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2.1 OS SUJEITOS DA PESQUISA: QUEM SÃO?

2.1.1 Professora “P1”

[...] De noite, a gente ia para o cinema e, depois, para o café, e se reunia com os professores lá. Alguém me disse: Tu não gostarias de fazer Normal? É isso, eu queria uma profissão.

[…] No Normal, eu entrei encantada e sai deslumbrada. Sabe o que é uma coisa boa na tua vida e que se chama felicidade!

(Professora “P1”, agosto de 2010).

A professora “P1” nasceu em 1931, na cidade de Bento Gonçalves (RS). Vale destacar que nesse período, no Brasil, emergiam o crescimento industrial, o apelo nacionalista e a crença de que a finalidade da educação era promover o progresso da Nação. Imersanuma sociedade em que a mulher era vista e preparada para o casamento, ela constituiu-se enquanto sujeito. Questões de gênero e, consequentemente, de relações de poder se disseminavam silenciosamente, demarcando papéis a serem assumidos na sociedade. Joan Scott, ao definir gênero, assim se expressa:

[…] o termo “gênero” torna-se uma forma de indicar “construções culturais” – a criação inteiramente social de idéias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres. Trata-se de uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e mulheres. (SCOTT, 1995, p. 75).

Com relação a essa temática, num dos segmentos da entrevista, a professora, através de seu relato, evidenciou a presença marcante das questões de gênero presentes no período desse estudo. Referindo-se aos papéis determinados para o homem e para a mulher, assim se expressou:

[...] A mulher era feita para casar, priorizavam muito também [...] que o rapaz estudasse, que o rapaz se formasse, mas a moça era para casar. Então, muitas moças antes de casar ganhavam a máquina de costura, eu me lembro! A minha mãe ganhou e até eu que casei muito depois, a minha avó disse: Vou te dar uma máquina de costura. Nunca costurei nada, mas ganhei a tal de máquina.

Diante das palavras da professora “P1”, apoio-me em Schwartzman, Bomeny e Costa (2000), que explicam que a reforma da educação empreendida por Capanema e iniciada com o Plano Nacional de Educação, em 1937, já reservava à mulher uma educação diferenciada da ofertada ao homem, uma educação doméstica, cuja finalidade era preparar a mulher para ser mãe e cuidar do lar. “A economia doméstica foi o que ficou implantado definitivamente nas escolas secundárias como educação feminina” (p. 125). Mais adiante, em 1941, Getúlio Vargas assinou o decreto que apoiava e facilitava o casamento. Criou-se também o Dia Nacional da Família.

Aos sete anos de idade, “P1” passou a frequentar o Curso Primário, do 1º ao 5º ano, no Grupo Escolar General Bento Gonçalves da Silva.34 Considero importante destacar que no momento em que rememorou essa parte de sua trajetória escolar, deixou transparecer no brilho de seu olhar, em seu suave sorriso e na convicção de seu relato o orgulho de fazer parte da história dessa escola.

[...] no colégio Bento Gonçalves da Silva, de manhã quando chegávamos, a Diretora daquela época, eu tenho uma lembrança muito grata dela, o nome dela era a “C.B.”, [...] de manhã, às 8h, ela chegava na frente do colégio, nós todos em fila, de uniforme, avental, um bolsinho com GE – Grupo Escolar – e ela como uma maestra, uma maestra tem uma batuta, e ela cantando o Hino Nacional, e nós todos juntos, e ela, com aquele braço direito, fazendo assim... E depois, então, terminava o Hino, a bandeira era hasteada e a gente ia para a sala de aula, acompanhada pela professora. Essa é uma lembrança que eu tenho muito grande.

As emoções que afloram nas narrativas de histórias de vida e revelam nossos sentimentos, admirações, medos, anseios e desejos são as mesmas que nos constituem sujeitos de um determinado tempo histórico. O sentimento de pertença expressado no relato da professora me mostra que o eu e o coletivo, em diferentes práticas escolares produzidas ou reproduzidas, firmam-se enquanto marcadoras de experiências de vida, o que vem de encontro ao pensamento de Halbwachs (2006, p. 30), de que “[...] sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem”.

34 Localizado na cidade de Bento Gonçalves (RS); desde o ano de 2000 recebe a denominação de Escola Estadual de Ensino Fundamental General Bento Gonçalves da Silva.

Dando continuidade a seus estudos, “P1” frequentou o Curso Ginasial no Ginásio Feminino Nossa Senhora Medianeira.35 De acordo com seu relato, para ser

aceita como aluna do ginásio necessitou realizar o exame de admissão, que era feito

no “Aparecida”,36 no colégio dos rapazes, não sei te dizer o porquê, consistia em

prova escrita e, posteriormente, prova oral sob a apreciação de três professores. [...]

tu tiravas o bilhetinho, conforme a disciplina e tinhas que dissertar sobre aquilo.

Contou, também, que reprovou no primeiro ano do ginásio, o que lhe causou muita vergonha, porque o resultado dos exames era divulgado publicamente para todos os alunos e familiares, no cinema, espaço anexo da Paróquia Santo Antônio37. Durante este evento, todos os alunos ficavam na expectativa de ouvir pronunciado o seu nome, pois os professores liam os nomes dos alunos aprovados, e os

reprovados não. Nunca mais tirei uma nota vermelha. E “P1” continuou seu relato:

O ginásio era um trampolim. Só pessoas com boa situação econômica podiam realizar esse curso. Na formatura, durante o dia havia uma solenidade, com missa na capela do próprio colégio, com a presença dos familiares. Nesse momento, todas as alunas usavam o uniforme do colégio. Durante a cerimônia o pai entregava à filha o anel de formatura. Em minha opinião, esse anel era muito mais bonito do que o do Curso Normal, era um anel retangular... À noite, usávamos roupas de gala, lembro-me ainda hoje do meu vestido branco de organdi suíço...

35 Conforme dito anteriormente, atualmente denomina-se Colégio Scalabriniano Nossa Senhora Medianeira.

36 Como já foi mencionado anteriormente, desde o ano de 2004 denomina-se Colégio Marista Aparecida.

37 Em 1876, enviado pelos bispos italianos, chegou à cidade o padre Bartolomeu Tiecher. Em 1934, a paróquia comemorou o seu 50ª aniversário. Neste ano, o vigário era Dom Antonio Zattera. Neste ano foi obtido o decreto de elevação de Matriz para Santuário Diocesano de Santo Antônio. PARÓQUIA Santo Antônio. Disponível em: <www.paroquiasantoantoniobg.com.br>. Acesso em: 1° out. 2010.

Figura 1: Formatura da professora “P1”, Curso Ginasial, momento em que o pai, Sr. Eduardo,

colocou em seu dedo o anel de formatura.38

Fonte: Acervo pessoal da professora “P1”.

A professora “P1” casou-se no ano de 1951, teve filhos e permaneceu por um período afastada da escola. Em 1957, com 26 anos de idade, retornou para a Escola Normal Nossa Senhora Medianeira, para então cursar o Magistério, concluindo o mesmo em dezembro de 1959. Sobre sua opção pelo magistério, manifestou:

[…] Inclusive, quando eu fui fazer Normal algumas pessoas me criticaram, pois diziam: Como ela vai fazer curso Normal com filhos pequenos? Mas como não havia edifícios, da janela do “Medianeira” eu via a minha casa, eu

38

tinha uma menina que cuidava das crianças, o meu pequeno, o terceiro, tinha 40 dias. Nós combinamos que se ele incomodava, ela colocaria na janela um lençol branco, mas eu deixava de manhã tudo em dia, tomado banho, mamadeirinha, sopa... Em três anos ela nunca botou o lençol na janela […] Agora, esse Normal me deixou lembranças espetaculares mesmo, tanto é que eu me dei bem como professora, me dei bem no sentido de amar. Tinha uma professora melhor que a outra [...].

“P1” cursou três anos de Magistério e depois fez o estágio, mas não se

recorda em que escola ele aconteceu.39 Sobre as lembranças que temos

dificuldades de evocar, Halbwachs (2006, p. 67) afirma que elas “[...] são as que dizem respeito somente a nós, constituem nosso bem mais exclusivo [...]”. A professora se formou no dia 13 de dezembro de 1959. Sobre essa data, encontrei nos registros do “Medianeira” o seguinte escrito:

Foi realizada a solenidade de Formatura das Magistrandas de 59 em número de 37. Pela manhã foi celebrada a Sta. missa com benção [sic] e entrega dos anéis, compromisso de catequista e entrega do respectivo Diploma. À noite houve colação de grau, no salão nobre. Transcorreu no maior brilhantismo com uma afluência de pessoas superior à capacidade do local.40

Para “P1”, as formaturas dos Cursos Ginasial e Normal foram momentos muito especiais, havia encantamento, me entusiasmou muito mais do que o meu

próprio casamento, claro que foi bonito também!

O anel de formatura do Curso Normal era redondo, pedra preta com uma estrela branca em cima, significando “Uma luz nas trevas”, em um dos lados do anel há o desenho de um livro aberto com uma pena; do outro lado, uma coruja. Ainda lembro do lema, “Res, non verba”, realizações e não palavras. Tenho a certeza que todas as minhas colegas, sem muito pensar no lema, fizeram isso em suas vidas.

39 Em conversa com a Irmã Lourdes, do Colégio Scalabriniano Nossa Senhora Medianeira, a mesma me relatou que nesse período a prática de estágio não era comum. Às normalistas, no momento em que eram contratadas ou nomeadas, designavam-se escolas no interior do Rio Grande do Sul (1ª entrância). Posteriormente, avançavam para a 2ª, 3ª entrância...

Ao discorrer sobre como era vista a profissão de professora nesta época, “P1” relata que era comum os pais de suas amigas dizerem para as pessoas que suas filhas eram professoras, pois ser professora lhes conferia status. A professora

era muito respeitada pelas famílias, pelos alunos, outros tempos, outros tempos...

Sobre essa questão, apoio-me nos estudos de Vicentini e Lugli (2009), que afirmam que há um aspecto nuclear para se compreender as imagens produzidas acerca da docência – a relação entre a recompensa financeira e a simbólica. Esta última “[...] seria o reconhecimento da importância de seu trabalho abnegado pela educação do povo brasileiro, presente num discurso que lhe atribuiu um caráter sacerdotal” (p. 163).

A partir dos relatos de “P1” e de documentos disponíveis no acervo Histórico do Colégio Scalabriniano Nossa Senhora Medianeira, é possível perceber que as práticas escolares vivenciadas pelos sujeitos que estudaram nessa instituição no decorrer das décadas de 1950 e 1960 evidenciavam grande preocupação com o universo feminino que permeava a professora mulher. Além dos saberes necessários para a formação profissional de professora primária, dava-se forte ênfase à vocação religiosa, à missão da mestra, bem como ao matrimônio. Palestras de educação sexual, de vocação, festa em homenagem aos pais, às mães, comemorações do dia da Família, a Semana Bíblica, Curso de Noivos, Clubes de Artes Femininas, comemorações cívicas, entre outros, compuseram a cultura escolar dessa instituição de ensino.

A professora “P1”, portanto, frequentou o Curso Primário no Grupo Escolar General Bento Gonçalves da Silva e os cursos Ginasial e Normal na rede de ensino particular, no atual Colégio Scalabriniano Nossa Senhora Medianeira, na cidade de Bento Gonçalves.

No ano de 1972, ingressou no curso de Licenciatura Plena em Letras, na Fundação Educacional da Região dos Vinhedos (FERVI), na mesma cidade, concluindo sua graduação no final do ano de 1975. Posteriormente, especializou-se em Leitura e Produção Textual e Linguística Textual, ambas pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no município de São Leopoldo (RS).41 Também cursou

41 Localizado na região da encosta inferior do nordeste do Rio Grande do Sul, o município faz parte da Grande Porto Alegre, estando a 31,4 km da capital gaúcha. PREFEITURA Municipal de São Leopoldo. Disponível em: <wwwsaoleopoldo.rs.gov.br>. Acesso em: 1° out.. 2010.

Literatura Brasileira e Português na Universidade de Caxias do Sul, em Caxias do Sul.

“P1” atuou como professora em Bento Gonçalves por 29 anos, em escolas estaduais e particulares, sendo que por 17 anos foi docente numa instituição particular de Ensino Superior. Quando lhe perguntei com quais níveis de ensino mais se identificou, ressaltou ter sido o Ensino Fundamental, com a 8ª série, porém acrescentou que na faculdade tudo me encantou... A professora “P1” está aposentada desde o ano de 2004.42