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2 SOCIEDADE CIVIL GLOBAL: GLOBALIZAÇÃO DA CIVILIDADE?

3 O CONTROLE DE ARMAS PEQUENAS E LEVES (1995-2010): UMA GOVERNANÇA GLOBAL CONFLITUOSA

3.2 Produção e Comércio

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Este ponto será retomado no Capítulo 4.

126 Fundada nos EUA em 1988, a ECAAR tem afiliados em 14 países e objetiva análises econômicas para

desencorajar conflitos e contribuir para a ―paz e segurança‖. Com um time acadêmico e científico de peso, que

colabora com journals de altíssimos nível, há dez ganhadores do prêmio Nobel em seu conselho curador (BROWNE, 2005, p. 52). Não à toa, a organização já se adaptou a nova linguagem internacional, mudando de

Desde o final da Guerra Fria, a indústria global de armas apresenta tendências contraditórias (SAS, 2004). Durante a década de noventa, a queda dos orçamentos de defesa dos países clientes tradicionais afetou a demanda de APL127; muitas fábricas faliram ou foram privatizadas, obedecendo à dinâmica do neoliberalismo (NAÍM, 2005, p. 53). Este declínio no mercado de APL, entretanto, tem encontrado saída na consolidação e concentração em torno das maiores companhias, que ao transferir suas tecnologias sob a forma de licença permitem que subsidiárias operem em várias partes do mundo (SAS, 2004).

Assim, ainda que no mundo atual existam pelo menos 1.249 fábricas distribuídas em pelo menos 90 países, o mercado mundial é dominado somente por 13 desses: Áustria, Brasil, China, França, Alemanha, Israel, Itália, Rússia, Espanha, Suíça, Bélgica, Reino Unido e Estados Unidos. Para o ano de 2000, calculou-se em 7 bilhões de dólares o valor da produção total de APL (incluindo munições) no mundo (SAS, 2002b).

Com base nos dados disponíveis pela IANSA e SAS, a tabela abaixo mostra os principais exportadores de SALW para o ano base de 2004:

Tabela 4: Maiores países exportadores de APL128

Países Milhões

(dólares)

Classificação produção (SAS)

1)Estados Unidos 618 Grande porte

2) Rússia 442 Grande porte

3) Itália 390 Médio porte

4) Alemanha 307 Médio porte

5) Áustria 174 Médio porte

6) Brasil129 112 Médio porte

7) China 100 Grande porte

Fontes: IANSA (2007); SAS (2001, p. 16).

Nota-se que os três países produtores de grande porte fazem parte do Conselho de Segurança da ONU - e formam, juntamente com a Alemanha, o G8. As resoluções do Conselho funcionam pelo princípio do consenso, ou seja, é necessário que todos os membros acordem com sua aprovação. Contudo, este processo de deliberação não é argumentativo e

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Segundo relatório da Anistia Internacional (AMNESTY INTERNATIONAL, 2006) este cenário começou a mudar a partir de 1999, atingindo nos anos 2005/2006 altas elevadíssimas nos orçamentos com gastos militares. O relatório afirma que o comércio de armas está mais globalizado do que nunca, injetado também por força dos

conflitos da ―guerra contra o terror‖, especialmente no Iraque, Afeganistão e Oriente Médio.

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Lembra-se que isso é apenas uma pequena fatia do comércio global de armas. O SAS de 2001 calcula que ele representa somente 5% das exportações totais de armamentos.

sim decisionístico130, ao contrário da dinâmica da SCG: ainda que todos cinco membros tenham poder de veto, basta somente um para que uma proposta seja rejeitada, e, portanto, decidida. A Assembleia Geral é um pouco mais democrática: cada país possui direito a um voto. Dentre os vários encontros ocorridos no âmbito da ONU ao longo dos anos 2000 para a regulamentação do comércio global de SALW - ponto a ser retomado mais adiante - o peso dessas regras foi determinante em alguns casos, porém não em todos. Assim, embora a Conferência de 2001 e seu processo de revisão em 2006 tenham sido marcados pelas discordâncias dos Estados Unidos no uso de suas prerrogativas de veto, a retomada do Programa de Ação (POA) em 2006, foi possível graças à votação na Assembleia Geral de 172 votos a favor e um contra - dos Estados Unidos. Em 2007, o consenso para a retomada foi finalmente obtido sem nenhum voto contrário - os EUA não compareceram nesta votação. Essa retrospectiva será apresentada mais adiante.

Em relação às importações, os Estados Unidos também lideram a primeira posição, superando inclusive o valor de exportações. Assim, em milhões de dólares e para o ano de 2004, os cinco países que mais importaram APL foram: EUA (732); Alemanha (147); Arábia Saudita (142); Egito e França (121) (IANSA, 2007).

A produção de APL está concentrada na Europa, na Federação Russa e nos Estados Unidos. São 526 companhias operando nas duas primeiras e 467 na América do Norte e Central (SAS, 2004). O SAS (2002) indica a fabricação de APL diminuiu nos últimos anos e apresenta níveis muito mais baixos se comparados à Guerra Fria. Assim, o survey conclui que embora as APL de uso militar tenda a permanecer em queda, as tendências comerciais não são claras. Estima-se, contudo, que das 8 milhões de armas produzidas anualmente, 7 milhões são destinadas ao comércio (SAS, 2010c).

Com efeito, os tipos de APL mais encontrados no mundo são principalmente revólveres, pistolas e fuzis de assalto (SAS, 2004b). Ou seja, embora os avanços tecnológicos sejam constantes, os tipos de APL mais disseminados no mundo são os mais baratos e de tecnologia ultrapassada, mas extremamente duradoura (com devida manutenção, suas funções podem permanecem por décadas). Isso não significa que sistemas de altíssima tecnologia não estejam sendo desenvolvidos ou que armas leves mais sofisticadas não cheguem às mãos de

130 Conforme entendimento de Avritzer, 2000. Daí que a deliberação argumentativa que a SCG promove não

civis, a exemplo do problema dos MANPADS131. Contudo, há pelo menos 50 anos não se observa uma tecnologia altamente revolucionária na fabricação de APL.

As principais companhias, incluindo estatais e privadas, para uso militar e destino comercial, na produção132 de APL133 são: Rheinmetall De Tec e Heckler & Kock (Alemanha/Reino Unido); Hirtenberger e Glock (Áustria); FN Herstal (Bélgica); Forjas Taurus e CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos) (Brasil); Norinco (China); Santa Barbara (Espanha); Giat Industries (França); Israel Military Industries (Israel); Beretta SpA (Itália); SAM Izhmash e KBP (Rússia); Royal Ordnance Plc (Reino Unido); Swiss Ammunition Entrerprise (Suiça); Alliant Techsystems, Primex Technologies, Smith & Wesson, Sturm, Ruger & CO, Colt‘s Manufaturing; Saco Defense; General Dynamics (Estados Unidos); Singapure Technologies (Singapura)134. A FN Herstal, a Izhmash e a Heckler & Kock são as detentoras de tecnologia mais envolvidas na produção licenciada e não licenciada de APL, enquanto a Norinco chinesa aparece como a maior receptora de tecnologia (SAS, 2002, p. 21; SAS, 2003b; 2007b).

A produção legal é o primeiro elo da cadeia no comércio global legal ou ilegal de armas. A produção ilegal e não licenciada - fábricas caseiras e oficinas clandestinas - representam aí uma porcentagem relativamente insignificante. Geralmente, são vendidas fora da legalidade ou da economia formal (SAS, 2003b). Uma curiosidade a respeito das FARC ilustra outro lado dessa situação: para auto-abastecimento o grupo manufatura, desde a década de noventa, submetralhadoras, granadas e morteiros, destinadas as suas milícias urbanas e unidades rurais (SAS, 2004, p. 24).

Depois de produzidas, as armas podem ser oficialmente compradas por governos - forças armadas, policiais, guardas nacionais - ou por consumidores autorizados - empresas privadas, empresas privadas de segurança, indivíduos (segurança privada, esporte, legítima defesa) e grupos paramilitares. A partir daí, são múltiplas as possibilidades de desvios e

131 MANPADS (

Man-portable air defence systems) é um tipo de arma leve sofisticada, basicamente, um míssel antiaéreo portátil. Pode ser disparado por somente uma pessoa para atingir aeronaves em baixas altitudes. Este tipo de armamento embora exista há quarenta anos começou a chamar atenção na literatura especializada desde 2002, quando se observou sua utilização comum por grupos não estatais fora da zona de guerra (SAS, 2004, Cap. 3).

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As SALW envolvem diferentes processos de produção que podem ser compartimentalizados, voltados para tipos de produtos distintos e procurando um nicho específico de mercado. Existem firmas que produzem sistemas completos de armamentos, outras se especializam em um determinado tipo desses. Algumas se destinam à fabricação de acessórios ou outras à reparação e manutenção. Envolvem, portanto, vários tipos de licença e autorização (SAS, 2005).

133 Na fabricação de munições, destacam-se: Sellier & Belloti (República Tcheca); Winchester Olin

(EUA/Bélgica); Nammo (Finlândia/Suécia/Noruega); Giat e FN Herstal (SAS, 2003b). A produção e o comércio de munições começaram a receber mais atenção nos últimos anos. O Brasil foi o maior exportador de projéteis para espingardas em 2007, 74 milhões de dólares (SAS, 2010, p. 25).

transferências ilegais para Estados sob embargo, grupos paramilitares não autorizados, atores não governamentais, organizações criminosas e particulares não autorizados (SAS, 2002, p. 129). As principais formas de desvio do mercado legal para o ilícito são:

• Suprimento de armas do governo para atores não estatais. O patrocínio do governo é

a fonte principal de armas para a maioria dos atores não estatais.

• Violações aos embargos de armas. Uma pesquisa preliminar mostra que pelo menos

54 países estão diretamente ou indiretamente ligados às transferências de armas pequenas, em violação aos embargos internacionais de armas.

• Violações de compromissos do destinatário final. As violações do destinatário final

incluem a retransferência de carregamentos de armas pequenas, violação ao

compromisso de não transferência, encobrimento da identidade do destinatário final verdadeiro, e falsificação ou compra de certificados falsos de destinatário final.

• O comércio formiga. O comércio formiga é o processo pelo qual as armas são

compradas legalmente por um país e depois contrabandeadas em pequenas remessas, às vezes uma de cada vez, para outro país. Esse comércio ocorre frequentemente na fronteira dos Estados Unidos com o México e na do Brasil com o Paraguai.

• Furto. Uma outra maneira das armas legais entrarem no comércio ilícito é através de

furto de arsenais privados ou do Estado, envolvendo funcionários públicos corruptos que furtam do estoque que estão sob sua responsabilidade. Essa categoria também abrange furto que é resultado de colapso do Estado, assim como sucedeu na Albânia e na Somália (SAS, 2002c, p.2).

Ainda que o comércio ilegal represente entre 10 e 20% do comércio geral de armas, ele é apontado como fonte principal nos episódios de crime, conflito civil e corrupção (SAS, 2001). A estimativa média encontrada em diversos documentos é de que o comércio legal movimente anualmente cerca de 5 bilhões de dólares, sendo 1 bilhão oriundo do mercado ilegal135 (SAS, 2002). As transferências ilegais e irresponsáveis formam dois mercados paralelos e interligados ao mercado legal: o mercado negro e o mercado cinza. No primeiro, a lei é claramente violada ao destino de indivíduos e grupos do crime organizado; no segundo, as transferências são ocultas, mas tecnicamente legais, envolvendo governos sancionados e agentes não estatais136. O mercado cinza é consideravelmente maior em termos de valor e volume em relação ao mercado negro, que por sua vez, é abastecido pelos desvios do mercado legal e ilícito. Tecnicamente, então, pode haver cinco tipos de transferências: autorizada (pelo governo de ao menos um país); irresponsável ou mercado cinza (embora possua autorização, sua legalidade é duvidosa em termos de riscos de desvio ou mau uso); ilegal ou mercado

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Esses números foram também divulgados por Rebecca Peters, diretora da IANSA, por ocasião do seminário realizado pelo NEP em Coimbra no ano de 2008. Para ela, em termos de receita, a movimentação do comércio de APL é menor do que o comércio mundial do café (!). Muitas vezes, a indústria de SALW não é tão rentável como se imagina.

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Nos anos 70 e 80, América Latina, Ásia e África foram os destinos favoritos referente às transferências cinza ilícitas em larga escala pelas duas superpotências da época (SAS, 2001).

negro (completamente desautorizadas); ilícita (compreendem tanto as transferências ilegais quanto as irresponsáveis, ou seja, o mercado cinza e negro); oculta (aquelas nas quais os

governos escondem ou omitem seu envolvimento) (SAS, 2007c). Na figura abaixo, pode-se

observar essa intersecção entre o mercado negro, cinza e legal:

Figura Única: Mercado Legal, Cinza e Negro.

Fonte: SAS, 2007.

É bastante comum no vocabulário técnico outra noção importante: a atividade de

brokering ou intermediação. O broker é o indivíduo que facilita, organiza ou atravessa

transações de armas entre fornecedores e receptores para obter lucro pessoal - para Naím (2005), o capitalista apátrida e amoral. Tal atividade só é possível com a conivência de autoridades governamentais. Os brokers podem ser utilizados inclusive pelos governos a fim de ocultar exportações e importações. Em geral, eles são indivíduos que ―não aparecem‖, tem autonomia, possuem expertise e espírito empreendedor. Quebram embargos usando vários países para burlar as leis de seu próprio. Em seu relacionamento com o cliente, podem oferecer-lhe prospecções e contratos apropriados, pesquisas de mercado, financiar linhas de crédito, conseguir autorizações legais ou ilegais e, sobretudo, organizar o transporte dos armamentos, geralmente aéreo (SAS, 2001, p. 98). Alguns brokers fizeram fortunas na Guerra Fria. Com o fim do conflito, a liberação ideológica e as condições da globalização neoliberal descritas anteriormente por Naím (2005), transformaram essa atividade altamente rentável e mais dinâmica137.

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O fenômeno da privatização da segurança inclusive no campo de guerra, ou seja, os novos ―empreiteiros militares privados‖ (NAÍM, 2005, p.55) beneficiam-se da disponibilidade desses serviços com frequência.

Viktor Bout, conhecido como o ―comerciante da morte‖, tornou-se um conhecido

broker pela habilidade em quebrar embargos e fazer fortuna. Nascido em 1967, Viktor, antigo

piloto militar russo, comprou e reformou antigos aviões de carga com o desmantelamento do bloco soviético. Sua frota chegou a possuir 60 aeronaves registradas nas brechas dos frágeis controles internacionais. Bout abastecia os mais diversos ―clientes‖: a UNITA138

em Angola, a RUF de Serra Leoa, as milícias hutus de Ruanda, o Taliban e a Al Qaeda e militares norte- americanos no Iraque. A biografia de Bout é impressionante: montou um verdadeiro império transnacional, com direito a uma rede de empresas fantasmas e offshores, que prontamente fechavam quando necessário. Possuía incontáveis identidades e transportava qualquer coisa em seus aviões (NAÍM, 2005; FARAH & BRAUN, 2007). Depois de uma verdadeira caçada ao estilo Al Capone, Bout foi preso na Tailândia em 2008 (ESTADÃO, 2008)139.

Para Naím (2005, p. 55), no atual comércio ilícito de armas os limites são suprimidos – ―entre vendedores e combatentes, corredores e fornecedores, fabricantes e subempreiteiros, e, às vezes, empresas e Estados‖. Com efeito, um dos objetivos trabalhados no capítulo anterior foi o de demonstrar como várias espécies de fronteiras estão comprometidas em tempos de Globalização. É por isso que a grande maioria de ONG‘s e think tanks que trabalham com a questão das APL insistem na ideia de controle, fiscalização e regulação, a partir da produção de informação.

Em 2004, o SAS lançou o Barômetro da Transparência que classifica e compara os países mais transparentes nas transferências e exportações de APL, tomando como a base de dados os relatórios reportados das alfândegas para o COMTRADE (United Nations

Commodity Trade Statistics Database). Através do cálculo de diversos quesitos (acesso,

clareza, divulgação de licenças, etc.), os países mais transparentes para o ano de 2006 foram os EUA e a Alemanha, enquanto os mais problemáticos foram Irã, Israel, Coreia do Norte e Bulgária (SAS 2006, p. 81). Em sua última edição (2010, p. 15), os países mais transparentes foram Suíça e Reino Unido enquanto os menos foram Irã e Coréia do Norte.

Na próxima seção serão apresentadas as principais medidas de controle internacionais que visam aumentar a transparência nas transações de APL. Por exemplo, o Código de Conduta da União Europeia estabelecido em 1998 e transformado em posição comum obrigatória a todos os países membros em 2008, ―proíbe os Estados-membros de conceder

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União Nacional pela Independência Total de Angola.

139―Existe uma arma de fogo para cada doze pessoas no planeta. A única questão é: como podemos armar as

outras onze?‖ Esta frase foi dita por Yuri Orlov, personagem interpretada pelo ator Nicolas Cage, no filme Lord

licença para fabricação de armas a países aos quais esta licença tenha sido negada por

qualquer um dos outros membros‖ (SAS, 2007d).

Por fim, uma última correlação que pode ser estabelecida entre as duas primeiras

seções do presente capítulo, com base nas conclusões do SAS (2007e): o preço das armas não

está associado às taxas de homicídio, crises econômicas ou à quantidade de população masculina jovem. Contudo, quanto mais houver fiscalização, mais altos serão seus valores. Isso é positivo na medida em que armas baratas aumentam as chances de uma guerra civil,

independente da existência de outros fatores de risco. É justamente por isso que o grande

lobby da indústria armamentista participa ativamente nas negociações da ONU. Business as usual140.