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O processo de decisão centrado no sujeito

3.2 A construção do projecto vocacional pelo aluno-consumidor

3.2.1 O projecto social

De tudo o que atrás foi dito ficou já implícita a ideia de que o projecto vocacional a desenvolver pelo aluno não é exclusivamente individual, na medida em que está condicionado por um projecto social, isto é, um conjunto de limitações que o sistema cria no sentido de permitir a existência de vários indivíduos. Daí que o aluno tenha de

escolher, de entre um conjunto de opções possíveis . Como refere Cristina Gomes da Silva na introdução do seu trabalho:

"Os jovens constróem os seus projectos de futuro escolar e profissional partindo da sua experiência escolar e utilizando a estrutura de oportunidades criadas pelo sistema educativo. " fSILVA, 1999:1)

Por outras palavras, um projecto é obra de vários agentes e a sua dimensão psicológica tem, como vimos, de ser cruzada com dimensões de outra ordem: social, cultural, educativa e política.

Os condicionalismos da oferta

O sistema educativo, ao propor uma variedade de opções pré-determinadas, de acordo com um projecto social, funciona como um mecanismo de orientação vocacional real, bem visível nos casos em que as escolas introduzem os famosos

numerus clausus.

Na verdade, além dos desejos dos alunos e dos seus pais (dos quais falaremos adiante), há que ter em conta as possibilidades oferecidas pelos estabelecimentos de ensino ou, pelo menos, pelos estabelecimentos da zona de residência já que a capacidade de mobilidade de um jovem de 15/16 anos é, quer queiramos quer não, limitada.

Esta capacidade de oferta, frequentemente apontada como dependente das infra- estruturas da escola e do próprio quadro de professores, está (ou deveria estar) em articulação com um outro mercado que é afinal de contas o próprio mercado de trabalho. É neste sentido que se fala da existência de um projecto social, cujas necessidades se reflectem em termos da oferta educativa, não só ao nível de escola, mas do próprio sistema educativo.

Esta não é, porém, uma questão pacífica. Muito se tem defendido que a oferta educativa deveria assegurar as necessidades funcionais ao sistema, ao mesmo tempo que se garantem saídas profissionais para quem enveredar pelas diferentes

16 O que remete mais uma vez para a análise estratégica e para a liberdade relativa dos actores sociais já referenciada a propósito da nossa problemática de investigação.

possibilidades de formação. Esta posição (que reflecte uma relação de mercado) pareceria razoável se não escondesse um argumento meritocrático e a reprodução

social e cultural que a escola, através da função de certificação parece exercer.

A questão, para a qual BOURDIEU e PASSERON chamaram a atenção na década de 60, é que a tão aclamada igualdade de oportunidades parece dissimular uma estratégia que visa manter as vantagens comparativas da nova classe média no seio da escola de massas e neste sentido manter o compromisso cultural que transformava o ensino secundário em "rampa de acesso" à universidade e às posições sociais de maior prestígio. (MAGALHÃES e STOER, 2002)

Porque a excelência escolar e a performance serão sempre a base de acesso a um emprego, a questão está em saber como garantir oportunidades de sucesso (e não apenas de acesso) a todos, desempenhando aqui a pedagogia um papel central. Em todo o caso, a função de certificação por parte da escola parece-me incontornável, resultado da submissão da escola ao sistema económico, sobretudo a partir do ensino secundário, indo ao encontro das expectativas dos alunos que nele ingressam, bem como das suas famílias. Daí que o sistema escolar tenha sempre de ser visto como fazendo parte de um projecto social mais amplo, na medida em que reflecte a sociedade que o enforma.

Voltando à questão da oferta de escola, a questão que me parece importante reter é a de saber até que ponto os alunos, conscientes da possibilidade que têm ou não de aceder às vagas existentes para um determinado curso ou agrupamento em função das suas classificações, antecipam uma eventual selecção no momento da escolha. Daqui parecem-me decorrer duas questões essenciais: por um lado, e a comprovar-se esta auto-exclusão, as escolas acabam por não ter um conhecimento real da procura, o que poderia influenciar (pelo menos em alguns casos) a oferta; por outro lado, independentemente desta selecção ser feita a priori ou a posteriori, interessa conhecer o procedimento adoptado pela escola nos casos em que o aluno não tem vaga17.

Parece então que, em alguns casos,

Contactadas algumas escolas da região sobre a qual incidiu esta investigação foi-nos explicado que este não é um problema com que as escolas lidem actualmente, atendendo ao decréscimo do número de alunos. Em todo o caso, a afectação a uma escola é feita em função da residência e se, eventualmente, a procura de uma área de estudos for superior à oferta, as diferentes escolas reúnem e estabelecem critérios de seriação, preferencialmente as classificações obtidas durante a escolaridade obrigatória

"As escolhas não podem designar-se como tal por derivarem de condicionamentos da oferta (...) contingências às quais são alheios os principais interessados, na medida em que resultam de uma pressão da oferta ". (SILVA, 1999: 37)

Ainda no que diz respeito a esta questão não queria deixar de referir outro efeito que me parece igualmente importante e que é o efeito das modas. Se é verdade que tanto os alunos como os pais devem estar atentos à evolução económica e em particular à evolução do mercado de trabalho e das próprias profissões, existindo inclusivamente em alguns países publicações dirigidas ao encarregados de educação no sentido de viabilizar escolhas mais coerentes, não deixa de ser preocupante que os jovens tomem as suas decisões única e exclusivamente com base neste critério, sobretudo quando todos sabemos que o mercado das profissões é por natureza instável, sobretudo quando sujeito ao "efeito moda". Corre-se neste caso o risco de virmos a ter jovens desempregados, desnecessariamente alienados do seu projecto vocacional.

Na verdade, apesar das opções de formação tenderem a multiplicar-se e diversificar- se, existe uma crescente incerteza quanto à opção mais ajustada, face à dificuldades em interpretar o impacto das actuais mudanças sociais, industriais e tecnológicas, sobre evolução do mercado de trabalho. Quer isto dizer que tem sido reforçada a

autonomia objectiva dos jovens enquanto actores e agentes de escolha, mas que em

muitos casos não corresponde a uma autonomia subjectiva.

A determinação social

Outra perspectiva segundo a qual tem sido estudada a questão da escolha profissional e a que já temos vindo a fazer referência de forma mais ou menos implícita, é a da sua determinação social, isto é, a influência do meio e em particular da origem familiar sobre o percurso escolar e profissional das crianças e jovens. Trata- se no fundo de uma outra perspectiva da vocação como hereditária, mas neste caso ditada pelas influências sociais do meio.

Esta perspectiva leva-nos ao problema da escola enquanto reprodutora da estrutura social existente, fruto de uma cultura escolar que se assume como dominante e da qual alguns alunos, pela sua origem social estão mais próximos do que outros. "Inevitavelmente", a uns está destinado o sucesso escolar, enquanto outros estão

"condenados" ao insucesso escolar e por isso a uma escolaridade mais curta, razão pela qual o futuro se lhes apresenta limitado em termos de alternativas profissionais. Neste sentido,

"A escola transforma diferenças sociais entre as crianças em diferenças escolares, justificando depois, por estas diferenças escolares as futuras diferenças sociais.

(Ana Benavente in SILVA, 1999:29)

A teoria da reprodução social, enunciada por BOURDIEU e PASSERON nos anos 60 e defendida por muitos outros autores no campo da Sociologia da Educação, tem sido acusada de um excessivo determinismo que algumas excepções viriam a contestar. A este propósito, Sérgio Grácio (2002) propõe uma imagem matizada destas teorias , segundo a qual a escola reproduz as desigualdades por defeito, isto é, pela incapacidade em contrariar as desigualdades de partida e as que se exercem paralelamente à sua acção, do que por ser activamente produtora de desigualdades.

Podemos considerar diversas hipóteses em que a escola funciona em termos de reprodução cultural e social. Uma delas é a do isomorfismo: a escola limita-se a reproduzir "à salda" o aproveitamento dos alunos na base das suas aprendizagens "à entrada", tal e qual. Seria a reprodução no sentido pleno: a ordenação das classes e as distâncias entre elas são mantidas. Ou então a escola amplia as desigualdades, amplia as distâncias, mantendo a ordenação. Numa terceira possibilidade as desigualdades são reduzidas, mas a ordenação entre as classes mantém-se. Fora destas três figuras da reprodução teríamos o caso em que a ordenação entre as categorias é subvertida.

(GRÁCIO, 2002:53)

Se atendermos ao peso que o aproveitamento escolar tem sobre as escolhas vocacionais no que diz respeito à definição de um projecto de escolarização mais ou menos longo, de carácter geral ou tecnológico e de cariz mais intelectual ou manual (questão que desenvolveremos adiante), não nos será difícil compreender o que inúmeros estudos já comprovaram empiricamente, e que é uma tendência generalizada

Tese esta empiricamente suportada por dados que demonstram uma progressiva redução das desigualdades, à medida que avançamos para níveis de escolaridade mais elevados, indiciando que a escola faculta aos mais desfavorecidos um quadro de socialização e de aprendizagens de que estes tiram claramente partido (In GRÁCIO, 2002:61).

para que a composição sociológica de determinadas áreas vocacionais seja relativamente homogénea19.

A este propósito Sandra Mateus Sublinha mesmo que, ao obrigar a decisões precoces, a diversificação das áreas de estudo, com consequências tardias, pode ter implícitos processos de selecção e de exclusão, na medida em que transforma percursos de insucesso escolar em destinos pessoais ainda mais estigmatizantes.

Temos assim mais uma vez o projecto social a actuar e a limitar as opções individuais, razão pela qual se confirma que a definição do projecto vocacional é também o resultado da interacção do indivíduo com o seu meio. O que aqui procuramos defender é que cabe, no entanto, ao indivíduo aproveitar a sua margem de manobra para desenvolver uma autonomia capaz de problematizar e pôr em causa o que lhe é imposto. E com isto voltamos ao que já ficou dito no capítulo 1 - a necessidade de um modelo educativo capaz de promover a "educação para a escolha", o que não parece poder dissociar-se de uma educação inter/multicultural capaz de fazer compreender que:

As pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza; e o direito de ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza.

(SANTOS, 1997:30)