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1 COM QUANTAS ARMAS SE FAZ UMA SOCIEDADE CIVIL 9 ?

1.2 Teorias sobre a Sociedade Civil (I): sobre Civilidade e Violência

Civilidade. [Do lat. Civile.] S. f. 1. Conjunto de formalidades observadas entre si

pelos cidadãos em sinal de respeito mútuo e consideração. 2. Polidez, urbanidade, delicadeza, cortesia (HOLLANDA, [1975], p. 334).

Um comentário inicial acerca do debate proposto requer o reconhecimento das matrizes eurocêntricas nas quais as genealogias conceituais tanto de Estado quanto de sociedade civil estão inscritas. Ainda que a América Latina e o Brasil estejam cada vez mais buscando uma identidade teórica política e social própria na modernidade, a referência a autores e filósofos que tiveram como ponto de partida os contextos europeus para pensar ambos os conceitos, permanecem fundamentais por se tratarem de leituras primeiras e clássicas. Obviamente, a trajetória e a evolução dessas categorias no Brasil e em Portugal, obedeceram a dinâmicas próprias, inclusive tendo sido as do primeiro fortemente influenciadas pelas do segundo. O próprio processo de colonização em que ambos os países desigualmente participaram, formam um elo de incursão, embora diferenciado, na história geral europeia.

A Europa Ocidental foi a ―parteira‖ do conceito de sociedade civil e com ele um reflexo de realidade estranho à América Latina. Ainda que os padrões de colonização empenhados por espanhóis e portugueses tenham sido muito diferentes, o continente não obedeceu à mesma dinâmica de diferenciação nas esferas públicas e privadas - em um sentido estatal e econômico, respectivamente - observada no velho mundo. Se a desautorização para o pensamento da sociedade civil no continente antes do século XX ocorre em função da inexistência de uma sociedade entre iguais e de uma justiça pública (AVRITZER, 2004)18, bem como do processo tardio de diferenciação, cumpre responder a esta particularidade pelo próprio processo de colonização19. Uma breve revisita aos clássicos auxiliará na observação das continuidades e rupturas da ideia de ―civilidade‖ embutida no conceito moderno de sociedade civil, hoje amplamente globalizado (KEANE, 2001).

As teorizações sobre a origem do Estado e da sociedade (civil) encontraram seus primeiros esforços nas doutrinas filosóficas jusnaturalistas. Hoje, sabe-se extemporaneamente que a ideia de contrato social foi um eufemismo que eliminou o problema da desigualdade do poder e da força entre homens e mulheres em nome de um suposto consenso pela segurança da sobrevivência. Thomas Hobbes, seu pai fundador, estava muito mais preocupado com a justificação filosófica da necessidade de um poder absoluto, soberano, legítimo e laico (AVRITZER, 2007) do que com a assimetria que dele resultava, tomada crítica e posteriormente como ruptura reflexiva por Rousseau. Também, foi por essa mesma

18 Este argumento é depois melhor problematizado em Avritzer (2009).

19 O contexto latino-americano também não permite uma generalização única acerca das estratégias de state-

building pelas elites políticas e econômicas nacionais. Especificamente para o caso brasileiro, as análises

estadocêntricas parecem ainda melhor explicar a primazia do Estado sobre a sociedade civil (Raymundo Faoro; José Murilo de Carvalho), ao contrário da dinâmica observada, por exemplo, na Argentina.

preocupação que Hobbes pode ser considerado um primeiro autor de entendimento para a questão da representação (PITKIN, 1979).

Para Hobbes, a condição humana fora da sociedade civil era a barbárie; o medo recíproco do estado de guerra latente entre os homens pelos homens fundava a consciência que os inclinava a ingressar na sociedade civil e rejeitar a permanência na sociedade natural. No caso, a societas civilis era o próprio Estado Civil que governaria igualmente pelas leis civis: ―fora dele (do governo civil), assistimos ao domínio das paixões, da guerra, do medo, da miséria, da imundície, da solidão, da barbárie, da ignorância, da crueldade; nele, o domínio da razão, da paz, da segurança, das riquezas, da decência, da sociedade, da elegância, das ciências e da benevolência‖ (HOBBES, 1992, 178). Se ―o começo da sociedade civil provém do medo recíproco‖ (Ibid., p. 28), tem-se que ―o estado dos homens fora da sociedade civil é um simples estado de guerra‖ (Ibid., p. 38). Antes de se constituir em sociedades civis, a humanidade estava dispersa em famílias (Ibid., 231). À semelhança de Aristóteles, equiparava a sociedade civil à cidade20. O viver em sociedade civil para Hobbes implicava a aceitação do pacto e da fé. Com efeito, no Estado Absolutista, iniciou-se uma reorganização dos relacionamentos humanos em relação à mudança nas maneiras, na personalidade do homem e nos seus sentimentos, cada vez mais intolerante ao que não fosse civilizado (ELIAS, 1993, p. 21).

Porém, a noção de sociedade civil ganhou a denotação ―civilizada‖ em Locke (BOBBIO, b, 2000). Fazendo uma crítica alusiva à Hobbes, Locke diferenciou o estado de natureza ao de guerra - essa por vezes necessária mesmo em um governo civil. Em Locke, tem-se a sociedade civil como sinônimo de sociedade política: ―sempre que, portanto, qualquer número de homens se reúne em uma sociedade que cada um abandone o próprio poder executivo da lei de natureza, passando-o ao público, nesse caso e somente nele haverá uma sociedade civil ou política‖ (LOCKE, 1978, 67). A renúncia à liberdade natural e o revestimento dos laços da sociedade civil ―consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior

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―A união assim feita diz-se uma cidade, ou uma sociedade civil, ou ainda uma pessoa civil: pois, quando de

todos os homens há uma só vontade, esta deve ser considerada como uma pessoa, e pela palavra uma deve ser conhecida e distinguir-se de todos os particulares, por ter ela seus próprios direitos e propriedades. Por isso, nenhum cidadão isolado, nem todos eles reunidos (se excetuarmos aquele cuja vontade aparece pela vontade de todos), deve ser considerado como sendo a cidade. Uma cidade, portanto, assim como a definimos, é uma pessoa cuja vontade, pelo pacto de muitos homens, há de ser recebida como sendo a vontade de todos eles; de modo que ela possa utilizar todo o poder e as faculdades de cada pessoa particular, para a preservação da paz e a defesa

proteção conta quem quer que não faça parte dela‖ (Ibid., p. 71). Embora Locke tenha feito importantes rupturas com o pensamento de Hobbes - especialmente a ideia sobre a liberdade dos homens para escolherem seus governantes e formas de governo - permanecia entre eles a incompatibilidade de um estado de natureza abstrato frente à segurança e à paz concretas. As considerações de Locke sobre a América anarquizada o levaram a equivalência do Estado de natureza ao Estado selvagem. Os povos primitivos eram por suposto ―incivis‖, na medida em que o político se tornava sinônimo de ―civilizado‖; a distinção e a superioridade dos ocidentais (ELIAS, 1993, p. 213), deveram-se justamente à proeza de sua autocivilização.

As palavras correlatas ―civilidade‖ e ―civilização‖ ganharam força no século XVIII. Ultrapassando o sentido da polidez, cortesia e refinamento, a conversão do primitivo às boas maneiras fundamentou o próprio processo civilizatório: coube às civilizações civilizar. A civilização foi ―um projeto encarregado de resolver o problema permanente de liberar, diluir e sublimar a violência; a incivilidade era o inimigo permanente da sociedade civil‖ (KEANE, 2001, p. 138). As nações civilizadas tinham avançado razoavelmente na eliminação de sua própria violência, como argumentou Ferguson; mas, paradoxalmente, a necessidade de civilizar foi extremamente incivilizada para a subjugação dos povos.

A ausência de um devido apreço pela não violência, somada a outras justificativas e interesses, hierarquizou as sociedades consoante seu estágio no progresso de outro projeto, racional e iluminista. As ideias de estágios graduais e hierarquias societais tiveram na sociedade europeia um exemplo a ser perseguido - os ingleses são o tradicional exemplo de civilidade associada à nobreza e a arrogância, segundo Keane (2001). A civilização foi a expressão encontrada para indicar um ponto ótimo de regulação da convivência social, onde as boas maneiras e costumes aliaram-se à sublimação da violência para conformar um estágio último e ideal. A própria conformação do Estado ausente no Novo Mundo impunha às pessoas um maior ou menor grau de autocontrole, na medida em que ―a monopolização da violência física, a concentração de armas e homens armados sob uma única autoridade, torna mais ou menos calculável o seu emprego e torna os homens desarmados, nos espaços sociais pacificados, a controlarem sua própria violência mediante precaução ou reflexão‖ (ELIAS, 1993, p. 201). A sociedade civil, portanto, seria a síntese da domesticação dos instintos inerentemente selvagens do ser humano, catalisada pelo monopólio estatal da violência.

Em Rousseau esta equivalência não foi observada, já que a sua sociedade civil é a sociedade civilizada que não necessariamente é a sociedade política. Através do contrato social essa recuperaria o estado de natureza e superaria a própria sociedade civil (BOBBIO, B, 2004). Nesta forma de contrato, a liberdade natural é substituída pela liberdade civil,

limitada pela vontade geral. A saída do estado de natureza institui na conduta do homem o instinto pela justiça e moralidade em suas ações (ROUSSEAU, 1987), embora os primeiros deveres de civilidade fossem observados ―até mesmo entre os selvagens‖ (Ibid., p. 62). É de Rousseau a famosa frase: ―o primeiro que, cercando um terreno, se lembrou de dizer: Isto é

meu e encontrou pessoas suficientemente simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador

da sociedade civil‖ (ROUSSEAU, 2007, p. 57). A origem da desigualdade entre os homens estava então na instituição da propriedade privada e da própria sociedade civil.

Rousseau rompeu com seus antecessores contratualistas por considerar a bondade e a justiça naturais ao homem, e por transformar a idéia de desigualdade política em um elemento força para a busca da autodeterminação do povo, ideia assumida pelos revolucionários franceses na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. O povo-nação conclamado a pegar em armas - ―às armas, cidadãos!‖ - exercia o então ―direito de resistência à opressão‖, noção também apreciada - se bem que com diferentes ímpetos - por John Locke e Thomas Jefferson. Mas, não se pode esquecer que Rousseau, assim como Ferguson, estabeleceu ―estranhas‖ relações entre o ―clima‖ e o florescimento da liberdade, civilização e progresso (AVRITZER, 2009). Ou seja, a preocupação sobre a origem da desigualdade entre os homens não era estendida a outras geografias. Os povos que não compartilhavam de um código europeu em vias de civilização - especialmente os povos indígenas e negros - foram segregados a um estágio inferior da história europeia=universal, e, portanto, a eles não se devia muita preocupação.

Atribui-se a Hegel o modelo dual de distinção entre a sociedade civil e o Estado, ambos à parte também da família. Hegel rompeu, portanto, com o jusnaturalismo anterior fundado no contrato: o estado fundamenta a sociedade e os indivíduos não são anteriores a ele. Lançou as primeiras bases modernas para o entendimento da sociedade civil em sua mediação e interpenetração com o Estado (COHEN e ARATO, 2001). Ela é diferente da família, que é uma sociedade natural, e diferente do Estado, sua fase posterior acrescida de organicidade. As relações econômicas antagônicas, dissolvidas em um sistema de necessidades, estão localizadas em um nível da sociedade civil. Caberia ao Estado, sintetizá- las, sem ainda nesse momento nenhum compromisso com o caráter democrático dessa regulação. Em Marx, a sociedade civil estava associada com as relações de produção, e, portanto, com a infra-estrutura. A sociedade civil era, em essência, a própria sociedade burguesa que se procurava transformar; era ―o teatro da história‖ (KALDOR, 2001, p. 8).

Os escritos de Hegel, juntamente com os de Thomas Paine e Tocqueville, caracterizaram os anos situados entre 1750 e 1850 como o período de nascimento e maturação

da ideia de sociedade civil na sua distinção com o Estado (KEANE, 2001). Contribuíram também os expoentes do Iluminismo Escocês, Adam Smith e Adam Ferguson. Para este último (apud. KEANE, 2001, 139), ―a caminhada para a civilização é vista como uma lenta, mas firme eliminação da violência dos assuntos humanos‖. O pressuposto evolutivo está explicitado em outros filósofos escoceses do século XVIII, que tratavam a sociedade civil como antítese a violência. A civilidade era uma convenção artificial para conter a violência natural; a sociabilidade nas relações econômicas e íntimas (KEANE, 2001).

O termo ―sociedade civil‖ teve uma conotação positiva durante o processo Iluminista (KOCKA, 2004, p. 66). Mas, a teoria que parte do século XVIII, de mãos dadas com as luzes da civilização, obscurece a contradição íntima que preside o funcionamento da sociedade civil, qual seja, ―não apenas a violência é a antítese da sociedade civil, mas também todas as formas conhecidas de sociedade civil tendem a produzir uma antítese violenta, evitando assim que ela se torne um refúgio de harmonia não violenta‖ (KEANE, 2001, 164). É paradoxal o fato de que a fundação das sociedades civis seja manchada de ―sangue‖ (Idem., 2003, p. 30 ).

Nos séculos XVIII e XIX ―a incivilidade era o fantasma que assolava permanentemente a sociedade civil‖ (KEANE, 2001, p.138). O termo civilização passou a ser então antônimo de natureza, barbárie, selvageria, rudeza, presente nas nações primitivas ou nos comportamentos destoantes. À época, a Europa experimentava pelo menos desde o século XVI uma mudança radical nos padrões de conduta de suas próprias classes abastadas. São alguns deles: a eliminação dos excessos da autopunição e da auto-indulgência, a repressão do comportamento espontâneo, o controle das funções e impulsos corporais em público. A satisfação com espetáculos punitivos, enforcamentos, suplícios públicos, mutilações de opositores de guerras, tortura de animais passaram a ser atos incorretos e repulsivos: ―...a despeito de algumas grandes fogueiras, a melancólica festa da punição vai se extinguindo (FOUCAULT, 1987, p. 14). Uma progressiva racionalização responsável pela produção da ―vergonha‖, ―repugnância‖ ou ―embaraço‖ diante atos cruéis ou violentos foi componente assim do processo civilizatório (ELIAS, 1993, p. 242).

Vale reiterar que esse esteve diretamente relacionado com a formação e o crescimento dos Estados modernos, na medida em que o desarmamento de grupos em competição pelo poder, a pacificação interna dos territórios, o monopólio dos meios da violência e a regulação da justiça pública, anulava o medo da morte abrupta e violenta descrita por Hobbes. A violência estatal passa a ser legítima a partir do momento em que é preferível à própria violência civil.

Interessante é a interpretação de Elias sobre a não intencionalidade do processo civilizador como um todo. A mudança na conduta e nos sentimentos humanos rumo a uma direção muito específica, diga-se racional e intolerante ao considerado injusto, tratou-se de uma ação não planejada por pessoas isoladas de forma consciente ou deliberada. Em outras palavras, a racionalização não foi um planejamento calculado em longo prazo, o que torna sua argumentação não teleológica. Para o autor, ―a coisa aconteceu, de maneira geral, sem planejamento algum, mas nem por isso sem um tipo específico de ordem‖ (ELIAS, 1993, p. 193), o que não permite ao mesmo tempo inferir que tais mudanças foram caóticas e desestruturadas. E se, de fato, ―planos e ações, impulsos emocionais e racionais de pessoas isoladas constantemente se entrelaçam de modo amistoso ou hostil‖, tem-se uma interdependência de pessoas de onde emana ―uma ordem sui generis, mais forte do que a vontade e a razão das pessoas isoladas que a compõem‖ (Ibid. 194). Para ele, ―a civilização não é ―razoável‖, nem ―racional‖, como também não é ―irracional‖‖ (Ibid., p. 195, grifos do autor). O processo civilizador é um processo social, individual e provisório.

Como prova de que a transformação rumo ao comportamento civilizado foi no mínimo incompleta ou inacabada, Keane (2001, 158) afirma que ao longo do século XX a ―crônica persistência da violência‖ foi observada em todas as sociedades civis existentes e que as mesmas se defrontam com uma permanente possibilidade de regressão para sociedades incivis: ―todas as formas conhecidas da sociedade civil são afetadas por fontes endógenas de incivilidade, tanto mais que se pode propor a tese empírico-analítica de que a anticivilidade é uma característica crônica das sociedades civis (...)‖. Posto isso, uma sociedade civil nunca pode ser para o autor plenamente ―civilizada‖. Para ele, a violência atinge a sociedade civil e os cidadãos, sendo consumida com prazer no entretenimento dos meios de comunicação, cinema, literatura, video-games. Sobre a profusão dos armamentos na esfera civil, Keane lança um estranho comentário: ―as pretensões histéricas acerca da necessidade de controle de armas devem ser temperadas por uma reflexão acerca das múltiplas raízes e formas de violência e da forma como o recurso as armas é sintomático de uma tendência mais profunda das sociedades civis para enervarem e desorientarem seus membros‖(Ibid., p.172).

Toda a argumentação de Keane só é possível em função da frouxidão do seu conceito de sociedade civil. Ao longo do seu texto, com frequência a sociedade civil é utilizada como sinônimo de sociedade - uma tradição anglosaxônica que Alexander identifica (1998; 2006). Incorre no mesmo erro que o faz criticar a amplidão do conceito de violência em Galtung21. A

21 Galtung (1996, 2) pensa em três tipos de violência: direta (ato intencional de agressão), estrutural/indireta

sociedade civil ―keaniana‖ é uma categoria ideal típica nos moldes weberianos ―que descreve e considera, simultaneamente, um conjunto complexo e dinâmico de instituições não- governamentais legalmente protegidas que tendem a ser não-violentas, auto-organizadas, auto-reflexivas e em permanente tensão umas com as outras e com as instituições estatais que enquadram, constringem e facilitam suas atividades‖ (Ibid. p. 15). Ou seja, em sua lógica, tudo que não se trata de violência estatal cai para a sociedade civil.

Keane é um pensador erudito, excêntrico e provocativo. As situações que toma historicamente como exemplo de incivilidade da sociedade civil inclui desde assassinatos, estupros, linchamentos, sadismo, torturas coletivas e prazer com a violência. Se a crítica à normatividade que só enxerga as sociedades civis idealmente existentes em detrimento das realmente existentes – um jargão utilizado pelos amigos e inimigos da sociedade civil22 – é lugar comum, o extremo oposto soa como um exagero forçado. Nesta denúncia, Keane não segue nenhum rigor teórico-analítico preferindo um estilo de escrita chocante.

Segundo o autor, a raiz da tendência para a violência da sociedade civil seria sua abertura característica, especialmente pelo fato reconhecido de que elas permitem aos grupos organizarem-se para a busca da riqueza e do poder (Ibid., p. 170). Mais uma vez, o conceito de sociedade civil de Keane aparece como sinônimo de uma sociedade em geral que vive sob o jugo das leis também em geral. Descarta, portanto, uma das características modernas da sociedade civil mais compartilhada, isto é, sua não pretensão pela tomada do poder (DRYZEK, 2000; AVRITZER & COSTA, 2004; PINTO, 2007), ainda que existam, obviamente, relações de poder dentro da sociedade civil (CHANDHOKE, 2003). Em geral, a sociedade civil recusa ―as responsabilidades de governar a comunidade política como um todo‖ (SCHIMITTER apud WITHEHEAD, p. 19). Se do contrário, a tarefa sempre será frustrada: o limite da sociedade civil é a ação que não se universaliza (PINTO, 2005); uma solução privada sempre permanecerá privada como diz o próprio autor (KEANE, 2001), e isto é exemplar em termos da atual tendência da privatização da segurança. Parece bastante aceito pela literatura que a sociedade civil ao não possuir essa pretensão, não reivindica o monopólio do uso da força. Quando sim, seus atores deixam de pertencer ao campo.

Mas, Keane insiste que a sombra da violência que pode se esconder atrás da sociedade civil é endêmica, endógena à esfera: a violência não é deixada para trás quando as sociedades transitam da incivilidade para a civilidade ou da pré-modernidade para a modernidade

22A expressão coloquial ―amigos e inimigos‖ da sociedade civil é tomada de empréstimo a Keane (2001), -

provavelmente em interlocução com Gellner (1994)-, que ao longo de sua obra se refere a esses termos para considerar autores pró e antisociedade civil, respectivamente, em relação às suas potencialidades democráticas, pacificadoras e utópicas.

(CHANDHOKE 2003, interpretando Keane). Aqui fica claro que o autor se refere a populações inteiras, fazendo uso conotativo da sociedade civil em sua acepção clássica. Assim, parece óbvio que a violência é endêmica à sociedade, que não é exclusiva a nenhuma forma de organização humana e que está de alguma forma em todos os seres humanos. Se o autor utilizasse seu próprio conceito de forma mais depurada, encontraria as organizações da sociedade civil moderna que nessa época não existiam.

Sabe-se que na complexidade da modernidade, os atores possuem múltiplas identidades; podem ser opressores e oprimidos ao mesmo tempo; pertencem e atuam de forma concomitante em vários espaços. Provavelmente, a conduta coerente dos membros da sociedade civil é uma variável importante23; contudo, o que definirá a posição dos grupos são suas bandeiras públicas. Em relação a isso, Keane aceita que a sociedade civil tem a capacidade e de fato engrossa uma ―política de civilização‖ que denuncia massacres, genocídios, torturas e violações aos Direitos Humanos: ―a violência é, assim, prima facie incompatível com as regras da sociedade civil, de padrões complexos e diferenciados de solidariedade, liberdade e igualdade dos cidadãos (...)‖ (Ibid., 162), o que vai contra qualquer interferência corporal que resulte em danos físicos ou psíquicos. O que ele chama de ―esferas públicas de controvérsia‖ teria o dever e a tarefa de controlar atos violentos de forma não