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profissional em políticas públicas voltadas para consolidar a esfera pública no SUS

MARIA HELENA MAGALHÃES DE MENDONÇA

Introdução

Para contribuir com o debate em torno da gestão em redes, que trata de analisar novas racionalidades e práticas de avaliação de po- líticas públicas, este texto aborda a consolidação da esfera pública no que diz respeito à intervenção no campo da saúde pública.

Parte da análise das políticas de saúde formuladas para a organi- zação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil nos anos 90 e das exigências que elas aportam para a formação profissional específica no novo campo que se abre no âmbito da saúde coletiva. Constata- se que, na última década, ampliou-se a informação que nutre as políticas públicas, seja pelo desenvolvimento de pesquisa científica autônoma, seja pelo fortalecimento de sistemas de produção de da- dos oficiais, através de inquéritos, pesquisas de opinião etc.

Esse conjunto de fontes diversificadas e difusas ofertado para uso na e pela sociedade amplia a capacidade de discernir e compreender os contextos em que os indivíduos vivem, trabalham e lutam. Ajuda na constituição e diferenciação de pontos de vistas junto à opinião pública, formando-a no sentido da ação social, o que apóia a estruturação da esfera pública e potencializa a cidadania universal.

Por fim, traz o relato de experiência recente de interação entre pesquisadores e gestores no processo de estudo de linha de base do projeto de expansão da estratégia da saúde da família no estado do Rio de Janeiro. Reflete sobre as possibilidades e os limites do esta- belecimento de parceria entre intelectuais orgânicos posicionados em

diferentes espaços de intervenção para o enfrentamento das questões sociais e sanitárias que afligem ambos os grupos, no esforço em responder a necessidades específicas. Este relato é feito com base em documentos e relatórios gerados pela pesquisa realizada na Escola Nacional de Saúde Pública.

SUS: cenário de novas práticas

As políticas públicas representam o poder de barganha entre a sociedade e o Estado para satisfação de suas necessidades básicas e dependem de um espaço para a vontade e decisão democrática de todos. A carta constitucional de 1988 consagrou o direito social uni- versal à saúde. Sua garantia pelo SUS faz parte da ação do Estado brasileiro na produção e regulação das atividades econômicas voltadas para resolver problemas de saúde e de adoecimento que afetam a massa da população, segundo uma nova ética social baseada em prin- cípios como universalidade, eqüidade, integralidade e solidariedade.

O SUS, em sua regulamentação, constituiu instrumentos específi- cos de poder e decisão sobre os rumos da política de saúde, que abrem cada vez mais possibilidades para a consolidação da esfera pública e práticas sociais democráticas – fundos de saúde, conselhos de saúde e conferências de saúde nas três esferas de poder.

Nos últimos 15 anos, a construção/implementação do SUS, do ponto de vista institucional, foi marcada pela descentralização com ênfase na municipalização, pela integração e unificação das instituições responsáveis pela assistência à saúde, pela criação dos instrumentos de gestão e controle social mencionados de forma descentralizada e pela organização de sistemas municipais com foco na ampliação da oferta de serviços públicos de saúde orientados para os cuidados básicos.

O processo político conduzido pelo nível central do sistema sus- tentou-se na forte mobilização política, a partir das bases sociais do sistema presentes na organização ascendente das quatro Conferências Nacionais de Saúde ao longo do tempo, pela resistência da estrutura do SUS e da sociedade organizada às tentativas de desfinanciamento do SUS, indicadas pela política econômica de sucessivos governos dos anos 90, pela revisão das bases de financiamento do SUS, com a responsabilização de cada esfera de governo pela prestação de serviços de saúde e sua viabilidade material.

Esse processo se insere num contexto mais amplo, onde se ob- serva o crescimento do interesse pela área das políticas públicas no Brasil, na medida em que as mudanças recentes da sociedade brasi- leira aumentaram a autonomia local, favoreceram a forte competição eleitoral, introduziram programas de reforma social marcados pela proposta de controle social e político das políticas sociais setoriais e aumentaram a responsabilidade dos gestores públicos numa ordem marcada pela descentralização político-administrativa e pela transfor- mação das formas de intervenção estatal.

Nos anos 1980-90, a ciência política se ocupou principalmente da emergência de novos atores sociais fora da tradicional concepção de Estado e mercado de intermediação de interesses, onde se configura a triangulação entre política / grupo de interesse / burocracia. Pen- sou-se então na constituição de redes sociais, com papel diferenciado na relação entre a política e a solidariedade social no âmbito da sociedade fortemente estratificada.

No caso da política social e, em especial, a saúde no Brasil, a discussão sobre o projeto de reforma sanitária, iniciado na década de 1970, retomou a discussão do paradigma de saúde pública e da saúde coletiva, questionando o modelo hegemônico de atenção à saúde que garantia assistência médica aos trabalhadores do mercado formal pela previdência social, enfatizando a necessidade de ampliar a abrangência dessa política. Tal proposição considerou tanto a concepção de saúde como direito social como sua permanente afirmação dentro de um escopo da seguridade social.

A definição de seguridade social – “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (Constituição Federal, Título VII, Capítulo II, Seção I, art. 194, 1988) – foi uma resposta efetiva à questão social, naquele momento. Pautava-se pela redemocratização do Estado e da socieda- de brasileira, que procurava alargar a esfera pública e garantir direitos sociais próprios à cidadania (MENDONÇA, 2006)

Ao longo dos anos 90, essa idéia-força apresentou uma base frágil de sustentação e a regulamentação da seguridade social não obedeceu aos princípios que a nortearam, comprometendo a meta de uma proteção social integral universal, além de se observar a permanência

de sua fragmentação institucional. Hoje a complexificação da realida- de social é caracterizada pelo aprofundamento da pobreza e desigual- dades sociais, que segmentam a sociedade brasileira e dificultam sua coesão; e pela desmobilização de relevantes atores políticos para o exercício democrático, o que desafia a consecução do pacto social que promoveu a elaboração da Constituição.

O desejo de se constituir um Estado de Bem-Estar, presente no processo constituinte, quando esse modelo já sofria, no cenário in- ternacional, fortes pressões para redução de seu caráter inclusivo e da abrangência de seus programas de integração de renda e assistência pública, é apontado especialmente por neoliberais como um equívo- co. Contudo, ao se olhar para os sistemas de proteção social dos países desenvolvidos, não se vê seu desmantelamento. Pelo contrário, as mudanças buscam a reestruturação nos planos nacionais da pro- teção social que façam frente aos efeitos da crise econômica e da globalização econômica que minam sua base material de sustentação. A luta social tem sido travada em cada conjuntura, no sentido de preservar essa montagem inédita de trabalho e proteção, refazer o pacto de solidariedade, trabalho e cidadania e criar condições de inclusão para restabelecer as condições de trocas sociais (CASTEL, 1995, p. 20-21).

As proposições políticas observadas nos anos 90 vão ao encontro da necessidade de articular política econômica e política de bem-estar para modificar a estrutura de produção e criar possibilidades reais de emprego estável; descentralizar as políticas públicas, dimensionando- as para direitos específicos, com ênfase no caráter preventivo, para refazer a “nação” ou a “solidariedade” e responder a novas necessi- dades sociais; além de refazer o apoio das camadas médias ao sistema de transferências universalistas (ESPING-ANDERSEN, 1991), res- ponsáveis pela socialização dos custos da família, baseado no ideal de “capacitar a independência individual”.

As análises políticas da proteção social brasileira e dos avanços efetuados nos anos 90 na garantia dos direitos sociais – saúde, assis- tência pública e previdência social – refletiram as polêmicas sobre o cenário desenhado de crise econômica do Estado de Bem-Estar Social e dos gastos excessivos dos modelos de proteção social vigentes no âmbito do capitalismo internacional, entre as décadas 1970-80.

Nos anos 90 prevaleceu a tensão pelo controle político e finan- ceiro na área social, foco das disputas políticas na condução das políticas públicas em diferentes conjunturas, como a revisão consti- tucional de 1993-94 e a reforma da previdência nos anos 1995-97, já na perspectiva da estabilização econômica. Tal fato reduz o ímpeto do princípio de solidariedade, ordenador de políticas públicas, de forma a reduzir a estigmatização e focalizar na satisfação de neces- sidades sociais.

Nesse jogo temos perdas e ganhos, tais como (MENDONÇA, 2006):  A saúde pública perdeu os recursos da seguridade social, mas, fiel ao conceito de saúde inscrito na Constituição de 1988, criou, através de ações normativas instâncias de gestão nas esferas mu- nicipal, estadual e federal em respeito ao pacto federativo, espaços para discussão dos limites financeiros e administrativos impostos ao setor nesse período.

 Os fundos de saúde e os conselhos de saúde fortaleceram a de- mocratização das ações setoriais, estimulando a efetivação do di- reito à saúde a todos, a partir de novas parcerias entre os entes governamentais e com a sociedade civil, que realizam o controle e a participação social na gestão compartilhada e na formulação da política de saúde do Estado.

 A atenção básica de saúde responde ao compromisso do SUS com o exercício da cidadania e provê serviços básicos e outras ações coletivas de forma descentralizada. Sua efetivação deve avançar no sentido de integralidade, pela necessária desmercantilização dos níveis de atenção mais complexos ou por certo equilíbrio nas relações entre o mercado e a esfera pública na provisão ao conjunto da população.

 Novos atores se integram à construção social da saúde como direito social. Sua atuação se dá na área do movimento social e especialmente do direito – juízes, procuradores e advogados liga- dos ao Ministério Público tornam-se agentes públicos voltados para recuperar a noção de integralidade dos cuidados garantindo tratamento completo e eficaz para agravos em saúde pelo acesso universal ao serviço de saúde, a medicamentos e procedimentos que porventura sejam negados aos usuários do SUS. Essa apro- ximação entre as instâncias jurídicas e a sociedade civil se dá na

lógica do direito público e avança na institucionalização de uma atuação civil em defesa do direito à saúde, quando busca soluci- onar conflitos no campo das práticas de saúde. Ela ocorre local- mente, mas sinaliza ainda algum vigor na reorganização das estra- tégias de luta na sociedade civil contra as desigualdades que per- passam o direito à saúde no país.

Conclui-se esta análise da política pelo reconhecimento de que a noção de seguridade social, mesmo esvaziada, segue norteando os movimentos e lutas sociais, atravessa a burocracia pública, na defesa dos direitos sociais universais e resiste às conjunturas adversas.

A solidariedade social é a base necessária à preservação do caráter integral e universal da proteção social, constitutivo do direito social à saúde e à assistência pública à população. Seu fortalecimento se dá pela expansão da esfera pública, ampliação dos espaços de debates e informação constituintes de uma opinião pública favorável ao siste- ma de proteção social universal e do exercício de cidadania ativa que garantem o apoio às reivindicações sociais da população por serviços públicos de saúde resolutivos e de caráter integral e outros bens necessários à recuperação de agravos.

O palco para o estabelecimento de novas parcerias

A perspectiva de ampliar o acesso da população aos serviços de saúde teve atualização recente, na qualidade da atenção, com a incor- poração de novas práticas voltadas para o cuidado das pessoas em bases humanitária e solidária. Essas novas formas de cuidado susci- tam a concepção de sujeitos sociais e se expandem em novas ques- tões trazidas pela inclusão de grupos étnicos e minorias, anterior- mente tutelados pelo Estado e mantidos em isolamento no âmbito das ações do SUS.

Os novos padrões de funcionamento da política social ou práticas políticas precisam ser vistos a partir de exame crítico pautado em noções desenvolvidas na esfera da ciência política e da sociologia como formas de Estado, estruturas políticas, democracia participativa, integração social, inclusão social etc., transportadas para a política de saúde e suas instituições (MENDONÇA; GIOVANELLA, 2006). Ou seja, como analisar as formas com que o Estado regula hoje as ações públicas, considerando a interação entre interesses, valores e

normas, assim como constrangimentos técnicos e orçamentários. Como o Estado age para assegurar a provisão de bens públicos: por sua produção direta, distribuída pelo setor público, ou por sua contratação em outras organizações sociais?

Quais as formas de interação entre o agente público e outros atores sociais na formulação e implementação de políticas? Como implementar os princípios orientadores da ação pública – universalismo, eqüidade (como afirmação de igualdade e das diferen- ças), integralidade, que justamente operacionalizam a dimensão da cidadania e apontam para a necessidade de um olhar ampliado para as formas de organização da sociedade. Para todas essas abordagens, coloca-se a exigência de ampliar o debate sobre a produção acadêmi- ca no campo da saúde coletiva, que atrai para si um segmento expres- sivo de cientistas sociais e políticos. Também na esfera normativa, cresce a demanda por investigações que respondam à agenda com- prometida com os princípios organizativos e operacionais do SUS.

As respostas às questões mencionadas exigem troca permanente entre os diversos grupos em processo de educação recíproca, que construa uma nova especialização segura e específica, produção de conhecimento e da informação com isenção e autonomia em face dos interesses postos pelos que conduzem e executam a política de saúde. Não se podem realizar análises mais sistemáticas do processo de implementação de políticas, projetos e programas de saúde, sem expandir e difundir estudos dedicados a esses processos sociais e aprofundar metodologias de avaliação de políticas que induzam a utilização da avaliação como instrumento de planejamento setorial e gestão pública e apoio na resolução de conflitos e na busca de maior cooperação social.

Um palco para esse processo é o contexto do projeto de expan- são da estratégia de saúde da família, no âmbito da política de reor- ganização da atenção básica do Ministério da Saúde, que se consti- tuiu por diferentes componentes que implicam política de investi- mentos físicos, desenvolvimento de recursos humanos e institucionalização de processos de avaliação e monitoramento das ações, envolvendo relações complexas entre os gestores de diversas esferas de governo e instituições de pesquisa e ensino do campo da saúde coletiva.

Os estudos de linha de base (ELB), entre os quais o realizado no estado do Rio de Janeiro, voltado para os 22 municípios com mais de cem mil habitantes, se inserem neste último componente, como uma ação estratégica e fundamental para a análise crítica da realidade, proposição de eventuais mudanças na política nacional de atenção básica e apoio aos estados e municípios para a transformação dos sistemas locais e das práticas de atenção à saúde (ENSP, 2006).

As diversas técnicas e instrumentos de pesquisa aplicados para efetuar o ELB-RJ estiveram comprometidos com a institucionalização da avaliação da atenção básica nas esferas de governo estadual e municipal, já que a equipe atuou em interação permanente com os representantes das mesmas, buscando informações primárias ou de- rivadas de fontes secundárias, que indicassem a capacidade de gestão das secretarias estaduais e municipais, compartilhando decisões sobre organização e realização dos estudos de caso.

Acredita-se que o desenvolvimento, discussão e disseminação do ELB e a proposta metodológica desenvolvida pela equipe responsá- vel pode estimular a política de saúde regional, no sentido de seu aperfeiçoamento gerencial e do processo de trabalho nas unidades de saúde. O conhecimento apreendido nesse processo resultou, por um lado, da observação da gestão municipal no nível central da SMS, das práticas de saúde desenvolvidas nas unidades de saúde estudadas e de desempenho do sistema de saúde e levantamento de dados secun- dários relativos à situação de saúde e das famílias, além de dados primários do inquérito domiciliar e grupos focais e conseqüente processamento, análise e sistematização dos dados.

Por outro lado, os contatos, mesmos que intermitentes por 18 meses, entre os gestores e pesquisadores, objetivaram estreitar o conhecimento da realidade dos municípios a partir da percepção dos seus representantes; levantar subsídios para o desenvolvimento metodológico; promover interação entre os gestores municipais e mobilizá-los para participar do esforço de fortalecimento do sistema de avaliação e monitoramento.

Houve três momentos-chave desse processo: a realização de uma primeira oficina macrorregional para apresentação da proposta do estudo (fevereiro de 2005), o trabalho de campo junto às secretarias municipais e a oferta de uma capacitação no formato de curso de

aperfeiçoamento em informação e avaliação em atenção básica rea- lizada em dois momentos presenciais (uma semana em outubro de 2005 e outra em agosto de 2006) e um curso à distância (novembro de 2005 a fevereiro de 2006).

Os objetivos do curso foram:

 capacitar os gestores a avaliar, de forma crítica, as políticas públicas que embasam as propostas da atenção básica em saúde, as deman- das de informação e suas implicações na gestão da saúde, na gerên- cia de sistemas, redes e unidades de saúde e no controle social;  desenvolver habilidades que contribuam para ampliar a utilização

de métodos de investigação e das informações como subsídio ao processo decisório em saúde, através da construção de indicado- res de saúde e da capacidade para visualização e condensação dos dados, com a finalidade de transformar dados brutos em informa- ções úteis para o monitoramento/avaliação da situação da atenção básica em saúde.

Para instrumentalizar esse processo de aprendizagem, enfatizou- se a conceituação de políticas públicas de saúde com enfoque na atenção básica, situando, historicamente, as origens da lógica que orienta, até hoje, a organização dos serviços de atenção básica em saúde no Brasil. Apresentaram-se, ainda, métodos de aquisição, tra- tamento, padronização, modelagem e visualização de dados gráficos e não-gráficos entre si e métodos de desenvolvimento de indicadores para avaliação em saúde. Mostrou-se a contribuição da informação em saúde na gerência dos serviços de saúde e na gestão de organi- zações de saúde. Por fim, buscou-se reconhecer as articulações entre os conceitos, os métodos de investigação, que ampliam a capacidade crítica e reflexiva e potencializam sua aplicação na gestão.

A primeira semana presencial dedicou-se a trabalhar os eixos conceitual e metodológico da política pública de saúde, com foco na atenção básica de forma mais expositiva. Os mesmos temas seriam retomados na etapa à distância, a partir de tecnologia específica de ensino-aprendizado, que supõe exercícios e técnicas de interação. A segunda semana voltou-se a apresentar e discutir os dados resultantes do estudo, através de dinâmicas de grupo em que todos os envolvi- dos eram responsáveis por discutir e refletir sobre as dimensões de análise propostas.

Para os pesquisadores envolvidos, a proposta da atenção básica se baseia na reorientação do modelo assistencial e na organização do sistema municipal de saúde. Nela, a unidade básica de saúde tem a função primordial de ser a porta de entrada do sistema para uma população adscrita aos programas de saúde e a principal fonte de dados dos usuários do sistema de atenção básica de saúde (ESCOREL