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5.1 O acolhimento em saúde mental – É um perigo deitar nessa rede furada!

5.1.3 Projeto de cuidado e a diversidade de estratégias

A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é criar um verdadeiro estado de emergência (BENJAMIN, 1987)

Retomando a um trecho do parágrafo 3 da portaria n.º 3088/11, artigo 7º, citado anteriormente: “O cuidado, no âmbito do Centro de Atenção Psicossocial, é desenvolvido por intermédio de Projeto Terapêutico Individual...”. Não é possível acolher sem se responsabilizar, que por sua vez, convoca o serviço a tecer uma rede de cuidado que acompanhe todo o percurso do paciente dentre e/ou fora dos muros institucionais. Nesta direção, o Projeto Terapêutico Individual (PTI) ou Projeto Terapêutico Singular (PTS) deve envolver estratégias complexas, de acordo com a demanda de cada usuário. Aqui, vale uma ressalva nos documentos que respaldam o funcionamento dos CAPS: duas definições diferentes são formuladas para o conceito de projeto terapêutico. A primeira referente ao projeto institucional do serviço, exigido para o seu cadastramento e funcionamento e a segunda se refere à assistência terapêutica aos usuários (BRASIL, 2004). Abordaremos apenas a última.

Como descreve Yasuí (2006), o PTS é, ao mesmo tempo, particular, atendo-se à subjetividade da pessoa, no entanto, não é um projeto solitário, pois deve se articular a outras ações, com outras subjetividades, em diversos espaços. Somente a multiplicidade para “dar conta” da complexidade do singular que se apresenta. O preâmbulo para o planejamento de um PTI está na própria vinculação, no ato de acolher e escutar cada um já em sua chegada, compreendendo seu modo de viver e todo o seu contexto relacional. Os vínculos com o serviço não se dão a priori, são frágeis e demandam atenção, tempo e cuidado especial, qualquer

descuido pode rompê-los. Na construção de um PTI, deve-se envolver: o usuário, seu familiar, integrantes da equipe e profissionais de outros setores. Carece de flexibilidade às mudanças de cada momento de vida e de reavaliação periódica. O objetivo maior é possibilitar a produção de autonomia, protagonismo, inclusão social, buscando transformações sustentáveis ao longo do tempo. Não é possível construir um projeto de tratamento restringindo a participação do paciente somente ao CAPS.

Segundo orientações do Ministério da Saúde (BRASIL, 2007), o projeto terapêutico singular é um conjunto de ações terapêuticas, construído coletivamente por uma equipe multidisciplinar. Deve se ultrapassar o paradigma médico, na busca de resolver as necessidades das pessoas para além do diagnóstico sindrômico. Além de toda a dificuldade já debatida da ineficiência da rede, outro ponto de indagação para construção do PTS diz respeito a ruptura do modelo estritamente médico. Será que já superamos o paradigma centralizador na figura do médico?

Na pesquisa de campo, destacaremos quatro situações já descritas que nos inquietaram nessa direção. Inicialmente, a chegada da pesquisadora no campo se deparando com os residentes médicos em seus jalecos, diferenciando-se da equipe que usavam suas roupas. A não participação dos médicos nas Rodas (durante os dois meses de pesquisa, mesmo em momentos de decisão coletiva). A justificativa para admissão dos pacientes no serviço: “casos graves são nossos e casos leves são da atenção básica”, referindo-se aos diagnósticos psiquiátricos (transtornos psicóticos, transtornos afetivos e transtornos ansiosos graves). Por último, a tão temida lista de espera exclusivamente médica. Antes de prosseguir na discussão, cabe uma observação importante: não estamos negando ou desmerecendo a participação do profissional da medicina no processo do cuidado, o que estamos apontando é a supremacia dos aspectos biológicos no processo de adoecimento.

Nesta direção, encontramos nas críticas postuladas por Merhy (1999) reflexões que devem ser discutidas e, consequentemente, enfrentadas no cotidiano das práticas. O autor, ao analisar os mecanismos de produção do cuidado através da construção dos "projetos terapêuticos", observou que as características predominantes, nos diferentes modelos de atenção à saúde, centravam-se nos procedimentos médicos, sendo marca central das ações em saúde no Brasil. Os procedimentos adotados pelos profissionais da saúde eram fragmentados e que se unificavam“ por somação”, ou seja, o projeto terapêutico era a soma do procedimento do profissional 1 ao do profissional 2, e assim, sucessivamente. O autor afirma que teve a nítida vivência de que a produção de procedimentos valia mais do que qualquer pessoa. O projeto

terapêutico deveria se ater ao cuidado da vida e permitir recuperar a autonomia no caminhar cotidiano. Para isso, os trabalhadores de saúde deveriam se envolver com os usuários, afinal são “pessoas reais tratando de pessoas reais” (p. 3).

Merhy (1999) prossegue afirmando que este modelo de produção do cuidado, centrado em procedimento médico, está atrelado muito mais à competência do profissional na produção de um procedimento especializado do que com o cuidado em si. Neste modo de cuidado, tanto os usuários quanto os profissionais são objetos, “mero insumos produtores de outros insumos” (p.3). O que vale é a natureza de somação e não a integralidade dos atos, responsáveis por projetos terapêuticos descompromissados com a produção de atos eficazes em saúde. Encontramos na própria formação do profissional a explicação de uma ação terapêutica fragmentada, conectada apenas por somação. Deste modo,

[...] não é possível almejar um profissional cuidador e responsável, que lute pelo direito do paciente e que o aborde de modo mais “humanizado”. Pois, uma escola centrada neste modelo forma mesmo é médicos “alienados”, que estão muito mais interessados em suas competências só específicas sem serem cuidadores, ou seja, sem colocar estas competências especializadas a serviço de um projeto cuidador e integral, que faça uma abordagem individual sem desprezar a dimensão coletiva dos problemas de saúde e que em última medida seja centrada no usuário. Buscar nos anos de formação esta mudança é o grande desafio atual das escolas médicas. Para isso, as mesmas devem se armar de dispositivos para a mudança que permita atingir o modo como compõem as competências dos profissionais médicos para a produção dos projetos terapêuticos (p. 3 e 4).

Merhy (1998) tece outras críticas que complementam com o que discutimos aqui. Ele afirma que o modelo que opera hoje nos serviços de saúde está centrado pela ótica hegemônica do modelo médico neoliberal, organizado a partir dos problemas específicos, focado na doença, que por sua vez, subordina a dimensão cuidadora a um plano complementar e irrelevante.

Nesta mesma lógica, a ação dos demais profissionais de saúde estão subjugadas à lógica médica, com o seu potencial cuidador também empobrecido. Há uma determinação do saber médico, favorecendo um processo de dominação sobre as demais profissões. O autor afirma que esta imposição não traria necessariamente melhores resultados, tampouco ocorre de maneira desimplicada. O modelo hegemônico focado na doença expressa um grupo poderoso de interesses sociais, políticos e econômicos, que funciona a partir do empobrecimento de uma certa dimensão, a biopsicossocial, em detrimento de outra; expressando assim os interesses impostos para o setor de produção de serviços.

Segundo Merhy (1998), a superação deste modelo só se operará na redefinição dos espaços de relações entre todos os envolvidos, ampliando os modos de produzir saúde. O

cuidado deve se sobrepor, o que possibilitará a diminuição das relações de dominação que representa certos interesses. O cuidado exige um espaço equivalente de trabalho em equipe, que demanda cooperação e partilhamento de saberes. Nessa nova configuração, todo profissional é um operador do cuidado, o que significa que todos atuam clinicamente. Para isso, todo profissional do cuidado no campo da saúde mental deve ser capacitado para atuar de forma específica neste campo, com a proposta de acolher, se responsabilizar e produzir vínculos.

Como responsável pelo “projeto terapêutico”, será sempre um “operador do cuidado”, nesta direção, ocupará também o lugar de um administrador, aquele que mediará as relações entre os vários atores e setores demandados no processo de cuidado no território. Cumprindo uma dupla função, um “clínico” (ao se responsabilizar e acolher o paciente) e “gerente” (por administrar toda uma rede necessária para realização do projeto). Por último, Merhy (1998) não desconsidera a importância das especificidades de cada profissão nos atos de saúde, o que está em jogo é a possibilidade de explorar o território comum para ampliar a própria eficácia nas ações de saúde.

Romper paradigmas não acontece com normas ministeriais. É no cotidiano da prática, e na formação profissional e no embate diário. É preciso investir na formação crítica dos profissionais da saúde mental. É urgente dialogar e repensar o lugar que ocupamos e para quem trabalhamos. Como aponta Yasuí (2006), o CAPS sendo o principal instrumento de implementação da política nacional de saúde mental, deve ser estratégico para transformação de uma assistência potente e produtora de cuidados em rede.