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Um breve panorama dos referenciais históricos sobre o continente africano

CAPÍTULO 1 CAMINHOS TEÓRICOS POR MEIO DAS FRONTEIRAS DA SOLIDARIEDADE

2.1. Um breve panorama dos referenciais históricos sobre o continente africano

O século XVI foi um período complexo de um intenso trânsito transculturador no mundo e considerado como um momento privilegiado da história ocidental. As caravelas trazem viajantes e suas equipes, que chegam em terras estranhas, viram e, ao mesmo tempo, projetaram olhares de estranhamento cultural, desejo e cobiça. Tal complexidade transparece em uma mistura de deslumbramentos e desencontros, surpresa e decepção, atração e repulsa. É um fenômeno dialético visto como produto e agente responsável em que indivíduos de culturas díspares se encontram e se entrecruzam, em um conjunto de forças sociais e ideológicas interagem e se movimentam, construindo visões de mundo, ―estereótipos étnicos, sociais, geográficos‖ e relações extremamente assimétricas de dominação e subordinação.

O território africano é o segundo maior entre os seis continentes, com mais de 30 milhões de quilômetros quadrados, constituído por 54 países que representam cerca de um sétimo da população mundial considerado, segundo afirma Lopes (2004, p. 34), o berço da humanidade e das civilizações negro-africanas.

Esse continente foi alvo do ―processo de roedura‖ de dominação e ocupação territorial pelas potências europeias desde o século XV. Trata-se de um protagonismo europeu de pilhagem material, destruição cultural, escravidão atlântica e de colonização exploratória da África, empreendido pelo intenso comércio negreiro por entre as margens do Atlântico, entre os séculos XVI e XIX e aprofundado com o Imperialismo entre finais do século XIX e início do XX, período calcado pela dilapidação dos recursos naturais, econômicos, humanos e culturais do périplo do continente africano.

Desse modo, o comércio transatlântico de escravos africanos implicou na migração forçada entre 10 e 11 milhões de escravos, em mais ou menos quatro séculos, de cuja gênese resultou o mito europeu sobre a inferioridade racial dos africanos, como aponta Hernandez (2005, p. 23). Os africanos colonizados têm de enfrentar uma ―dupla servidão‖: como ser humano e no mundo do trabalho, em que o negro, marcado pela pigmentação da pele, transformado em mercadoria e destinado a diversas formas

5 Para desenvolver a temática escolhida inserida na obra de VIEIRA, José Luandino. Nosso musseque.

Lisboa: Editorial Caminho, 2003, consideramos a relevância de um estudo histórico prévio que nos introduzisse nos discursos sobre a realidade do povo angolano.

compulsórias de trabalho, também é símbolo de uma essência racial imaginária, ilusoriamente inferior.

Sob perspectiva geral europeia, a África - apesar de ser o mais antigo dos continentes pela sua geologia - porque geologicamente a África é o continente mais antigo, em particular a África Subsaariana, Hegel (citado por Ki-Zerbo) argumenta que o continente é ausente de História, ou seja, ―a África não é uma parte histórica do mundo.‖ (1982, p.10) Dessa forma, os povos africanos eram vistos como uma sociedade primitiva, passiva, inculta e destituídos de uma história coletiva, segundo Hernandez (2005, p.18) ainda, identificados com designações apresentadas como inerentes às características fisiológicas baseadas em certa noção da etnia negra.

Por conseguinte, de acordo com Hernandez (2005, p.18), o termo africano ganha um significado preciso: negro, ao qual se atribui um amplo espectro de epítetos negativos tais como: ―frouxo, fleumático, indolente e incapaz, todas elas convergindo

para uma imagem de inferioridade e primitivismo.‖ Esta denotação é fruto de

preconceitos em relação ao continente e da mais vil discriminação racial que resultou em uma história de colonizações violentas, extermínios e numa tentativa de ―branqueamento‖ das suas culturas centrada na expansão do poder e na sustentação do capitalismo.

Para Hernandez (2005, p. 44), deixam à mostra, portanto, as raízes das justificativas para a arbitrariedade e a opressão presentes nas relações estabelecidas entre ocidentais e africanos desde o século XV, com o início do ―processo de roedura‖ do continente e reforçadas com o Imperialismo colonial do fim do século XIX.

Contudo, o impulso de roedura do território africano, ao aumentar o expansionismo das potências europeias no final do século XIX, por meio da partilha e da conquista da África onde são traçadas as modernas fronteiras do continente na Conferência de Berlim (1884-1885) - conforme observa Hernandez (2005, p.45) - desencadeou um processo cujas consequências se fazem sentir até os dias atuais. Resultou, também, em uma história que desprezou a resistência dos povos africanos a tão longo período da presença colonial europeia em África, como bem aponta Hernandez (2005, p.79):

Mas ignoram o protagonismo africano do início de um dos períodos mais violentos da história recente. Impõe-se portanto registrar a perspectiva

africana, uma perspectiva que entreolha a europeia, mas dela está certamente separada pelas acentuadas diferenças de suas posições político-ideológicas.

Oito volumes de História Geral da África, cada um com aproximadamente 800 páginas, organizados pela Unesco (1980-1988), valorizam não somente a historiografia do continente africano, mas também as histórias dos povos africanos como os sujeitos discursivos de sua própria História. Essas pesquisas foram coordenadas por um dos maiores ícones de Historiografia sobre a África, o historiador africano Joseph Ki-Zerbo, que apresenta uma visão apurada e sem estereótipos da história do continente africano:

A história geral da África como a de toda a humanidade, é a história de uma tomada de consciência. Nesse sentido, a história da África deve ser reescrita. E isso porque, até o presente momento, ela foi mascarada, camuflada, desfigurada, mutilada. Pela ―força das circunstâncias‖, ou seja, pela ignorância e pelo interesse. Abatido por vários séculos de opressão, esse continente presenciou gerações de viajantes, de traficantes de escravos, de exploradores, de missionários, de prepostos, de sábios de todo tipo, que acabaram por fixar sua imagem no cenário de miséria, de barbárie, de irresponsabilidade, de caos. Essa imagem foi projetada e extrapolada ao infinito ao longo do tempo, passando a justificar tanto o presente quanto o futuro. Não se trata aqui de construir uma história-revanche, que relançaria a história colonialista como um bumerangue contra os seus autores, mas de mudar a perspectiva e ressuscitar imagens ―esquecidas‖ ou perdidas. Torna- se necessário retornar à ciência, a fim de que seja possível criar, em todos, uma consciência autêntica. É preciso reconstruir o cenário verdadeiro. É tempo de modificar o discurso. (1982, p. 21-22)

Sendo o continente africano considerado como o “berço de vastos impérios‖ e conforme defende Hernandez (2005, p. 130) ―por ser um vasto e complexo mosaico de heterogeneidades‖ cada região de África apresenta uma diversidade cultural, étnica, linguística e política, resultante de um fenômeno milenar: a transculturação, processo de andanças humanas, de migrações e imigrações, de conquistas, de pilhagens humanas e materiais, de intercâmbios culturais, do colonialismo, representante de um desafio permanente que nos remete a um olhar multidisciplinar.