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3.4 S IMULAÇÃO HIDROLÓGICA

3.4.3 Processos modelados

Considerando os objetivos da presente tese, toda a discussão apresentada a seguir refere-se aos modelos chuva-vazão, determinísticos, conceituais, de simulação contínua e globais.

Os processos hidrológicos em uma bacia hidrográfica, nesse tipo de modelo, frequentemente são representados em duas fases principais: a fase bacia e a fase canal. A descrição de processos como intercepção, infiltração, armazenamento de água no solo, escoamentos em meios saturado e não-saturado, armazenamento superficial, evapotranspiração e escoamento superficial é realizada com maior ou menor particularização na fase bacia. Enquanto que o escoamento não permanente em cursos d’água, lagos e reservatórios que compõem a rede hidrográfica da bacia são modelados na fase canal.

A fase canal não é reproduzida pelos modelos globais, ainda que alguns deles separem claramente os processos de transferência do escoamento superficial na bacia e de amortecimento do hidrograma na rede de drenagem. O modelo do hidrograma unitário de Clark é um exemplo, no qual a transferência de escoamentos na bacia é feita por um hidrograma tempo-área construído a partir da definição de isócronas e o amortecimento é realizado por um reservatório linear (Clark, 1945, apud HEC, 2000). Dooge (1973) adotou uma formulação semelhante em um trabalho no qual propõe uma teoria geral para o hidrograma unitário.

A fase bacia é, comumente, dividida em água em escoamento superficial e água no solo. A denominada ‘água no solo’ indica um conjunto de processos que ocorrem sob a cobertura vegetal, à superfície do solo e no solo, na zona radicular, usualmente não saturada, e na zona saturada. Modelos do tipo chuva-vazão procuram reproduzir esses processos com o objetivo de estabelecer a separação dos aportes de precipitação entre a água que será absorvida pelo solo, por infiltração, ou ficará retida à superfície, por intercepção e armazenamento superficial, e a água destinada ao escoamento à superfície do solo, caso ele ocorra. Naghettini et al. (2001) afirmam que essa etapa da modelagem chuva-vazão é, seguramente, a mais importante e a de maior dificuldade de representação, tendo em vista, por um lado, a complexidade dos processos envolvidos e, por outro lado, a carência de dados sobre esses

processos que permitam a adequada formulação dos modelos e a calibração de seus parâmetros.

A modelagem da separação dos escoamentos é importante principalmente por dois motivos. Primeiro porque os processos físicos de escoamento superficial e subterrâneo são muito distintos. O escoamento superficial constitui-se, frequentemente, em regime turbulento e não- permanente, e é causa da rápida resposta da bacia a precipitações intensas. O escoamento subterrâneo ocorre com velocidades muito baixas, em regime laminar. A segunda razão está relacionada ao fato de que nem toda a água absorvida pelo solo escoa e surge à saída da bacia. Avaliar apropriadamente o volume de água absorvida pelo solo, a parcela retida na zona não saturada e a parcela que percola até a zona saturada, é importante para retratar, nos períodos sem chuva, a evolução do estado de umidade do solo e os processos de evapotranspiração e de escoamento de base. Na simulação da reação da bacia a novas precipitações, tanto em períodos chuvosos quanto ao final de um período sem chuva é essencial o conhecimento do estado de umidade do solo.

A teoria Hortoniana de formação de escoamentos na bacia hidrográfica influiu muito na criação dos modelos matemáticos do tipo chuva-vazão (Chow, Maidment e Mays, 1988). Na teoria Hortoniana, a formação do escoamento superficial na bacia hidrográfica é controlada pela capacidade de infiltração do solo. Se a intensidade de precipitação, i [mm/h], for inferior à capacidade de infiltração, f [mm/h], toda a precipitação é absorvida pelo solo, não ocorrendo escoamento superficial. Porém, caso i > f, então, há um excedente de precipitação (i− ), o f qual não é absorvido pelo solo e que escoa superficialmente pelas encostas da bacia hidrográfica e concentra-se em talvegues e cursos d’água. Essa concepção da gênese dos escoamentos, originária de seus estudos em regiões semi-áridas, é capaz de explicar como bacias hidrográficas cujos solos são pouco espessos e muito expostos, em razão de cobertura vegetal pouco densa, respondem rapidamente a eventos de precipitação de elevada intensidade (Naghettini et al., 2001).

Entretanto, o escoamento superficial do tipo Hortoniano é raro em bacias hidrográficas de regiões temperadas, com solos profundos e cobertura vegetal densa, como observam vários Hidrólogos com experiência em bacias com essas características fisiográficas (e.g.: Cosandey, 1990 e Dunne et al., 1975 mencionados por Nascimento, 1995). Experimentos sobre esse tema são realizados normalmente em pequenas bacias hidrográficas, empregando grande número de meios de observação, desde observação direta e registro fotográfico, visando uma simples descrição qualitativa de processos, até a implantação de trincheiras e o uso de

instrumentação sofisticada (Naghettini et al., 2001). Wood, Sivapalan e Beven (1990) apresentam um resumo das diferentes teorias mais recentes sobre a formação de escoamentos na bacia.

O escoamento superficial acontece apenas durante e logo após a ocorrência de precipitações significativas para a bacia. Esse tipo de escoamento, nos modelos conceituais, é geralmente representado por reservatórios lineares ou não lineares ou, ainda, por formulações parciais das equações de Saint-Venant (Naghettini et al., 2001).

Os motivos descritos na literatura especializada para limitações ao uso de modelos globais em grandes bacias hidrográficas são principalmente os seguintes:

homogeneidade espacial de características físicas da bacia: a variabilidade de diferentes características morfológicas, de cobertura vegetal, de uso e de tipo de solo tende a aumentar com o aumento da área da bacia;

distribuição espacial das precipitações: modelos globais tratam todos os processos espaciais como se fossem pontuais e, com isso, a precipitação deve ser representada como uma única variável de entrada, média, sobre a bacia, perdendo-se, no caso de grandes bacias, a possibilidade de adequada representação de sua distribuição espacial;

desconsideração de informações disponíveis: da mesma forma que no caso das precipitações, os modelos globais tendem a desprezar outras informações disponíveis, como dados fluviométricos provenientes de estações localizadas em afluentes ou a montante da estação que estabelece as condições de contorno de jusante e informações espaciais obtidas por novas tecnologias de observação como o radar e o satélite; e

escoamento nos cursos d’água: modelos globais privilegiam a representação da fase de escoamentos na bacia hidrográfica (fase bacia hidrográfica) e não incluem, ou simplificam muito, a fase de escoamentos em cursos d’água (fase canal); com o aumento da área de drenagem, a fase canal tende a se tornar tão importante quanto a fase bacia.

Em uma grande bacia hidrográfica a calibração de um modelo global provavelmente redundará em uma maior variação nos valores dos parâmetros, uma vez que devem incorporar tanto as fases bacia e canal, quanto a variabilidade espacial da chuva. As restrições quanto à homogeneidade espacial de características físicas da bacia alcançam tanto os modelos globais quanto os distribuídos. Segundo Naghettini et al. (2001), isso ocorre porque alguns parâmetros, muito relevantes para os processos hidrológicos, como a condutividade hidráulica, apresentam grande variabilidade espacial e temporal em escalas muito inferiores a

qualquer unidade de discretização espacial passível de ser adotada em modelos hidrológicos de uso corrente, sejam eles globais ou distribuídos.

Naghettini et al. (2001) afirma também que é difícil e um tanto arbitrário definir limites para a aplicação de modelos globais tendo por referência apenas a área de drenagem, embora seja comum encontrar restrições a seu uso em bacias com áreas de drenagem superiores a 1000 km2. Os mesmos autores recomendam uma análise detalhada de características, tais como a geomorfologia da bacia, o tipo e o uso do solo, a ocorrência de efeitos orográficos pronunciados, entre outras, bem como ensaios com o modelo que se pretende utilizar, para estabelecerem-se as limitações de emprego.

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