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2.1 OS SUJEITOS DA PESQUISA: QUEM SÃO?

2.1.4 Professora “P4”

[…] eu lembro que eu gostava de ter cursado Contabilidade, mas a minha mãe disse que eu ia ser professora e naquela época a gente obedecia. O que os pais diziam a gente seguia fielmente. Não me arrependo de ter cursado Magistério.

(Professora “P1”, agosto de 2010).

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A entrevista com o professor “P3” foi feita em sua residência, em diferentes momentos, totalizando quatro horas.

A professora “P4”, nasceu em Monte Belo do Sul,65 em 1945. O referido ano

foi marcado por acontecimentos mundiais importantes, como o final da 2ª Guerra Mundial, o início da Guerra Fria, a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e, especificamente no Brasil, o término do Estado Novo, com a deposição de Getúlio Vargas. Na literatura brasileira destacava-se Carlos Drummond de Andrade.66 Em 1945 este autor escreveu o livro “A rosa do povo”, expressando em seus versos o sentimento com relação ao momento. “[...] Em verdade temos medo. Nascemos escuro. As existências são poucas: Carteiro, ditador, soldado. Nosso destino, incompleto.”67

No ano de 1950, juntamente com seus familiares, “P4” veio residir na cidade de Bento Gonçalves. Então, aos 5 anos de idade, começou a frequentar o Jardim da Infância, na Escola Normal Nossa Senhora Medianeira.68 Ao presentificar esse tempo passado, evidenciou, com voz embargada, o quanto o mesmo ainda se faz presente em seu ser.

Eu lembro que eu voltava da aula dentro da sarjeta, com a água correndo limpa, limpa, limpa. Com os pés dentro da sarjeta, oh! maravilha, tem coisa mais gostosa do que apanhar chuva bem embaixo... [...]. Eu ainda lembro aquela água correndo, sabe, era bem funda a sarjeta, bem funda, ficava boa parte da perna dentro da água. Oh! coisa boa!.

A professora narrou suas memórias recheando-as de sensações, emoções, sentimentos, pois, como salienta Halbwachs, “[...] nossa memória não se apóia na história aprendida, mas na história vivida” (2006, p. 78-79).

65 Monte Belo do Sul é um município emancipado pela Lei 9.564 de 20 de março de 1992, parte integrante da Colônia Dona Isabel, criada a 24 de maio de 1870. Encontra-se a 618 m. acima do nível do mar e conta com uma área de 70 km². Tem por limites: ao Norte: Cotiporã; ao Sul e Leste: Bento Gonçalves; ao Oeste: Santa Tereza. Tem uma população de 2.872 habitantes. A comunidade foi colonizada, a partir de 1877, por imigrantes italianos provenientes de Udine, Mantova, Cremona, Veneza, Vicenza, Treviso, Bérgamo, Modena, Beluno. A localidade foi 100% colonizada por imigrantes italianos num total de 416 famílias. PREFEITURA Municipal de Monte Belo do Sul Disponível em: <http://www.montebelodosul.rs.gov.br/historia>. Acesso em: 13 set. 2010.

66 Nasceu em 21/10/1902, em Itabira (MG). Faleceu em 17/08/1987. RELEITURAS: resumo biográfico e bibliográfico.Disponível em: <http://www.releituras.com/drummond_bio.asp>. Acesso em: 9 jul. 2010.

67 ANDRADE, Carlos Drummond de. O Medo. In: _______. A rosa do povo. 21. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 25-28.

68 Conforme já mencionado, atualmente denomina-se Colégio Scalabriniano Nossa Senhora Medianeira.

Em seu relato “P4” destacou que os cursos Primário, Ginasial e Normal foram realizados na mesma instituição de ensino onde cursou o Jardim da Infância, o “Medianeira”. Quando a convidei para falar um pouco sobre a sua trajetória escolar, em sua autoanálise afirmou, de modo suave e pausado, mas com convicção:

Eu era quietinha, não perturbava assim de chamar a atenção, de fazer fofoca, agora conversava, conversava! Minha mãe era chamada uma semana sim, a outra também, e a outra também, de tanto que eu falava. Eu falava bastante. Lembro numa ocasião – acho que era no Magistério – o Padre Mânica era meu professor de História, que eu gosto muito, admiro muito ele, e ele me disse: “S. [sobrenome], fora da sala”. Lá me fui eu; aposto que eu nunca mais conversei na aula dele. E até hoje eu ainda o admiro. Não é porque ele fez isso que eu vou deixar de gostar dele. Era eu que estava errada mesmo, era eu que conversava, não era ele.

A fala de “P4” me remete a uma reflexão sobre a relação entre professor e aluno. Quando a professora afirmou eu era quietinha, não perturbava assim de

chamar a atenção, levou-me a pensar que este era o perfil de aluno desejado em

sua escola, durante os anos de 1950 a 1960, um aluno passivo e receptor de informações. Também ficou implícita a ideia de que a concepção do “bom aluno” estava ligada à atitude de “ser um aluno quieto”. Ao sinalizar era eu que estava

errada mesmo, permitiu-me pensar no conceito proposto por Foucault, quando, em

“Vigiar e punir” (1988, p. 153), discorre sobre o poder disciplinar, afirmando que “[...] em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior adestrar; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor”. O silêncio, a culpa e a obediência são reflexos dessa relação estabelecida entre “P4” e seu professor.

Sua transição do Primário para o Ginásio aconteceu por meio de uma prova, o exame de admissão. De acordo com a professora “P4”, ela se recorda intensamente desse fato. Como é de descendência italiana e em sua casa falava-se muito o dialeto italiano, na realização da redação teve dificuldade para nomear na língua portuguesa a figura apresentada.

[…] a gente tinha que fazer uma redação sobre a gravura, e eu queria falar sobre o ancinho, só que pra mim era restel, em italiano é restel, eu não sabia, aí eu perguntei para a dona “V” [ela estava na banca] como era em português a tradução do tal do restel, e ela me disse ancinho, eu nunca mais vou esquecer, eu só sabia em italiano. [...] Eu lembro que tinha Português, tinha Matemática no exame, mas eu só me lembro dessa redação, e da palavra, aí, sim, eu não esqueci porque eu não sabia.

Como afirma Halbwachs (2006, p. 31), “[...] em todas as circunstâncias, não posso dizer que estivesse sozinho, que estivesse refletindo sozinho, pois em pensamento eu me situava ou neste ou naquele grupo”. O relato da professora contextualiza a vivência de muitos dos descendentes de italianos de nossa região, onde as conversas informais do dia a dia ainda acontecem no dialeto italiano. Dessa forma, quando chegam à escola, algumas crianças se deparam com situações iguais às descritas por “P4”, ou seja, desconhecem determinadas palavras na língua portuguesa, precisando, para se sentirem parte do grupo, apropriar-se do que é comum a todos.

A imagem que segue retrata um momento vivenciado por “P4”, juntamente com suas colegas do Curso Ginasial, no ano de 1961.

Figura 5: “Ginasianas”, 1961

Fonte: Arquivo Histórico do Colégio Scalabriniano Nossa Senhora Medianeira.

As alunas evidenciam no uso do uniforme e na posição das mãos, a maioria para trás, uma disciplinarização com relação à postura a ser assumida, enquanto alunas do Colégio Medianeira. Apesar do olhar sério das Irmãs, o sorriso presente

nos rostos das jovens sinaliza alegria em pertencer a esse grupo de estudantes do Curso Ginasial. Nesse sentido, concordo com Kossoy quando, ao discorrer sobre o tema da fotografia, pontua que ela “[...] dá a noção precisa do microespaço e tempo representado, estimulando a mente à lembrança, à reconstituição, à imaginação” (KOSSOY, 1989, p. 101).

Na sequência de sua narrativa, “P4” destacou que o ingresso no Curso Normal não foi uma escolha sua, minha mãe é quem decidiu que eu tinha que ser

professora e eu segui. Naquela época a gente obedecia, não tinha muito que dizer, não. De acordo com o relato da professora, após frequentar os três anos do

Magistério (1962 a 1964), realizou estágio obrigatório, sendo a sua turma a primeira a cumprir essa exigência legal. Em julho de 1965 “P4” concluiu o estágio. Quando perguntei a ela se seu sonho de criança de cursar Contabilidade ainda permeava seus pensamentos, muito decidida me respondeu: Não, não, nunca me floresceu

aquela coisa que surgisse uma oportunidade ou vontade, um desejo; eu gosto do que faço, até hoje eu faço e ainda gosto.

Ao mencionar o desfile de 7 de setembro, a professora “P4” confessou que, devido à importância que esta comemoração cívica tinha para a população de Bento Gonçalves, neste dia o uniforme escolar recebia cuidados muito especiais, ou seja, “P4” quase queimava a saia para as pregas ficarem impecavelmente marcadas, afinal, a gente era a Pátria [...], os alunos defendiam a escola, então faziam o

possível para que a escola se saísse bem, fosse melhor que os outros. Considero

importante ressaltar que este dizer representa o momento político vivenciado na época, no qual a meta era difundir o nacionalismo, de forma a criar uma nação homogênea, permeada pela disciplina e pelo respeito aos valores nacionais. Nas palavras de Germano (1994, p. 135), “[...] torna-se claro que a ditadura procurou combinar as funções de domínio (força) com as de direção política e ideológica”.

Em um de seus depoimentos, a professora me relatou que, em julho de 2010, as normalistas concluintes do ano de 1964 voltaram a se encontrar, para comemorar 45 anos de conclusão do Curso Normal, momento considerado muito especial pelas participantes: [...] fiquei encantada em rever minhas colegas de

Magistério.

A graduação em História e as especializações em História da América Latina e em Desenvolvimento do Turismo aconteceram na Universidade de Caxias do Sul, na cidade do mesmo nome. Durante nossa conversa “P4” confessou seu desejo de

cursar Mestrado em História, porém, por questões de saúde, não conseguiu realizá- lo até o momento.

A maior parte de sua atuação docente aconteceu na cidade de Bento Gonçalves, lecionando para alunos do Ensino Primário, Fundamental e Médio, em escolas particulares e estaduais. Nos dias atuais “P4” ainda atua como professora do Curso Normal da rede estadual do município de Bento Gonçalves, pois, segundo ela, eu gosto de lecionar, eu não gosto de ficar sem fazer nada!.69