envolvendo diferentes etnias e divergentes elementos culturais. Cria-se, desse modo, novos contextos socioculturais e novas possibilidades de produção, tanto de ordem material como de ordem espiritual. O processo de transculturação é gerador de processos de diferenciação e de reafirmação de identidades culturais. É preciso ressaltar, que a cultura se realiza no âmbito dos sujeitos históricos concretos como sujeitos coletivos que buscam e seguem concretizando a existência do mundo cultural.

As culturas sempre são processos em fronteiras, em contínuo trânsito. Essas fronteiras se produzem e se estabelecem no interior de sua própria cultura, em que o outro está internamente e não fora do seu contexto cultural. Assim, Abdala Junior (2003, p. 201) postula que ―vários sistemas culturais se interpenetram, matizando sua

natureza híbrida.”

De acordo com Abdala Junior (2003, p. 206), é na heterogeneidade da vida que se alimentam as produções culturais, contrariamente às perspectivas essencialistas, em que não há linhas nítidas de separação entre brancos e negros. Efetivamente, todos somos híbridos, não há culturas puras. As culturas são construções históricas. Somos muitos e contraditórios, dialógicos e dialéticos, num mesmo território - individual e coletivo, nacional e supranacional.

Rama (2001) destaca em seus trabalhos sobre literaturas latino-americanas, que a transculturação desvela a capacidade de determinada sociedade elaborar uma cultura original, mesmo sob circunstâncias adversas a que – porventura - tenha sido submetida, em que se percebe a existência de uma energia criadora que atua com desenvoltura , a partir da herança particular e das incidências provenientes do exterior.

Diante dessa perspectiva, a questão da transculturação - sendo de interesse global e mundial - passa a ter relevância maior e significação mais ampla, quando se discute as trocas culturais, tornando também necessária uma reflexão abrangente quanto às suas dimensões entre as nações hegemônicas e periféricas e entre fronteiras geopolíticas e culturais.

Por outro lado, ao definir a transculturação como um processo de formação cultural que atua, do ponto de vista prático segundo as variações determinadas em cada configuração histórico-cultural, Ángel Rama (2001) tratou de esboçar os elementos estilístico-ideológicos que originam o sistema literário supranacional, latinoamericano.

Toda obra literária desenvolve sua identidade nacional em constante articulação com outras literaturas nacionais e, assim, o escritor transculturador se situa em algum ponto da área regional, necessariamente. Como as sub-regiões têm suas próprias características históricas e culturais, o processo transculturador se operará de distinto modo em cada localidade cultural, conforme o grau e o tipo de influência das culturas que formam o seu substrato simbólico.

Os sistemas literários implicam o reconhecimento de sentidos e abrem novos horizontes a releituras a partir de dilemas e descobertas do sujeito-leitor e, consequentemente, de suas vivências com a globalização mundial. Paradoxalmente, os sistemas literários apresentam um mundo esquemático e universal e, ao mesmo tempo, fornecem ao seu leitor um universo particular e muito mais polissêmico, porque o leva a participar ativamente da construção das informações de sentido, forçando-o a reexaminar sua própria visão da realidade.

Notadamente, os processos histórico-político-sociais influem na criação da linguagem literária, que representa uma visão de mundo e ali própria a visão típica do escritor. Ao fruir da literatura, o sujeito-leitor viaja também no mundo do imaginário.

Nas sendas dessas viagens, o discurso literário se manifesta como um legítimo guia de viagem em várias linhas temáticas: sociedade, economia, identidade, religião, hábitos, costumes, povo, nação, num processo de transculturação. Assim, quem ler Camões evidenciará o clima predominante da época dos descobrimentos, encontros, desafios e conquistas de Portugal. Já os leitores de Jorge Amado encontrarão as imagens das terras do cacau da Bahia, sua cultura e seu povo.

Neste sentido, a transculturação, como ensina Fantini (2004, p.166), é um produtivo intercâmbio a desencadear a transitividade entre culturas diferenciadas, sem resultar em perdas importantes para nenhuma das partes; é um processo de assimilação e resistência que agencia o princípio de ―plasticidade cultural‖.

Em suma, a transculturação é sempre um processo de relações de troca em que as partes recebem algo em troca e terminam modificadas, dando espaço a uma

realidade que se configura como um fenômeno novo, original e independente. Cunha (2007, p. 400) ressalta que:

A transculturação seria, para Rama, a busca de uma interpretação crítica forjada para suprir a falta de um aparato técnico e metodológico que compreendesse e amparasse a proposta de modernização cultural, sem deixar de valorizar as peculiaridades internas das regiões do subconsciente que ele compartilhava com sua geração. No âmbito literário, haveria uma maneira harmônica e sintética – um ponto ótimo – para alcançar esse objetivo: a transculturação narrativa.